Daniela Menezes Neiva Barcellos | Dezembro 2022

 

Ao lançar um olhar sobre os primeiros registros da conexão entre comensalidades e vínculos, ao longo da história, desde quando o homem desperta sua compreensão quanto ao seu pertencimento à coletividade, representações de cenas de caça nas cavernas e o uso do fogo para cozimento de alimentos, no período Paleolítico, indicam as origens do que nos une em humanidade: o ato de comer. Neste instante, também começam a se construir as relações em torno do alimento.

A alimentação e o ato de comer são antes de tudo expressões de cuidado (CONTRERAS, GRACIA, 2011; ROVALETI, 2013). Após o nascimento, a necessidade de alimentar-se antecede até mesmo a aprendizagem da linguagem. Durante a vida, a alimentação e a comensalidade participam de todo processo comunicativo do ser humano. (ROVALETI, 2013). Contextos de comensalidade protagonizam efeitos marcantes em distintas culturas e realçam a dimensão das práticas do cuidado em todos os momentos do cotidiano. Partindo dessas reflexões, como o vínculo entre alimentação e cuidado se estabelece em processos de adoecimento? Qual o significado da alimentação para um indivíduo portador de uma doença que ameaça a vida, como o câncer? O que a alimentação comunica quando se está diante da morte? Esses são os dilemas despertados pela obra fílmica “Wit – Uma lição de Vida”. Com o olhar voltado para o cinema como uma janela para enxergar os fenômenos do cotidiano, chamou-nos atenção a cena de comensalidade em que uma enfermeira oferta um picolé a uma paciente.

Unidos aos campos das comensalidades, da bioética e das narrativas, investimos esforços teóricos na produção do estudo “Quer um picolé?” Comensalidade, bioética e câncer no cinema”, que desenvolvi com as pesquisadoras Mariana Fernandes Costa, Bruna Cezar Dniz e com o pesquisador Antonio Tadeu Cheriff dos Santos, do Núcleo de Pesquisa e Estudos Qualitativos do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Nosso objetivo foi compreender os sentidos e significados das narrativas que envolvem a comensalidade no contexto das práticas de cuidado de pacientes com câncer a partir do cinema, pela obra fílmica Wit – Uma lição de vida, privilegiando a cena da comensalidade do picolé, eixo central deste estudo.

O filme mostra o processo de adoecimento por câncer e os conflitos relacionados a um momento marcado pelas alterações corporais, lacunas no cuidado e tomada de decisões relacionadas à vida e à morte. Representa toda uma reflexão acerca dos cuidados clínicos e paliativos, assim como a necessidade da existência dos protocolos de comunicação e possíveis cenários de evolução e tratamento do câncer. A partir da cena em que a enfermeira, Susie, oferece um picolé à protagonista, Vivian, doutora em Filosofia e professora de poesia, uma série de sensibilidades afloram. “Quer um picolé?” é uma pergunta que surge como uma tentativa de oferecer conforto, acolhimento. As narrativas que se apresentam na sequência revelam memórias e a sociabilidade através do alimento compartilhado. A partir desse momento em que Susan divide o picolé com a enfermeira, revela-se um ato de amizade e intimidade. A comensalidade que surge neste contexto articula cuidado baseado na escuta e no encontro, as personagens discorrem sobre a evolução do câncer e tratamento.

Na perspectiva do estudo, foi fundamental reconhecer que comensalidade, bioética e oncologia são temas interdisciplinares que visam o entendimento integral do ser humano. Enquanto ciência da vida, a bioética perpassa por diversos aspectos no processo saúde – doença, desafios atuais na prática do cuidado. Consideramos a partir da cena de comensalidade no filme as dimensões acerca da identidade no adoecimento e no cuidado, acessado por meio da simplicidade na comensalidade. Após revermos o filme muitas vezes na busca por indícios na análise cinematográfica (e convidamos você a assisti-lo antes de ler o estudo na íntegra), notamos que as escutas e as narrativas na cena do picolé acionam subjetividades que envolvem o cuidar de si e das pessoas num ato de amor e de convivência.

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Este estudo integra a coletânea “Comensalidades em narrativa, estudos de mídia e subjetividade” publicada pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA). A obra faz parte da Série Sabor Metrópole, volume 13, organizada pelo Nectar (Núcleo de Estudos sobre Cultura e Alimentação) e pelo Lacon (Laboratório de Comunicação, Cidade e Consumo). Corresponde ao sétimo livro publicado através da Rede Ibero-americana de Pesquisa Qualitativa em Alimentação e Sociedade (REDE NAUS). Esta iniciativa interdisciplinar tem à sua frente o Instituto de Estudios sobre la Ciencia y la Tecnología, da Universidad Nacional de Quilmes (IESCT), na Argentina; o Laboratório de Pesquisa em Comunicação, Interação e Cultura (Lampe) e o Núcleo de Estudos sobre Alimentação e Cultura (Nectar), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Comensalidades em narrativa, estudos de mídia e subjetividade está disponível no Repositório Institucional da Universidade Federal da Bahia. Ótima leitura!

 

Referências:

ROVALETI, M. L. La sociedade post-moderna como crisis de la comensalidad (The post-modern
Society as a crisis of the commensality), Vertex, Los Angeles, v. 24, n. 103, p. 405-409, 2013.

CONTRERAS, J.; GRACIA, M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2011.

“Quer um picolé?”: Comensalidade, bioética e câncer no cinema