*Por Cristina Nunes de Sant´Anna | Janeiro 2023

 

Em 8 de janeiro, bandos de terroristas invadiram e depredaram três palácios públicos e pilares da democracia brasileira: o do Planalto, o do Congresso Nacional e o do Supremo Tribunal Federal.  Defecaram e urinaram na nossa história: a História do Brasil. Pregavam o golpismo ao resultado legal das eleições presidenciais acorridas em 2022, em dois turnos, no mês de outubro. Eleições que conferiram, pela segurança e qualidade do funcionamento das urnas eletrônicas, a vitória do candidato que obteve mais votos, como determina o processo democrático em vigor: Luis Inácio Lula da Silva. Façamos, então, um exercício de memória.

Graças, então, à rapidez das urnas eletrônicas, o resultado do pleito foi conhecido já na noite do dia 30 de outubro, data do segundo turno das eleições.  Acordei no dia seguinte (um primeiro de novembro) triplamente feliz: a nossa democracia vencera — apesar das sucessivas tentativas de golpes do candidato não reeleito —, comemorava-se o centenário de morte do jornalista e escritor Lima Barreto (1881-1922) e era também meu aniversário. O romancista nos deixou inestimável legado em obra caudalosa, entre romances, crônicas e ensaios, artigos, contos, reportagens.

Mas antes de seguir com o autor, é preciso dizer que voltar a seus escritos, relê-los e falar deles deram-me potência, sustança e tutano para resistir ao mal em forma humana (sic) que esteve no Palácio do Planalto entre 2018 e 2022. Contudo, se estamos em 2023 e a maldade já foi embora (fisicamente, ao menos), por que falar de um escritor cujo centenário já passou? Porque a democracia foi vitoriosa nas eleições, na posse presidencial, e venceu o terrorismo do dia 8 de janeiro.

Ou algum de nós vai se esquecer de ter assistido à barbárie? E para que memórias nos sirvam de lições, a fim de impedir que voltem a tentar acabar com nossas democracia, educação, culturas, história e meio ambiente, para que cuidemos de nosso país e uns dos outros, como nos lembrou o presidente Luis Inácio Lula da Silva, em sua posse, vamos nos escorar em Lima Barreto.

O escritor: Affonso Henriques de Lima Barreto merece, sim, ser comentado, em 2023, 2024…, bem como sua obra ser lida, relida e relembrada. Ambos teimam em nos oferecer inspiração e resistência na defesa dos valiosos papéis da comunicação e do conhecimento, na construção de memória como resistência e forma de mudança de rumos. Do começo, então. O escritor, jornalista, romancista e cronista negro Lima Barreto escolheu como bandeira de sua vida uma escritura de resistência e “a resistência é um movimento ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito a seu contexto existencial e histórico”. (BOSI, 2002, p. 134).  

Diferentemente da maioria de seus pares, o romancista fez falar múltiplas vozes. Sobretudo as de pobres, pretos, loucos, desvalidos, esquecidos, perseguidos. Vozes de quem quase ninguém falou. Gentes tais quais as que foram praticamente proibidas de existir, entre 2018 e 2022. Lima empenhou-se em protagonizar em seus textos temas e personagens daquele governo excludente e, muitas vezes ameaçador, da Primeira República. Tal qual o que vigorou de 2018 a 2022.

Assim é quando o escritor nos descreve o personagem Lucrécio Barba-de-Bode, que tenta fraudar eleições, ameaçar eleitores, como os Lucrécios do século XXI, quando questionam o sistema eleitoral brasileiro e o resultado do pleito. Terroristas e conspiradores, golpistas conchavados diante de quartéis, fechando vias, destruindo, arrasando, aniquilando, com suas ignorância e inveja; com seu ódio à alegria, à igualdade, à democracia. Sua inaptidão para a eudamonia dos gregos: grosso modo —  a busca da felicidade —  sem impedir e trucidar a felicidade do outro.

Barba-de-Bode era um cabo eleitoral da pior espécie — a bem da verdade um capanga eleitoral — que vivia bem próximo da criminalidade. Bode queria também golpear, com violência, a democracia, bem como eleitores que não votassem no candidato que o contratara para o abjeto serviço.  

Nosso Lima Barreto foi um crítico ferrenho de tais tipos. O jornalista quis ser — e foi — “combatente, engajado e comovente.” (MACHADO, 2002, p. 60). Seus escritos de amplo espectro são um documentário fundamentado de um sistema que passou de uma sociedade escravista, para uma falsa democracia republicana, sustentada por oligarquias, que deixaram descendentes a sair de suas cloacas, em pleno século XXI, 

A República: Foi com um marechal adoentado que se golpeou a monarquia e se proclamou a Primeira República no Brasil, em 15 de novembro de 1889.  Lima, em crônica feita para Revista ABC, sustenta: “No fundo, o que se deu em 15 de novembro foi a queda do Partido Liberal e a subida do Conservador, sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados. Isto de Benjamin Constant foi uma isca que os ‘matreiros’, ‘bois de coice’ e ‘rapacocos’ de igual jaez, se serviram para ‘forrar’ a opinião da força e se apossarem do poder”. (BARRETO, Feiras e Mafuás, 1956, p.49). 

Quanto ao Exército, uma das mais poderosas forças da Primeira República, “pregava a supremacia da República, por não ser hereditária, e defendia uma República autoritária e reformista”. (LOPEZ, 1997, p.13).  

Acrescenta Murilo de Carvalho: “A prevenção republicana contra pobres e negros manifestou-se na perseguição movida contra capoeiras, na luta contra bicheiros, na destruição pelo prefeito florianista Barata Ribeiro, do mais famoso cortiço do Rio, o Cabeça de Porco, em 1892, (…) isto confirma o profundo abismo existente entre os pobres e a República”. (CARVALHO, Os Bestializados, p. 3).

 A Memória: Registrar é criar memórias na história humana. É tornar possível que cada geração se aproprie da bagagem cultural produzida ao longo de todo o desenvolvimento de nossa espécie. Walter Benjamin, em seu texto O Narrador (BENJAMIN, 1993), comenta que a crônica nos remete à deusa da memória, Mnemosine, venerada como uma das deusas mais poderosas para os gregos, que consideravam ser a memória o catalisador da razão. Segundo ainda os gregos, a deusa concedeu a nós a responsabilidade e o poder de memorizar, isto é, de reter conhecimento e de transmiti-lo. Ela é aquela que tudo se lembra e, por isto, teria sido a criadora da linguagem. Ora, quando falamos e nomeamos, não damos vida e voz a quem não pode ou não tem mais como fazê-lo? O papel da memória, contudo, é mais do que reviver o passado. É nos tornar dignos de nós mesmos, olhando o passado e avaliando o que merece ser revisto ou não. Somos todos atores da construção de memórias: uma construção social, que reforça identidades individuais e coletivas. Pelo fato de ser socialmente construída, a memória é polifônica. Dela emergem muitas vozes singulares, que podem inspirar futuro. Futuro que só passa a existir quando nos dispomos a fazê-lo.

 Um feliz 2023, então, sob os auspícios de Lima Barreto. Que ele sua obra nos sirvam de memória para construir o arcabouço do amanhã, que está sempre por fazer.

* Jornalista, doutora em Ciências Sociais pela Uerj, pesquisadora dos Laboratórios de Comunicação,  Cidade e Consumo (LACON) e do Harpia, de Patrimônio Cultural e Propriedade Intelectual, ambos da Uerj. Conselheira da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e integrante das comissões de Educação e Cultura da Instituição.

 

 

Referências:

BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. SP: Brasiliense, 1956.

BENJAMIN, Walter. O Narrador”. In:____.Magia e Técnica, Arte e Política – Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. SP: Brasiliense, 1993.

BOSI, Alfredo. Literatura de Resistência. SP: Cia da Letras, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi. SP: Cia da Letras, 2005.

LOPEZ, Luiz Roberto. República. SP: Editora Contexto, 1997.

MACHADO, Maria Cristina Teixeira. Lima Barreto: um pensador social na Primeira República. Goiás: UFG, 2002.

LIMA BARRETO, LUCRÉCIOS BARBAS-DE-BODE E EUDAMONIA: A DEMOCRACIA TRIUNFOU.