Rafael Nacif de Toledo Piza | Junho 2022
Para uma compreensão complexa (Morin) dos estudos de mídia e de sua importância e pioneirismo no âmbito do que as agências oficiais de fomento à pesquisa intitulam de Ciências Sociais Aplicadas, é fundamental um retrospecto historiográfico dos meios de comunicação que redundam hoje na digitalização do conhecimento. As mudanças epistemológicas decorrentes do novo campo que se abre com o estudo de mídias resultam de um processo progressivo de aceleração inédita dos fluxos de informação e de seu processamento inteligente, com posterior conversão em conhecimento.
O primeiro aspecto que chama a atenção de teóricos de comunicação como André Lemos, Nicholas Negroponte, Marshall McLuhan, Erick Felinto, Vinícius Pereira, Paul Virilio, Massimo Canevacci, Richard Sennet, Fredric Jameson e George Yúdice, para citarmos apenas alguns, é a compressão das dimensões espaço-temporais tradicionais por meio da codificação binária de todo tipo de produção simbólica (Geertz, Saussure, Pierce, Pignatari, Barthes) em algarismos matemáticos: 0 e 1. A comunicação digital, fundamentalmente, é presença e ausência, fantasmagoria e penetração intercaladas, capazes de sintetizar e virtualizar (Lévy) todo tipo de produção sígnica.
Na comunicação digital, o sonho da enciclopédia iluminista do séc. XVIII e da biblioteca total de Borges ganha concretude via técnica. Como afirma Lemos em “Cibercultura”, comentando Simondon.
“A tecnologia moderna vai se caracterizar pela instauração de máquinas e sistemas maquínicos que vão, pouco a pouco, afastando o homem do que até então caracterizava a relação homem-técnica: a manipulação de instrumentos e ferramentas” (p. 30).
A eletro-eletrônica aprofunda esse processo e radicaliza a inovação introduzida pelos tipos móveis de Gutenberg no séc. XV. A imprensa, tida erroneamente como sinônimo de mídia, ganha relevância na dinâmica social ao representar por meio dos jornalistas e cronistas a forja de uma opinião pública. A ideia de liberdade dos meios de comunicação como veículos de controle das instituições sociais (governo, escola, família, religião, etc.) na ordem democrática pós-monárquica Ocidental resultou em avanços nos direitos humanos, principalmente na conquista de liberdade para as mulheres e minorias étnicas, raciais e sociais, além da promoção de princípios e valores gerais sobre os direitos fundamentais do homem.
A discussão do mito da caverna de Platão que detalha a supremacia do mundo das ideias sobre o mundo físico, na Grécia Antiga, por meio da metáfora das sombras projetadas pela luz do sol no maciço de pedra onde estão isolados um grupo de humanos reverbera na ideia de virtualização que desenvolve Lévy em “Tecnologias da inteligência”. Em Platão, pela primeira vez, associa-se s técnica aos destinos do homem e da pólis. O artista possuidor do dom da tekhnè é um imitador, produtor de cópias e simulacros. Objetos imitam o ser autêntico do mundo das ideias: o virtual. O objeto é uma atualização/presentificação (Lévy) da ideia/virtual (Platão/Lévy).
Em “A dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer, da Escola de Frankfurt, desenvolvem uma espécie de sociologia da arte criando o conceito de indústria cultural. Ancorados na visão da reprodutibilidade da obra de arte analisada por Benjamin, os pensadores preocuparam-se em identificar o motivo pelo qual a humanidade produziu no séc. XX, a despeito dos investimentos em ciência, tecnologia e esclarecimento, duas grandes guerras cujos episódios mais bárbaros dizimaram cidades instantaneamente como em Hiroshima e Nagasaki, assim como aconteceu com o totalitarismo fascista e nazista na Europa, que os expulsou de suas pátrias. No volume, Adorno e Horkheimer concluem que tanto o capitalismo quanto o socialismo produziram a barbárie totalitária em seu estilo: no Ocidente, o belicismo medieval, o imperialismo multinacional; e no Oriente as ditaduras comunistas e suas economias planificadas com restrições imensas às liberdades individuais. Adorno e Horkheimer, de forma pessimista para alguns, identificam a barbárie como originada pela instrumentalização da razão, cuja finalidade está sendo reduzida a princípios de incremento do poder e do valor de troca (Debord). No fim dos anos 1970, no College de Frances, Roland Barthes, cria uma visão intermediária que procurou equilibrar o debate famoso sobre as consequências dos meios de comunicação de massa (MCM) para o público. Umberto Eco documentou a discussão em “Apocalípticos e integrados”. Os apocalípticos são aqueles teóricos alinhados à alienação inequívoca promovida pela indústria cultural, enquanto os integrados (como Rosenberg e White), defendem as contribuições dos MCM para o progresso cultural da humanidade.
Para Lemos: “A cibercultura radicaliza o espetáculo, já que os mass media, seus principais atores, são problematizados com a existência dos novos media digitais, detentores de estrutura e funcionamento diferenciados. A sociedade do espetáculo é resultado do modo de produção capitalista industrial aplicada ao entretenimento e à comunicação. Como afirma, o espetáculo é a meta do consumo capitalista, sendo a negação da vida. A cibercultura parte do terreno constituído do espetáculo para superá-lo. Na modernidade, o espetáculo destinou-se a tornar o mundo reificado, sendo resultado direto da requisição energética e material da natureza.
É a partir do séc. XIX que Gianni Vattimo identifica a consolidação “do mito supremo da modernidade: a transparência. TUDO DEVE SER VISTO, ANALISADO, AUSCULTADO SOB A IMPARCIALIDADE DA RAZÃO.” (p. 49).
Lemos pensa o desenvolvimento tecnológico em três fases:
- INDIFERENÇA (até a Idade Média) – arte + religião + ciência
- CONFORTO (Modernidade) – dessacralização da natureza/mente separada do corpo
- UBIQUIDADE (Pós-modernidade) – simulação, presenteísmo.
O conceito de multimídia envolve a síntese das propriedades de diferentes meios de
comunicação em um produto físico. A multimídia condensa ainda num produto físico, o CD-ROM, imagens estáticas (fotos e ilustrações), áudio, vídeo e textos em combinações arbitradas pelo autor do trabalho. Popularizados no Brasil na década de 90, as publicações multimídia não alcançaram tanta popularidade quanto as mídias tradicionais da indústria da informação (livros, CD’s, jornais, revistas etc.) e representaram, porém, um avanço importanto na constituição do chamado hipertexto. O hipertexto é a conjugação de discursos sígnicos de diferentes materialidades (fotos, vídeos, áudio, design, animações, ilustrações, legendas, textos, gráficos) combinados de forma não-linear, isto é, sem a continuidade obrigatória da leitura física de um documento em papel (por exemplo), como livro, que, no Ocidente tem leitura convencionada da esquerda para a direita, de cima para baixo e em páginas sequenciais quase sempre numeradas. O hipertexto é o discurso próprio do virtual, é a atualização do virtual em termos de sua materialidade. Ele propõe leituras múltiplas, típicas de uma nova ordem social polifônica (Canevacci) e rizomática (Deleuze), diluindo a hierarquia habitual do texto impresso, fluidificando-o em links e hiperlinks que nos levam a conteúdos além do formato padrão do texto escrito. O hipertexto é uma representação textual das sinapses neurológicas. Alguns autores defendem que o texto impresso é hipertextual na medida em que remete a notas de rodapé/fim e intertextualidades, assim como a imagens que nos ajudam a construir o sentido da mensagem do texto. Tomando com base o modelo matemático do processo comunicativo:
A comunicação é tão mais qualificada quando a mensagem final e a mensagem inicial são idênticas. A mídia digital contribui para a renovação dos processos de comunicação na medida em que:
- Requalifica a codificação, reduzindo e barateando-a, permitindo que um maior número de não-especialistas se aproprie de métodos de codificação;
- Horizontaliza o processo de emissão da mensagem;
- Torna hiperbólico o feedback ou retorno da mensagem por mídias que dispensam o presencial e compactam as distinções geográfico-temporais, promovendo uma INTERATIVIDADE sem precedentes;
- Um passo além da interatividade, que é um pressuposto antigo dos MC, é a comutação do receptor em emissor e vice-versa;
- Na modernidade (TV’s, rádios, jornais, revistas, HQ’s, cinema etc.) o espectador recebe um produto embalado e criado estrategicamente para recepção massiva, considerando a média de informação do público. Na pós-modernidade, da multimídia à hipermídia o conteúdo da informação assume os seguintes aspectos: COLABORATIVIDADE, CONECTIVIDADE, LIVRE DIFUSÃO EM REDE. A mensagem é CUSTOMIZÁVEL, ONLINE, REAL-TIME, ALL THE TIME.
O sonho de Beuys na conversão de todo homem em artista (aquele que domina a tekhnè e a adapta a seus interesses) é potencializado na hipermídia, essa ordem de produção da informação na era do capitalismo cognitivo.
Para Lemos, Habermas desenvolve um pensamento positivo no sentido de interpretar as críticas da instrumentalização da razão de Adorno e Horkheimer; Marcuse (unidimensionalidade), Weber (ética protestante e espírito do capitalismo) e Foucault aponta para a necessidade de reposicionarmos a razão substantiva sobre a razão instrumental.
A hipermídia representa para seus defensores, um avanço pois oferece ao receptor os modos de produção que antes concentravam-se em poucos emissores. Daí a necessidade sócio-política das indústrias de tecnologia eletro-eletrônica introduzirem inovações que obsolescem rapidamente técnicas já populares, elitizando, a princípio, por meio de práticas de precificação, depois pela desaceleração arbitrária do processo de CONVERGÊNCIA (ápice do ideal hipermidiático, condensado em objetos multifuncionais dotados de inteligência artificial). Os enunciados da multimídia e d hipermídia têm um impacto político-ideológico brilhante e, simultaneamente, aterrorizante. Os bancos de dados online e sua virtualização não-atualizada (não-presentificada) representam uma perda de lastro dos significados sobre os significantes, resultando no meio de cultura que Baudrillard conceitua como simulacro.
Em “Cibercultura”, André Lemos defende que a tecnologia digital torna-se media de contato como queria McLuhan e afirma Maffesoli. Ela retribaliza o mundo (p. 257).