Este mês entrevistamos Adelaide Chao, doutoranda e pesquisadora pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da UERJ. A conversa se desenrolou em torno das pesquisas desenvolvidas em seu Mestrado e Doutorado (em curso).Adelaide também foi uma das palestrantes convidadas para o seminário “imaginaRIO: pensando a cidade pós-megaeventos”. Veja abaixo essa entrevista:

 

1 – Para darmos início a nossa conversa, conte-nos um pouco sobre o que te motivou a pesquisar comida e subúrbio carioca.

Sou baiana e escolhi o Rio para viver há 20 anos. Há 19 morando no subúrbio, “beirando” a linha do trem entre a Penha e Brás de Pina, fui conquistada pelo cotidiano simples e aconchegante de quem vive por aqui. O vai-e-vem das ruas, os cheiros das comidas sempre disponíveis a qualquer hora, a conversa descompromissada de quem circula nos ônibus, nas filas dos bancos, nas feiras livres, nas rodas de samba passaram a fazer parte do meu “jeito suburbano de ser”. O interesse pela pesquisa em comunicação comunitária surgiu dessa observação do dia-a-dia, do meu cotidiano. Acho que também trago na bagagem o meu passado na Bahia, carregado de comemorações com comida e festas de quintal. Das mais tradicionais como aniversários da família, copas do mundo (perdendo ou ganhando), festas religiosas e outras datas mais simples como a festa de 15 anos do fusca de meu avô. Tudo é motivo para comemorar, estar junto, reunir a família e os amigos, na alegria ou na tristeza. O alimento é uma das formas mais primitiva de comunicação. A comida nutre, cria vínculos, costumes e relações sociais. Através da comida conhecemos o outro e a nós mesmos. E observando a cidade, a comida é um importante elemento cultural. Falar de identidade carioca é lembrar da variedade gastronômica que a caracteriza. Alguns bairros trazem uma memória coletiva (e afetiva) ligada à comida. E comida gostosa tem cheiro bom. Não dá para lembrar de Madureira sem falar na feijoada, da praia de Copacabana sem o mate e o biscoito Globo, das tapiocas do Largo da Carioca. Por trás de cada lembrança tem uma memória, uma história. Quando comecei a explorar a região de Madureira, meu campo de pesquisa, a relação entre comida, música e os “causos” das pessoas ao longo do tempo evidenciavam a história cultural da cidade, o ethos próprio do lugar, a vinculação entre a cidade e seu povo.

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Fonte: Booking

 

2- O Rio de Janeiro é considerado o maior destino de turismo internacional no Brasil. A culinária local é parte das atrações da cidade. A seu ver, a gastronomia carioca poderia ser considerada a melhor representação desse espaço para as pessoas que vem nos visitar?

Não sei se “a melhor’, mas com certeza, “uma das representações”. Comida também é entretenimento. E o Rio de Janeiro é uma cidade enorme! A cultura gastronômica para o turismo não está restrita à zona sul e ao centro. A história do Rio passa pelas favelas, pelo subúrbio, mercadões, pelas feiras espalhadas nas ruas da cidade. A culinária carioca é um patrimônio em seu sentido mais amplo. Conhecer o Rio através da comida é poder relacionar os sabores da culinária, aos saberes e práticas do dia-a-dia.

3 – O verão se aproxima e as praias historicamente são destinos preferenciais nas férias dos brasileiros. O biscoito Globo e o mate são considerados patrimônios culturais cariocas. Na sua opinião, o que os levou a fazer tanto sucesso, principalmente nas praias?

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Fonte: Viajar em Família

Sabe aquele costume que você tem, mas não se recorda quando, nem como começou? Pois é! Para mim, o biscoito Globo e o mate gelado foram apresentados como parte atuante no cenário da praia carioca e já invadiram a cidade toda. “Não sei como foram parar lá, eles chegaram primeiro”. São produtos leves que combinam com o verão, com o papo descontraído, com o calor fervilhante do Rio. Refresca, revigora, cabe na bolsa de praia, na mochila, além de ser bem fácil localizar o “vendedor laranjinha” circulando nas areias e nos calçadões. A “casadinha” Mate e Globo também circulam pelos trens, ônibus, mais recentemente nos BRTs, seja no Parque de Madureira, no Aterro do Flamengo, no calçadão de Bangu. “Chegou o verão, olha o mate!”

4 – De que forma a comida é indispensável para entender os costumes da sociedade?

Sendo bem objetiva, a comida é um dos elementos que caracteriza a sociedade, os modos de comer, o alimento ou a refeição ingerida, quando comer. Existe uma sociologia da refeição, que vai caracterizar, identificar as sociedades ao longo do tempo, desde da era primitiva, onde o homem caçava e comia seu próprio alimento, até a contemporânea, onde encontramos (além de novas formas de alimentação), alimentos resignificados, industrializados. A comida é um elemento cultural, para além da função de nutrir, de alimentar o corpo físico, tem a função de entreter, socializar, gerar costumes, inventar ou de criar tradições, se você preferir, apesar que a tradição é um costume inventado, como já dizia Hobsbawm. A comida tem a função de dar identidade ao povo e gerar cultura.

5 – Você acredita que a comida é uma forma de ajudar no desenvolvimento de lugares que são considerados ignorados pelo Estado? Por exemplo, nas férias quando tem uma grande rotatividade de turistas nas diversas regiões da cidade.

Bom, a gastronomia carioca é um atrativo de alto valor turístico. E a comida é um desenvolvedor de economia. Em tempos de crise, as pessoas estão se reinventando na sua forma de sustento, muitas vezes através da gastronomia popular. Basta observar as ruas e a gente consegue visualizar a quantidade de carrinhos vendendo comidas, seja cachorro quente, tapioca, milho assado, churros, amendoim, pipoca, enfim, uma economia alternativa frente a crise de emprego e renda. No caso do subúrbio, assim como em outros espaços da cidade isso é visível. Infelizmente, a gente não percebe e não vê nenhuma preocupação do poder público, no sentido mais amplo, em fomentar educação e negócios para empreendedores. Pensando na comida como um elemento desenvolvedor de determinados espaços da cidade, eu acredito sim, e a Feira das Yabás é um exemplo disso. É um evento que existe há 10 anos. Até as últimas edições em 2018, a feira apresentou toda uma estrutura montada e patrocinadores, mas, no início, as barracas eram formadas pelos que os moradores tinham, utilizando sombreiros e cadeiras de praia, mesinha de bar, toalhas de mesa trazidas pelos frequentadores. Na Feira das Yabás, o costume de trazer a comida para a rua começou de maneira amadora e ao longo dos 10 anos foi se profissionalizando. Outro exemplo, são os vendedores de mate ou de biscoito de polvilho nas praias cariocas. Durante anos não foram oficialmente reconhecidos, não existiu investimento, uma orientação empreendedora por parte do poder público. Enfim, o que quero dizer é que esse tipo de negócio foi se impondo na cultura da praia, até que o poder público reconheceu seu potencial.

6 – Tomando por base o seu artigo “Madureira e Pelourinho: consumo e representação de comidas típicas em festas populares”, como você pensa a relação entre o consumo e as manifestações culturais brasileiras?

Primeiro, é necessário lembrar que o consumo está muito além dessa relação de troca e técnicas comerciais, mercadológicas. O consumo, no seu sentido mais amplo, está na esfera da vinculação, seja social ou econômica. Como nos lembra Michel de Certeau, o consumo está na ordem dos novos usos e modos de fazer, sejam bens materiais como imateriais, como é o caso das manifestações culturais. Quando eu penso a relação entre cultura e suas manifestações, principalmente as brasileiras, eu penso dessa forma, muito ampla. Eu também vou analisar as trocas mercadológicas, aquilo que é vendido, aquilo que é consumido, aquilo que é tido como produto turístico, mas também vou observar nesse sentido amplo, todas as formas de troca e de fazeres dessas manifestações. Então, nesse artigo, especificamente, eu falei do consumo de comidas típicas de duas festas populares de locais distintos, uma na Bahia e outra no RJ, mas que tem muitas semelhanças desde a sua formação da história da cidade, dos espaços, a reurbanização, como significado e os fazeres que eles se dão na contemporaneidade. Ambas as festas foram no ano de 2013 e eu parti para observar o caso, especificamente da comida, como essa comida é tratada e as diferentes formas de consumo que se observa nessas festas.

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Fonte: Fotos Públicas

Falando um pouco da festa de Santa Bárbara (que é uma festa religiosa baiana, antiga, tem mais de 300 anos), eu passei a observar os vários usos que a comida tem em toda sua plenitude. Então, observando o início da festa onde acontece a virada, a missa campal na região do pelourinho (este artigo, inclusive, conta um pouco a história do pelourinho, o que era o espaço do pelourinho no século 16 até o século 19, que ressignificação esse espaço passou a ter na década 80, no qual ele era um espaço degradado da cidade e depois de uma reforma, a partir de 1990 tenta-se revitalizar o pelourinho transformando em polo turístico da cidade e aquela população que vivia ali foi segregada para outros espaços da cidade), a comida se faz presente. Existe uma missa festiva, e como Santa Bárbara é uma entidade religiosa cultuada tanto na igreja católica como nas regiões de matrizes africanas, principalmente no candomblé, a comida é um elemento extremamente presente e atuante, cheio de significados. Essa missa que é um rito da igreja católica se hibridiza com os ritos do candomblé. Então, o rito do refeitório durante a missa é levado cestas imensas contendo bolinhos acarajé e abará, que é da culinária nagô africana. Esses bolinhos são ofertados no rito do refeitório, assim como a uva e o pão que tem o mesmo significado para o rito católico. Então, a comida já começa a fazer parte nesses sentidos. Depois da missa Santa Bárbara, que é a padroeira dos bombeiros e dos mercados, que é o local que se vende comida desde sempre, é oferecido o caruru de Santa Bárbara, que também é um prato de origem africana, gratuitamente e em quentinhas, servido tanto para pessoas de situações de ruas como para todas pessoas que participaram dessa festa indistintamente. São servidas mais de 500 quentinhas para as pessoas confraternizarem e almoçarem juntos. Após o almoço, a festa que até então tinha caráter religioso ganha seu caráter profano e aí existem várias manifestações, apresentações de samba, shows de artistas locais, nacionais etc. Tem toda uma estrutura voltada para a comemoração dessa festa. E aí a gente encontra nas barraquinhas a venda de comida. Tem baiana de acarajé, tem carrocinha de cachorro quente, tem barraca de bebidas, de licores, batidas, caipirinha, churrasquinho, enfim, todo tipo de comidas. Além disso, tem os restaurantes que estão ali em torno do pelourinho e que mantém suas atividades. Então, a comida se faz presente em todo evento desde sua parte religiosa até sua parte profana em todo percurso, e aí quando observo o consumo dessas comidas, percebo que não é apenas a relação de troca (dar o dinheiro e comprar a mercadoria). Está para além disso. A própria forma como as pessoas interagem com o evento também demonstra todo um sentimento de pertencimento para aquela festa, uma motivação de estar junto, de compartilhar com o outro, ainda que, esse outro seja desconhecido. A efervescência cultural daquele momento, a religiosidade, o sincretismo, o gosto pelas artes, as músicas, o samba, assistir as apresentações culturais, de capoeira, maculelê, enfim…

O mesmo é observado na feira das Yabás em Madureira, onde 16 barracas se dispõem no entorno da Praça Paulo da portela e na rua da estrada do Portela, vendendo comidas tipicamente cariocas. E independente de ser uma comida de origem afro, de origem africana, europeia, asiática, a culinária brasileira é extremamente hibridizada. É culturalmente híbrida, formada por várias referências, até porque, a miscigenação brasileira nos permite isso. Então a feira das Yabás comercializa as comidas cercadas de história. As histórias da comida de cada barraca, de cada Yabá (que é uma mulher tradicionalmente conhecida na região da grande Madureira). São pessoas que são personalidades envolvidas com a história do bairro, seja através da escola de samba, da cultura jongueira, dos bailes de charme, dos espaços conhecidos, tradicionais e culturais do bairro. Elas comercializam uma comida que tem a história, como por exemplo, a barraca de doces das netas da Clementina de Jesus, Vera e Janaína.

Vera e Janaína comercializam os doces que a avó as ensinou. Então, todas as barracas têm uma história. Outro exemplo, é Selma Candeia, que faz carne seca com abóbora, que é o prato que o pai dela, mestre Candeia Filho (sambista famoso e compositor), a ensinou. Era um dos pratos que ele mais gostava, mais apreciava. Então, ela recria esse prato e comercializa. Os bolinhos de feijoada que eram feitos com as sobras das feijoadas de domingo, ela reinventa esse prato e comercializa em sua barraca. Além disso, algumas barracas, além de comercializar comida, utilizam aquele espaço para outros tipos de consumo. Então, acontecem recitais de poesias, divulgação das músicas de sambistas famosos, exposições de fotos e várias outras especialidades. Então, de um modo geral, observar as relações de consumo nas manifestações culturais brasileiras, ter esse olhar mais amplo, observar esses novos modos de fazer, de recriar elementos culturais e os novos modos de usá-los, de consumi-los, criando esse tipo de vinculação entre o sujeito, o espaço e esse elemento que está sendo consumido, seja ele material ou não. Isso faz parte da identidade de um povo, de uma sociedade, que mantém ainda que seja revigorada, ressignificada, as tradições de um determinado lugar.

7– Vivendo há muitos anos no Rio de Janeiro, você acredita que a cidade faz jus ao apelido de “cidade maravilhosa”?

Eu acredito que o termo cidade maravilhosa é um termo datado. Vivendo hoje em 2019 e há 20 anos no Rio de Janeiro como usuária da cidade, usuária frequente, cotidianamente, eu não vejo mais sentido no termo “maravilhosa”. Primeiro, que a cidade do Rio de Janeiro é muito grande, é muito fragmentada. Ela é conhecida por ser divida em zonas que têm características muito particulares e muito peculiares.  O Rio de Janeiro hoje vive uma crise, não só financeira, mas política. Além disso, também vivemos uma crise cultural. A falta de investimentos na cultura tem prejudicado seriamente a cidade, a marca e imagem do Rio de Janeiro. E o termo “maravilhosa” é carregado de sentidos muito positivos. Extremamente positivo, aquilo que é maravilhoso, muitas vezes é tido como impecável, de total perfeição, deslumbrante, sem falhas, e o Rio de Janeiro de hoje, para quem vive e consome a cidade cotidianamente, não corresponde mais a esse termo. O Rio é uma cidade grande se comparada ao Brasil. Acho que o termo cidade maravilhosa é muito mais presente e muito mais atuante na história do Rio, em um Rio do passado, um Rio moderno, o Rio do século 20.

8- Você acredita que o samba, o carnaval e outros grandes eventos que ocorrem regularmente na cidade são fundamentais para esse título?

Voltando a questão do termo cidade maravilhosa, eu não acredito mais nesse termo, para mim ele é mercadológico. Eu acho que o termo “Rio Maravilha”, sendo mais leve, comporta melhor. Não tem tanta exigência quanto o termo “maravilhoso”, que já é um adjetivo forte e meio que definido. O samba, as escolas de samba, o carnaval e outros eventos tradicionais da cultura carioca, sim, colaboram para esse termo. Aliás, esse termo foi fundamentado a partir desses eventos, quando ainda nem tinha Sapucaí. As praias, o verão carioca e a beleza da mulher, que naquela época era muito mais exaltada, cunharam tal termo. O samba, o carnaval e todos esses outros eventos vão continuar contribuindo para esse rótulo de cidade turística, de cidade festiva. O Rio de Janeiro carrega esse imaginário de cidade festiva, de comunhão, alegria, de calor. Essa é a imagem que o Rio de Janeiro traz, e todas essas festas e esses grandes eventos contribuem para caracterizar a cidade como “maravilhosa”. Vale ressaltar que esse termo é criado a partir desses eventos, da repercussão que esses eventos têm na história do Rio. Mas volto a dizer que o termo cidade ou Rio maravilha caiba melhor no século 21. Acredito que ele possui uma outra significação.

9 – Entendendo a importância dos megaeventos para as transformações das cidades, na sua opinião quais foram as principais mudanças trazidas pela Copa e Olimpíada para os subúrbios cariocas, em especial para Madureira, que você estuda no seu doutorado?

Antes de falar dessa mudança pós-megaeventos, eu acho importante lembrar que o subúrbio carioca desde a sua formação é um espaço de resistência. Estou falando de resistência cultural, resistência econômica e resistência social, ou seja, de resistência no seu amplo sentido. Mas, por que eu estou falando isso? Porque o subúrbio foi criado numa condição de re-apropriação lá no início do século. Então, ainda falando desse lugar, que foi formado lá no início do século 20 como espaço de resistência, pode-se relembrar que ele carregou consigo o termo subúrbio de forma muito pejorativa. O fato dele estar no subúrbio, ou seja, afastado do centro financeiro, do centro cultural e do centro social – da urbe da cidade -, fez ele ser estigmatizado, como aquilo que é desqualificado, tipo um baixo valor, se a gente pode chamar assim. A partir disso, o subúrbio foi se reinventando ao longo do século 20, e no início do século 21 ele aparece com um espaço de resistência sempre, mas aparece com toda uma efervescência e com uma independência do centro da cidade. Os bairros do subúrbio carioca não dependem mais financeira, econômica e socialmente do centro da cidade.  Tem sua vida própria, tem uma vida no lugar que gira com as próprias pernas.

Então, quando a gente fala dos megaeventos que tomaram a cidade a partir do início do século 21, pode-se observar que o subúrbio também soube se reinventar nesse processo. Esses eventos não aconteceram nos bairros do subúrbio, eles continuam acontecendo no eixos Zona Sul, centro, e agora temos o espaço da zona oeste da Barra da Tijuca, os eventos foram concentrados nessa região, mas as regiões dos bairros do subúrbio souberam se reinventar, se recriar e, a partir disso então, os bairros do subúrbio pegaram carona nessa onda, nesse movimento da economia que é gerada a partir desses grandes eventos. Sendo assim, ela passar a recriar no seu espaço, no seu território, a sua versão para esses eventos. A gente não pode chamar de megaeventos, mas a gente pode chamar de grandes eventos. Então, quando eu passo a ter a parada gay de Madureira, que é uma recriação a partir da parada gay que acontece em Copacabana, em outros espaços, em grandes capitais brasileiras, como parada gay de SP, eu recrio aquele evento com as características daquele lugar. Eu não, as pessoas que organizam o evento e que participam do evento. Então, ela dinamiza o bairro, ela cria novos espaços para grandes eventos. Estamos falando de um lugar onde temos a casa do Império Serrano e a quadra da Portela, que sempre tem eventos, temos também a estação de trem e o Baile de Charme, por exemplo, que acontece debaixo do viaduto Negrão de Lima há mais de 30 anos. A gente dá um novo significado, um novo sentido a esses espaços da cidade, e aí, com a criação, com a chegada desses eventos no Rio de Janeiro, como foi o caso da Copa e das Olimpíadas, a gente tem o Parque de Madureira, que foi criado para trazer um novo espaço de lazer e entretenimento para a cidade. Um enorme espaço de lazer e entretenimento, o Parque de Madureira, que foi criado em 2012, é um local hoje que possui 164 metros quadrados de extensão e vai entre os bairros de Madureira e Guadalupe, muito amplo e transformado em uma das maiores áreas de lazer ao ar livre da cidade, ao lado do Aterro do flamengo, da Quinta da Boa Vista e do Jardim Botânico. Então, a gente traz um espaço novo fora desse eixo Zona Sul-Centro.

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Fonte: Sinaenco

E o que esse Parque de Madureira traz pós-megaevento? Não é simplesmente um espaço ou um momento de lazer, ele é dinâmico. Nele encontra-se uma escola de jardinagem, um centro de educação ambiental, que é voltado para qualificação dos moradores e um jardim botânico, inclusive, com espécies nativas e exóticas que foram feitas perfeitamente pros deficientes visuais, que podem tocar e identificar cada planta pelo cheiro e pela textura das folhas. Além disso, o parque tem quadra de vôlei, futebol, futebol de areia, basquete, slackline, pista de skate e uma praia artificial, que é um espaço de sociabilidade maravilhoso dentro do parque. O próprio parque favorece, em toda a sua extensão, espaços para piquenique, que é um costume, uma tradição, mas que com a reurbanização da cidade, os espaços vão ficando limitados e juntamente com a questão da segurança, o hábito foi diminuindo.

Então, o parque de Madureira oferece essa segurança, até por ser um parque cercado. Fora que tem fonte, tem mesa de dama e xadrez e tem academia para a terceira idade. Mas a gente está vivendo, como falei anteriormente na resposta sobre o termo cidade maravilhosa, as novas políticas públicas que vetam vários projetos, que restringem o investimento. O Parque de Madureira, por exemplo, é um os maiores parques que têm espaço público para a educação e apresentações que está fechado. Então, a gente esbarra com questões políticas, que não ampliam, que não investem nesses espaços da cidade. A gente tem também, em relação ao bairro de Madureira que é o meu lugar de pesquisa, a transformação do bairro em polo gastronômico. Então, toda uma culinária gastronômica que é servida, encontrada nessa região da grande Madureira passa a fazer parte da rota turística da cidade. E isso ganha corpo a partir da realização desses megaeventos na cidade do Rio, que expôs, junto com o parque de Madureira e o Parque de Marechal Hermes, outros espaços que foram criados para comportar os jogos. Tais espaços vão sendo reutilizados, redefinidos.

Enfim, ainda falando desses espaços dentro do bairro de Madureira, a gente pode citar as quadras das escolas de sambas que ganham mais visibilidade. Os eventos que sempre existiram, mas tinham menor proporção, ganham mais visibilidade a partir dessa virada de momento da cidade com os megaeventos e com essa revitalização dos espaços suburbanos. Então, a gente tem as feijoadas que acontecem dentro das quadras da Portela e do Império Serrano, que ganham as ruas e saem do espaço privado para o espaço público e envolvem ainda mais a comunidade e as pessoas que vêm de fora. Além das feijoadas, a gente tem o viaduto Negrão de Lima, que abraça o Baile Charme (que acontece, aos sábados, embaixo do viaduto em um espaço que durante a semana é um estacionamento), e é transformado em um grande pátio de dança há mais de 30 anos. O espaço debaixo do viaduto acaba ganhando mais visibilidade e ressignificações. Outro exemplo de atividades exercidas neste espaço são as brecholeiras, ele abraça as brecholeiras de Madureira. Existe uma grande feira de brechó aos sábados no espaço diurno, é um novo olhar, um novo significado e novas oportunidades do espaço público. Como já citado, o bairro de Madureira é oficialmente tido como polo gastronômico da cidade, então os espaços de gastronomia e culinária, tanto os eventos públicos como os espaços privados, entram na rota de turismo do polo gastronômico da cidade, sendo assim, um convite ao turista para participar e estar presente nesses locais do subúrbio carioca. Só voltando um pouquinho sobre o polo gastronômico, os bairros da grande Madureira entram na rota de um projeto articular que é um campeonato “Comida de Buteco”, uma boa parte dos vencedores deste campeonato estão no subúrbio do Rio, logo, isso também entra na rota de turismo, principalmente turismo gastronômico da cidade. Existe uma autora, que é a Fernanda Sanchez, que tem um termo que eu gosto muito. Ela fala da cidade tornada um espetáculo, então a partir desses eventos, a cidade se dinamiza, se reinventa, então novos espaços ganham novas funções, novos usos, colaborando, o que falei anteriormente, no consumo que se faz presente, no seu sentido mais amplo. A Fernanda Sanchez usa muito o termo de noção de cidade espetáculo, que é a compreensão da influência crescente da imagem urbana com linguagem sintética, ou seja, aquela linguagem que consegue expressar de forma convincente os aspectos selecionados da vida urbana com a linguagem sintética. Então, a recriação desses eventos, ao seu modo e a sua maneira, os novos usos e os novos espaços, com as características daquele lugar. Então a partir desses megaeventos que aconteceram na cidade, eu faço a pergunta, subúrbio para quem? O subúrbio não comporta mais esse tom pejorativo, desqualificado, dependente. Os megaeventos, esse dinamismo de eventos na cidade veio a favorecer ainda mais a efervescência cultural dos bairros do subúrbio, gerando uma economia criativa. O subúrbio é propulsor da economia criativa da cidade.

10 – Para terminarmos nossa conversa, o subúrbio carioca é repleto de diversidade e oferece uma variedade programação cultural a seus moradores e visitantes. Um desses programas é a Feira das Yabás, que reúne música, dança e comida no bairro de Madureira. Como você julga que esse espaço democrático da cidade trabalha com as questões de memória e identidade de uma parcela expressiva da população carioca? Mais ainda, qual seria o papel da Feira Yabás na ressignificação do subúrbio carioca e de sua autoimagem?

Respondendo a essa primeira pergunta, enquanto pesquisadora desse campo, o que eu acho fantástico da feira dos Yabás é a recriação, é a vontade, não só do produtor marquinhos, que é o idealizador da feira mas principalmente das Yabás, que comandam as suas barracas e das pessoas que estão envolvidas diretamente em suas barracas. E aí a gente vai ampliando isso para a produção do evento, para os moradores da região, até chegar nos frequentadores da freira.

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Fonte: O Dia

O que eu acho fantástico da feira, é que ela faz questão de se afirmar como um evento que traz uma comida boa cheia de significados. Então você não vai a feira simplesmente pra comer uma feijoada, aquela feijoada tem uma história, ela tem um passado. Ela tem, não apenas a memória afetiva de quem a consome, porque quando os frequentadores vão a feira das Yabás, eles vão carregados de uma memória afetiva individual, cada pessoa tem sua memória afetiva, que vai comungar como uma memória coletiva, mas cada comida tem uma história. Isso é importante que seja dito, e essa história é a história da formação daquele lugar. Que lá no final do século 19, quando ainda era uma fazenda, era a freguesia de Madureira, que antes era freguesia de Irajá. A cidade não era composta de bairro como ela é hoje e cada barraca daquela é carregada de toda a sua história cultural.

Então, a feira das Yabás, é um evento que procura reproduzir os almoços de domingo nos quintais das casas do subúrbio. A sua missão social é essa. É reproduzir almoços de domingo que acontecem nos quintais das casas dos moradores do subúrbio. A feira vai reproduzir histórias como a de dona Edite Maria de Jesus, que foi uma das fundadoras da Portela, de dona Eulália, que é uma das fundadoras do jongo da serrinha e da tia Maria do jongo, que está aí prestes a completar 98 anos e é a carteirinha número um do império serrano e fundadora da casa do jongo, que tem todo um trabalho cultural, social inclusive, e gastronômico, dentro da casa do jongo. Quando a gente volta para entender essas histórias, a gente vê que as festas sempre regadas com comida, aconteciam no quintal das casas dessas pessoas. Então, o jongo que, em outros espaços das cidades, eram proibidos, aconteciam de uma maneira muito sutil nos fundos das casas e nos terreiros de candomblé. Essas manifestações, essas ocorrências da cultura, sempre tiveram presentes no passado da história de Madureira. Isso foi passando de uma geração para outra, então quando conversamos com as Yabás, entendemos a história da família delas, a história de vida delas, a gente vê que aquilo é uma recriação dessa história, com um novo significado. O subúrbio é aquele lugar que ainda abriga a mistura entre o rural e o urbano dentro da cidade do Rio de Janeiro.

O subúrbio não é aquele bairro essencialmente de prédios, Você encontra muitas casas e pessoas que sentam na porta de suas casas. Você ainda encontra uma arquitetura tipicamente suburbana, uma arquitetura do início do século 20, algumas casas que mantém esse visual, ainda bucólico. Não que o subúrbio seja um espaço bucólico, mas ele ainda carrega uns lugares assim, com essas características. Então, essa comida vem carregada de significados e de fatos históricos. Quando não existiam quadros nas escolas de samba, não existia nem sedes de escola de samba, os ensaios dos desfiles, das músicas, das composições, eram feitas no trem. Então, a recriação do trem do samba, que é um evento que acontece para comemorar o dia nacional do samba, em dezembro, que também é organizado por Marquinhos de Oswaldo Cruz, reproduz exatamente esse movimento. Os compositores, como Paulo do profeta, Antônio Rufino e outros se reuniam no trem que partia às 18 horas e 4 minutos da Central do Brasil com destino a Oswaldo Cruz e iam nesses percursos ensaiando. As esposas de alguns sambistas para arrecadar dinheiro faziam quitutes, comidas e vendiam no trem, porque era a hora que os trabalhadores saíam dos seus trabalhos em direção às suas casas com fome. Então, se vendia comida no trem e a gente começa a observar que todo um comportamento que a gente visualiza hoje nas ruas, vem lá de trás. Como não tinham sede, as organizações, as reuniões, os ensaios, aconteciam sempre nos quintais das casas dessas pessoas e sempre regado a comidas, a comemoração e a festejo. Fora esse evento particular, comemorações familiares mesmo, aniversários, casamentos, tudo era comemorado no quintal da casa e era sempre transformado em almoço ou jantar.  Na maioria das vezes, almoço. Então, a missão da feira das Yabás é exatamente recriar esse momento de união, das pessoas, das famílias, independente do que se conceitua família. É o prazer de estar junto, de compartilhar, o que Maffesoli chama de proxemia, as pessoas compartilharem esses momentos, vivenciarem juntos essa troca afetual e cultural. Ainda falando sobre esse espaço democrático da cidade, um fato curioso que a gente observa nas feiras das Yabás é que é um espaço público da rua transformada em um espaço privado das pessoas. A feira faz questão de acontecer na rua em um sentimento de pertencimento privado, como se fosse um quintal de suas casas. Isso é dito para mim a cada vez que eu vou fazer entrevista de campo. São dois termos que aparecem pra mim muito claramente, na pesquisa: o sentimento de estar no quintal de casa (para os que moram em casas) e o imaginário da casa da avó (para aqueles que moram em apartamentos). A feira das Yabás também cunha o termo “comida de vó”, essa sensação de comida farta, comida para muitas pessoas. Um outro termo que encontro e que tenho trabalhado na minha tese é “a comida de subúrbio”. As pessoas dizem que iam comer a comida de subúrbio, tal termo significa comida para muitas pessoas, comida em grandes quantidades, é uma comida que não se come só, é uma comida que se consome cercada de conversa, onde as pessoas se encontram cercadas de energia para compartilhar e conversar. Mas em sua grande maioria, é uma comida de celebração. A feira, que acontece aos domingos, tem essa função de recriar o espaço do almoço de domingo, prolongando uma memória coletiva das pessoas que ali frequentam. Para falar da identidade, a feira das Yabás é um evento que reafirma a cidade suburbana, que está representado na comida. É muito essa comunhão de estar junto! Eu chego a brincar que a comida da feira das Yabás é a comida não Light. Lá você vai encontrar feijoada, rabada, pastel, tripa lombeira, vaca atolada, frango com quiabo, carne seca com abóbora, peixe frito, macarrão com carne assada… é isso que vai encontrar e tudo em grande quantidade com muita alegria e satisfação. Então isso passa a identidade carioca e a identidade suburbana, volto a dizer, Madureira, os bairros que convém nessa região, mas falando especificamente de Madureira, são os bairros que permanecem em resistência cultural, em resistência da identidade do Rio de Janeiro. É importante a gente lembrar que a maior parte do Rio de Janeiro é formada pela zona oeste e norte, então os bairros do subúrbio fazem parte da maioria da cidade do Rio.

Então, é importante se dizer que a feira das Yabás faz parte da própria identidade da cidade. Eu acho que nessa virada de século, claro que isso não é feito em um tempo rápido, mas eu acho que ela ganha mais visibilidade e os eventos ajudam a cidade como um todo ter um novo olhar sobre um subúrbio. A feira das Yabás completou 10 anos e foi denominada Patrimônio do Estado do Rio de Janeiro. Então, oficialmente esse evento faz parte do roteiro turístico do Estado, ganha status de lei e aí espera-se que a partir disso, o Estado do Rio tenha um novo olhar para feira das Yabás. Por que eu digo espera-se? A atual política do Rio de Janeiro não tem liberado recursos, então a feira, que era um evento que acontecia mensalmente, e foi até o ano de 2015, começa a sofrer uma série de baixas, falta de reconhecimento. Por isso, ela deixou de ser mensal, até que a prefeitura libere mais investimentos públicos, que é o que mantém e sustenta a feira. Para o ano de 2018, foram previstas quatro edições e só aconteceram duas e não sabemos como ficará para 2019. Então, percebemos que não existe um interesse do poder Municipal em manter eventos que remetem, principalmente, a Cultura negra. A feira das Yabás não é um evento religioso e não se trata de comida de santo, ela apenas usa o termo “yabá”, que é um termo em iorubá, que significa mãe, rainha, aquela que apoia os seus filhos, aquela que alimenta seus filhos. Quem são as yabás do candomblé? São as mulheres que preparam a comida dos santos, então, o termo “yabá” para a feira tem esse significado: aquelas mulheres que preparam comida para muitos filhos. Em um artigo sobre Madureira, eu conto o caso da dona Neusa, que pediu demissão do restaurante que trabalhava, porque o patrão queria que ela reaproveitasse as sobras de comida e ela disse: “se eu não faço isso pros meus filhos, por que eu faria pros outros?”. Daí ela pede demissão e como ela já era frequentadora da Portela, ela pede para fazer parte da feira das Yabás e ja há muitos anos, ela participa e faz bolinho de bacalhau e peixe frito preparados com muito amor. Logo, este é um discurso recorrente na fala das Yabás: amor e afeto. E aquelas que entrevistei novamente, fazem questão de reafirmar isso. O afeto e a dedicação que elas dão a comida e o respeito que elas têm ao alimento que é servido.

Entrevista com Adelaide Chao – Madureira e o subúrbio carioca