Amanda Danelli Costa | Junho 2020

É curioso que o Bar Lagoa protagonize duas importantes lendas urbanas: a primeira é a de que os garçons do Lagoa sejam antipáticos; a segunda é a de que o Lagoa pertenceria a uma cooperativa dos garçons que ali trabalham. As duas lendas contribuem contemporaneamente para fazer a fama do bar, mas nenhuma das duas confere com a sua história. Como é comum nos bares tradicionais, os garçons do Bar Lagoa costumam trabalhar ali muitos anos, melhor seria dizer, muitas décadas. Talvez, seja essa antiguidade e coesão do grupo que tenha levado à criação da lenda de que são eles os donos do bar. Por outro lado, tendo feito do trabalho uma espécie de segunda casa, não seria estranho se eventualmente um ou outro garçom tivesse agido de forma mais ríspida para garantir ou defender o uso habitual do estabelecimento. O fato é que a lendária antipatia dos garçons acabou se tornando um atrativo, um objeto de curiosidade, estimulando os frequentadores, talvez, a irem ao bar conferir o tratamento.

O edifício em que o bar está localizado foi construído no início da década de 1930, em estilo art déco, o que hoje é sem dúvida um atrativo importante para os visitantes. Os recortes no teto, sua cor, o mármore carrara, o tipo das letras nos banheiros são um registro que mantém ainda hoje no Lagoa uma aura dos anos 1930. O bar começou a funcionar em 1934 e antes de ter o nome atual se chamou Bar e Restaurante Berlim e, depois, Shangrilá. A procedência alemã está gravada ainda hoje no cardápio que traz praticamente as mesmas opções desde os anos 1940 e que ainda hoje serve croquete, kassler, chucrute, linguiças e salsichas, mas que tem no filé a milanesa com salada de batata o seu carro-chefe. Quando ainda se chamava Bar Berlim, em 1942, sofreu protestos de estudantes, que associavam diretamente o nome e a origem do bar ao nazismo. O mesmo aconteceu com o Bar Luiz, que àquele tempo se chamava Adolf, provocando confusão ainda maior. O mezanino localizado sobre o balcão era o local onde um conjunto de cordas tocava canções austríacas, contribuindo para a ambiência e identificação à presença da cultura germânica no Rio de Janeiro.

O local onde está instalado o bar Lagoa foi um dos primeiros edifícios daquele bairro, guardando ali as presenças e os registros de mais de oitenta anos de vida. O bairro da Lagoa, assim como os bairros da zona sul atlântica, se desenvolveu ao longo do século XX a partir da ocupação do Leme e de Copacabana e depois, por contiguidade, de Ipanema e Leblon. Enquanto no século XIX e na virada do 1900 a vida cultural e as sociabilidades estavam muito ligadas à experiência urbana que se vivia no centro da cidade, a partir de princípios do século XX, a cidade começou a crescer em direção aos bairros da zona sul atlântica, tendo a elite carioca ocupado aqueles espaços, antes selvagens, transformando-os no cenário de maravilhas que mais tarde se tornaria a principal imagem turística do Rio de Janeiro. Essa mudança da referência principal da cidade, que se deslocou do centro para a zona sul, se deve a fatores técnicos e sociais, devedores do século XIX. Para a expansão em direção à zona sul foi essencial a abertura de túneis e que os bondes avançassem pelos demais bairros da região; por outro lado, foi essencial que ao longo do século XIX, com ajuda de pesquisas na medicina, passasse a se valorizar estar junto ao mar para fins terapêuticos. Desse modo, primeiro por conta dos usos da orla e do mar para cuidados com a saúde e depois com o desenvolvimento de valores burgueses que bem avaliavam a vida e as sociabilidades junto ao mar, pouco a pouco os bairros do Leme ao Leblon, passando pela Lagoa, foram sendo ocupados pela elite carioca, tendo parte dela visitado e se reunido no Bar Lagoa ao longo desses anos. Frequentado pela boemia carioca, o Bar Lagoa teve literatos, intelectuais, musicistas entre seus clientes ilustres, brevemente representados aqui pelos nomes de Leila Diniz, Jaguar, Sergio Cabral, Paulinho da Viola e Rildo Hora.

Já na década de 80, foi necessário que os antigos donos do bar, especialmente o Sr. Antonio Grillo, dessem início a uma pesquisa sobre os valores históricos e artísticos do bar uma vez que havia o interesse por parte dos donos do edifício de o colocarem abaixo para construírem um edifício residencial moderno tal como tantos outros que se multiplicavam na orla da Lagoa. A luta para que o bar fosse reconhecido como patrimônio da cidade do Rio de Janeiro se prolongou por mais de dez anos, desde 1986 até o fim dos anos 90, passando por instâncias que envolviam a municipalidade, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e o Superior Tribunal de Justiça. Marcada por muitos avanços e retrocessos, a luta de Antonio Grillo encontrou eco e ainda mais força no apoio da associação formada por frequentadores do bar, que foi fundamental para que o bar se mantivesse tal como sempre foi e precisamente no mesmo lugar. No caso do Lagoa, em especial, as sociabilidades se transformaram numa rede de solidariedade que precisou se revestir de uma seriedade incomum aos bares justamente para garantir a defesa de um lugar aonde não se precisa levar as coisas da via tão à serio.

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Amanda Danelli Costa é professora adjunta do Departamento de Turismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Esse texto faz parte de uma série de posts sobre bares cariocas publicada pela autora no blog do Lacon. Confira os outros textos publicados:

Casa Paladino

Bar Brasil

Armazém São Thiago

Bar Lagoa