Amanda Danelli Costa | Agosto 2021

Situada numa esquina da Avenida Marechal Floriano e da Rua Uruguaiana, antigas Rua Larga e da Vala, no centro do Rio, a Casa Paladino é um dos poucos bares que ainda mantém laços com os antigos armazéns de secos e molhados. O acesso se dá justamente pelos corredores entre as estantes do pequeno armazém que, atualmente, vende vinhos, uísques, licores, cachaças, uma variedade de queijos e embutidos, geléias, chás, sardinha e atum enlatados, além de tremoços e outras iguarias da culinária internacional, especialmente da portuguesa. Logo na chegada, impressiona o espaço tomado por cristaleiras e prateleiras de madeira de lei na cor marrom escura, com entalhes em estilo art nouveau, que ali resistem desde quando se tem notícias daquele botequim conjugado ao armazém. Antigas fotografias pelas paredes informam aos clientes que aquele comércio existe ali desde, pelo menos, 1906. O balcão, a coluna em meio ao salão e o relógio de madeira ainda em funcionamento e que adorna a imensa cristaleira, testemunharam o último século que o Paladino atravessou. Com um pé direito alto e teto em lambri pintado de branco, a Casa Paladino abriga mesas onde seus clientes são servidos de sanduíches – de pão francês, queijo e embutidos – e variadas omeletes.

A Casa Paladino é um dos escassos botequins centenários do Rio que resistiram às mudanças que a cidade enfrentou desde o princípio do século XX. Além dos bons serviços, um dos seus principais valores reside no fato de ter se preservado tal como se apresentava cem anos atrás ou, pelo menos, muito assemelhado. Uma das poucas mudanças foi a anexação de um bar que havia ao lado, o que muito claramente se observa devido à presença de azulejos que não seguem o padrão predominante de móveis e acabamentos em madeira. Outra importante mudança foi a adaptação do antigo armazém a uma espécie de delicatessen. Desde os anos 1950 e 1960, quando os mercados e supermercados apareceram e começaram a se desenvolver, reunindo em um mesmo local todo tipo de produtos, os armazéns da cidade entraram em decadência já que não conseguiam competir com os preços praticados pelos mercados que compravam e vendiam em quantidade. Com isso, boa parte dos antigos armazéns, visando sua sobrevivência, investiram em um tipo de comércio de produtos específicos, importados, selecionados, que não se encontravam facilmente nos supermercados até alguns anos atrás. Na Casa Paladino, em especial, boa parte dos produtos expostos nas vitrines e prateleiras podem ser consumidos ali mesmo e atestam a qualidade dos ingredientes utilizados na cocção das omeletes e sanduíches, que saem acompanhados de um chope Brahma.

Os antigos armazéns do Rio de Janeiro funcionavam, desde o século XIX, como uma alternativa às feiras livres e, tal como elas, tinham a função de abastecer a cidade. Esses estabelecimentos se tornavam importantes pontos de referência no bairro ou numa determinada região, já que para ali afluíam os vizinhos em busca dos insumos básicos, sendo os secos os cereais, sardinhas, vassouras e os molhados alguns itens como querosene e bebidas alcóolicas. Já naquele tempo os armazéns faziam as vezes de botequins, vendendo bebidas também para o consumo no local. A grande maioria dos armazéns se localizava no centro, uma vez que era essa a região mais importante e mais povoada da cidade. Em geral, seus donos eram portugueses vindos do norte ou espanhóis de origem galega ou andaluza, que construíam casa e armazéns anexos. Seus donos e os demais que ali trabalhassem eram, em sua quase totalidade, homens. Quando os donos faleciam, algumas vezes as viúvas tocavam o negócio até que um filho ou outro parente pudesse se responsabilizar por ele. Em outros casos, não raros, eram os antigos caixeiros – que trabalhavam como gerentes ou contabilistas – que assumiam o armazém no caso de morte do patrão. Como os armazéns não possuíam cozinha – a da Casa Paladino é, aliás, muito simples, o que a impede de servir refeições mais elaboradas do que suas omeletes e sanduíches – os eventuais petiscos que apareciam sobre os balcões para acompanhar as bebidas se resumiam a embutidos e frios e, algumas vezes, às sobras da comida feita para o consumo diário pela esposa do dono. Aquelas mulheres que, eventualmente, passassem a comandar os armazéns sofriam muito preconceito por ser um ambiente associado à presença masculina exclusivamente.

Era do trabalho nos armazéns de secos e molhados que muitos portugueses e espanhóis mandaram vir da Europa seus parentes. Muitos desses recém-chegados recebiam um cantinho para dormir dentro do próprio armazém e uma dezena de afazeres ligados aquele tipo de comércio. Apesar de muitas famílias donas de armazéns se manterem apenas humildemente, elas representavam um núcleo social importante no lugar onde se estabeleciam justamente por abastecerem as mesas dos seus vizinhos. Uma demonstração disso era o controle da venda à fiado e das anotações de débitos nas cadernetas. Entre as famílias do entorno dos armazéns e os seus donos era corriqueiro, e necessário, o estabelecimento de uma relação de confiança, já que alguns infortúnios da vida poderiam limitar o acesso à comida da população trabalhadora e simples. Apoiados nessas sociabilidades, os armazéns pareciam ter vida longa até fins do século XIX no Rio de Janeiro. No entanto, nos primeiros anos do século XX, as reformas urbanas levadas à cabo pelo Prefeito Pereira Passos impuseram aos armazéns e botequins as principais dificuldades, antes mesmo do aparecimento dos supermercados. No aspecto físico, os armazéns foram afetados porque houve muitas desapropriações dos antigos sobrados, seguidas de demolições; no aspecto demográfico, a população carioca do centro da cidade passava por um período de reorganização muito forte, de modo que muitas pessoas tiveram de sair dali para outras áreas da cidade, como a zona norte, fluxo este acompanhado por boa parte dos armazéns. Quanto ao aspecto econômico houve uma crescente taxação de impostos, inviabilizando a presença de muitos desses estabelecimentos no centro. De certa forma, todos esses elementos de ordem material confluíam para auxiliar numa das principais mudanças desejadas pela municipalidade, que era da ordem do espírito: transformar o Rio de Janeiro numa cidade-capital civilizada, aos moldes europeus e norte-americanos. A imagem desses ambientes, como os armazéns e os botequins, estava associada ao que havia de mais atrasado e incivilizado na cidade. Atrasado porque era um tipo de comércio comandado especialmente por imigrantes de origem ibérica, que tinham sua história ligada ao passado colonial do país. Incivilizado porque seus frequentadores eram trabalhadores urbanos assalariados ou homens da “viração”, livres ou libertos, ou ainda toda sorte de desempregados, chamados de vagabundos e perseguidos como tais. Em meio a esse contexto é que a primeira fotografia daquele antigo armazém de esquina, dentre as que se tem registro, foi feita. Além de ter vivido tanta história que hoje preserva, a Casa Paladino é, mais do que um relicário das memórias cariocas, um ente vivo da cidade porque soube e sabe resistir ao tempo.

A ida a um bar tradicional como o Paladino oferece a possibilidade de uma experiência diferente do tempo. O fato de serem únicos, de valorizarem a função dos garçons e cozinheiros na casa, de preservarem a oportunidade de se estreitar as relações numa conversa despretensiosa entre dono, garçons e clientes, de servirem uma comida simples e a bebida sempre gelada oferece a sensação de acolhimento e conforto que o ritmo das exigências cotidianas nos rouba. O carioca encontra no bar, e não na praça, no shopping, na sorveteria ou na livraria, a chance de estabelecer outra relação com o tempo e talvez por isso mesmo seja tão difícil ir embora do bar, o que explica a necessidade de muitas “saideiras” até que o cliente se resigne e refaça o caminho de casa. Por sinal, o bar, como já dissemos, se apresenta como um lugar intermediário entre a casa e a rua, se configurando como um entre-lugar efetivamente. O bar está na rua e incorpora as noções de risco, desafio, multidão, invisibilidade e encontro que são da rua. Ao mesmo tempo ele reserva um horizonte de intervalo, paz, calmaria, conforto, intimidade tal como a casa costuma oferecer. O bar tradicional, portanto, pode ser interpretado a partir dessa referência de tensão, de ambigüidade, através da qual se vê em jogo – não de disputa ou de concorrência, mas de alternância e heterogeneidade – a possibilidade de reunião do caráter tanto da rua quanto da casa. A Casa Paladino, nesse sentido, se tornou um lugar especial ao saber incorporar esses níveis de diferença entre o interior e o exterior, presentes logo ali na calçada e também na mesa.

No Paladino, na parede próxima ao banheiro, vê-se uma foto de um casal, certamente clientes, em visita à Itália, na frente de um estabelecimento chamado Cantine Palladino. A legenda resume, em parte, a importância que se confere ao fato do bar tradicional ser um lugar único: “Este é o falso. O verdadeiro Paladino não tem filiais!”  O fato de ser um único exemplar confere ao bar tradicional uma ideia de especificidade e de raridade, de modo que não é possível encontrar o mesmo em qualquer outro lugar. Neste caso, tudo, cada pequeno detalhe, inclusive os deslizes, são incorporados ao caráter do bar e à maneira como ele se apresenta ao mundo e é representado no imaginário dos seus frequentadores.

Talvez digam que esse trato do carioca com o bar se dá em relação a qualquer bar e não apenas nos bares tradicionais. Isso é uma verdade. Existe um elemento de universalidade no espírito de como o carioca frequenta o bar que não colabora especificamente para justificar o registro de alguns em detrimento de outros. Entretanto, existe um dado, que é inescapável a qualquer sujeito que frequente os bares da cidade: há uma diferença na intensidade da relação. A comparação, neste caso, ajuda a explicar: o carioca sente prazer ao ir ao bar, mas a visita a um bar tradicional, o hábito de freqüentá-lo, é permeado por uma relação muito mais intensa, que, comparada à sensação de prazer, poderia bem se chamar de epifania. Todo o empenho em manter a Casa e a consciência da importância daquele lugar como uma referência no centro da cidade faz da direção da Casa Paladino uma cúmplice dessa sensação de intensidade – uma sinestesia que envolve a experiência do tempo, os sabores, a visão da arquitetura, a cordialidade dos garçons – que os clientes sentem ao visitá-la. E talvez seja por isso mesmo, que os clientes dos bares tradicionais retribuam essa dedicação com simpatia e fidelidade.

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Amanda Danelli Costa é professora adjunta do Departamento de Turismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Esse texto faz parte de uma série de posts sobre bares cariocas publicada pela autora no blog do Lacon. Confira os outros textos publicados:

Armazém São Thiago

Bar Brasil

Bar Lagoa

 

Casa Paladino