Por Raquel Barbosa | Abril 2023

Desde sempre, a moda, peças de roupa e o jeito de se vestir refletem o momento que estamos vivendo enquanto sociedade. As passarelas, as tendências e as semanas de moda eram antes um espaço dedicado exclusivamente às grandes marcas, que limitavam a moda a um certo padrão específico que refletia os interesses dessa “elite fashion”, dominada pelos grandes nomes da alta costura. Da Idade Média até a contemporaneidade, podemos acompanhar como o conceito de “tendência” reflete no que consideramos como caro ou barato, fino ou grosseiro, e principalmente, feminino e masculino. Atualmente, com o movimento de democratização da moda e as marcas emergentes tomando espaço na mídia, pautas importantes como feminismo, a positividade corporal e o debate sobre gênero e sexualidade tomaram conta das passarelas e editoriais de moda, trazendo a questão do movimento “genderless fashion” no Brasil e no mundo. Levantando a pauta da moda sem gênero por marcas nacionais, o trabalho “Com que gênero eu vou? As representações do genderless na publicidade de moda em case da marca C&A” tem como objetivo geral “abordar as representações do genderless e como estas configuram as desconstruções de gênero na campanha Tudo Lindo & Misturado da marca C&A.” (p. 6)

Lançado em 2016, a campanha “Tudo lindo & misturado”, buscava alinhar a marca ao público jovem, com o objetivo de “conectar as pessoas às possibilidades da moda”. A campanha contou com três peças publicitárias que foram exibidas em horário nobre na TV aberta: Despertar, Misturados e Encontros. Questionando “a formação das identidades dos indivíduos através dos elementos da moda do vestuário”, o trabalho utiliza a Análise de Conteúdo como procedimento metodológico, investigando os três comerciais individualmente e também pesquisa bibliográfica, reunindo material escrito aprofundado, a partir de autores focados em temas como identidade de gênero, moda sem gênero e sexualidade.

O primeiro comercial, “Despertar”, tem 1 minuto e 30 segundos de duração, e mostra pessoas nuas correndo em um campo, indo de encontro a diversos manequins. As cenas mostram mulheres vestindo roupas masculinas e homens usando roupas femininas. Já vestidos, eles correm em direção a ribanceira de uma praia e tiram as roupas novamente. A autora afirma que, nesse primeiro comercial, não há um aprofundamento na questão do genderless, como a desconstrução do gênero em si: “Um homem vestindo uma peça de roupa feminina e uma mulher uma peça masculina. A proposta é de desconstrução de alguns padrões, mas não dos gêneros como um todo.” (AFONSO, 2016, p. 70), ou seja, a inversão de papéis que são esperados para cada um desses gêneros. A autora também critica a falta de diversidade de corpos, pois, apesar do comercial propagar, de certa forma, a pluralidade de gênero, peca em trazer apenas pessoas dentro de um certo padrão estético de magreza.

O segundo comercial, “Dia dos Misturados”, tem um minuto de duração e foi um especial de Dia dos Namorados dentro da campanha. O vídeo se passa em um hotel, onde aparecem casais atravessando portas (cabine telefônica, elevador, quarto, banheiro) e saindo de lá com roupas trocadas. Homens de meia-calça e vestido e mulheres de blusa masculina e jeans. No final do comercial, o recepcionista desliga as luzes do restaurante e, quando a luz acende, o casal sentado à mesa também aparece com roupas trocadas. O vídeo finaliza com o slogan “Misture. Ouse. Experimente.” aparecendo em um letreiro neon em cima do hotel. Novamente, a autora critica a falta de diversidade do comercial, não apenas por serem casais dentro da estética magra e, em grande maioria, pessoas brancas, mas também por serem apenas casais heterossexuais, mesmo que a pauta do genderless seja amplamente defendida pela população LGBTQIAP+. Esse comercial foi, talvez, o de mais destaque na campanha, principalmente pela repercussão entre o público conservador, que considerava o comercial ofensivo contra os princípios cristãos.

O terceiro comercial, “Encontros”, também tem um minuto de duração e foi um especial de Dia dos Pais. É o único da campanha que não se aproxima tanto da questão genderless e de estilo de roupas, mas a autora decidiu manter a análise por destacar o posicionamento da marca e por ser o único que fala um pouco mais abertamente sobre sexualidade, tópico que não apareceu, visualmente, nas outras duas peças, que eram focadas em expressão de gênero. O comercial mostra um grupo de pessoas, organizadas e em fileiras, de frente para um outro grupo, de homens mais velhos. Os personagens interpretam momentos de trabalho e lazer de cada pai e filho, todos com uma certa relação. O comercial termina com os filhos indo ao encontro dos pais, aparecendo nos últimos frames, uma das jovens caminhando até dois homens mais velhos ao mesmo tempo, deixando subentendido que seria um casal gay. Aparece novamente o slogan “Misture. Ouse. Experimente.” A autora reforça que: “Ao mostrar o casal, a marca sugere que existem identidades sexuais que desviam da norma heterossexual vigente e dando visibilidade a esse tipo de comportamento e identidade” (AFONSO, 2016, p. 94), mas, ainda assim, que existem estereótipos de gênero que são reforçados, como na relação de entre o pai músico e a filha bailarina. Quando o casal homoafetivo aparece, também encontramos marcas destes estereótipos, pois, mesmo sendo um casal não heteronormativo, um aparece com roupas mais escuras e o outro com roupas mais leves e coloridas: “Um representando a mulher do casal e o outro o homem, pois, no senso comum, assim se formam os casais homossexuais” (AFONSO, 2016 p. 95). Apesar das polêmicas em toda a campanha, essa peça foi uma das mais elogiadas nas redes sociais, trazendo uma resposta mais positiva à marca após a polêmica da peça anterior.

A escolha da marca pela autora se deu, principalmente, por ser uma marca com uma ampla história dentro do fast fashion brasileiro, sendo importante para o mercado de moda nacional por conseguir espelhar tendências mundiais em roupas e calçados por um preço mais acessível para a população. A C&A é uma das marcas que mais se comprometem em refletir seus valores de responsabilidade social e a transparência, lançando anualmente relatórios de compromisso com a sustentabilidade e reuso de materiais. A campanha baseada em moda sem gênero foi claramente uma tentativa de se alinhar as novas demandas sociais dentro da publicidade, que leva em consideração, principalmente, os consumidores que são cada vez mais engajados nas pautas LGBTQIAP+ e querem se sentir representados, entretanto, vários deslizes foram cometidos que afastaram a marca da proposta, como destaca a autora: ”A tentativa da C&A de propor uma moda genderless não foi completamente fiel ao conceito complexo que o termo carrega, mas funciona como proposta desconstrucionista, pois sugere uma maior liberdade de expressão das identidades dos sujeitos, que se afasta do padrão usual.” (AFONSO, 2016, p. 96) Mesmo com essa certa superficialidade, a campanha somou milhares de compartilhamentos nas redes sociais e gerou diversas discussões sobre moda e expressões de gênero, quando ainda não se retrata sobre o tema nas marcas nacionais, trazendo, assim, um retorno relativamente bem sucedido.

 

 

Com que gênero eu vou? As representações do genderless na publicidade de moda em case da marca C&A.