Amanda Danelli Costa | Agosto 2021
Uma das coisas que mais chama a atenção no Bar Brasil é o fato dele não ser um bar de esquina – apesar de haver duas entradas por ruas que se cruzam, Lavradio e Mem de Sá –, mas ter dentro dele uma esquina. Há, portanto, dois setores que formam um L e que se encontram no balcão de madeira, de onde saem os chopes, salsichas e sobremesas. O branco das paredes e toalhas contrasta com o escuro dos móveis de madeira. Desde o tempo da fundação, em 1907, resistiram um ventilador e os cabideiros, próximos a algumas mesas. A geladeira de madeira, que guarda o creme de chantilly feito a mão e que acompanha as tortas de maçã e chocolate, foi comprada há cerca de cinqüenta anos quando já tinha pelo menos trinta anos de uso. O piso do chão, lavado religiosamente às 8h de toda manhã, é de cerâmica, preservada ali há mais de sessenta anos. Na parede se vê uma série de quadros do Selaron, que deixou de frequentar a casa quando não recebeu um convite para participar da comemoração dos cem anos do bar.
No início da tarde os fregueses buscam o almoço, seja um prato do cardápio ou um prato do dia, que serve duas pessoas fartamente. Por volta das 11h30 da manhã o bar já começa a receber os frequentadores que dão o tom da tarde. Por conta dos pontos eletrônicos nas repartições, é improvável que os fregueses que chegam para o almoço fiquem até a noite, embora não seja impossível. Ao longo dos anos, essa regulamentação dos horários de almoço associada à Lei Seca e à proibição ao fumo em áreas fechadas impactou o bar na diminuição da venda de chope em 1/3 em relação à década de 1960, como exemplifica o Sr. José, dono do Bar Brasil. Esse é um registro importante na fala do dono e dos garçons, que sublinham a importância da bebida na história do bar.
Os donos que antecederam o Sr. José eram alemães, Felix e Bertha, assim como a maioria dos garçons e dos fregueses. A exigência com a qualidade da bebida respondia à demanda, que era altíssima. Apesar da mudança no perfil da freguesia – hoje são poucos os alemães a frequentarem o bar – o chope continua elogiado e premiado. A comida alemã – presente em outros bares tradicionais, como o Bar Luiz e o Bar Lagoa – junto do chope dão o tom do que é consumido preferencialmente no Bar Brasil. Da mesma forma que a origem dos donos mais antigos marca ainda hoje o cardápio, a origem do Sr. José, espanhol – trabalhando no bar desde 1959 e dono dele desde 1967 –, resulta numa preocupação com a qualidade dos embutidos e defumados e em uma simplicidade com a lida do bar. É ele quem corta com um cutelo feito todo de uma peça só de alumínio, trazido da Galícia, as peças de kassler que servem as mesas no almoço e no jantar.
Durante a noite, o que os fregueses procuram e acham no Bar Brasil é uma tranquilidade incomum na maior parte dos bares da Lapa, de história bem mais recente. Facilmente se encontra uma mesa para sentar e os garçons, que o são há muitos anos de profissão e não de viração, atendem com gentileza e presteza. A tranquilidade convida à uma atenção maior com os detalhes do bar e à companhia, se houver, o que faz dele um excelente lugar para o encontro. De fora, não se vê quem está lá dentro e lá de dentro se encontra um canto de calma em meio à agitação da Lapa à noite. Quem visita o bar e percebe a diferença do ritmo em relação à região compartilha a sensação desse segredo, como se fosse possível estar invisível na Lapa. Essa invisibilidade em relação ao frenesi da rua acentua no Bar Brasil a sensação de se estar em uma alcova e, portanto, intensifica a noção da intimidade, seja com o chope, com a comida, os garçons ou com a companhia da ocasião. O bar sofreu algumas transformações – não há mais biombos e cortinas separando as mesas e no lugar do piano há uma mesa redonda muito disputada –, mas manteve a aura que incita o chamego dos casais.
A preocupação com a permanência de muitas características que qualificam o bar – e também a ida ao bar – é certamente um traço importante no sentido de valorizá-lo como tradicional. Não é, portanto, a sua antiguidade ou a imutabilidade dos seus elementos que confere ao universo do bar esse valor, mas a possibilidade de reinventar o seu caráter enfrentando todas as transformações vinculadas à passagem do tempo. Essa reinvenção não deseja se fixar no passado, muito pelo contrário, o que ela quer é fazer do jogo entre os vários tempos presentes e passados a possibilidade de seguir existindo.
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Amanda Danelli Costa é professora adjunta do Departamento de Turismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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Esse texto faz parte de uma série de posts sobre bares cariocas publicada pela autora no blog do Lacon. Confira os outros textos publicados: