Com uma forte influência negra e dos morros e favelas do Rio de Janeiro, a década de 1930 nos apresentou aos desfiles das escolas de samba. Uma festa que começou com um caráter extremamente ligado à cultura popular, onde os protagonistas e criadores do espetáculo vinham de famílias humildes. Com o passar do tempo e o crescimento do interesse das classes mais altas pela festa, o carnaval foi passando por diversas modificações, onde o tradicional cedeu espaço para desfiles modernos, encabeçados pelos carnavalescos (profissionais subsidiados por diplomas em grandes escolas de arte) e legitimados pela mídia, que passou a enxergar esse evento como uma ótima fonte de lucro. Com isso, os desfiles de escola de samba, agora propagandeados como “o maior espetáculo da Terra”, se tornaram um dos principais produtos da indústria cultural, que apesar de não se relacionar diretamente com a cultura erudita, passeiam entre as definições da cultura de massa (expressão cultural que tem o objetivo de alcançar o maior número de pessoas, com um foco majoritariamente comercial).

A mistura entre as tradições populares e as contemporâneas, expressa através de enredos sobre temas ligados à cultura erudita, criou uma manifestação cultural de certa forma “híbrida”, que até hoje disputa a hegemonia e reconfigura esse espetáculo. Essa hibridização traz elementos onde por um lado oferecem mais conforto e praticidade para o consumidor do produto, mas também não agrada a todos aqueles que são adeptos de uma folia menos padronizada em relação à qual convivemos nos últimos 30 anos.

Na segunda parte do livro “Cultura, Um Conceito Antropológico” de Roque de Barros Laraia, onde se aborda a dinamicidade da Cultura, o autor afirma que a forma como apreciamos a cultura também pode ser modificada de acordo com diversos fatores, como o tempo, eventos históricos, grandes inovações tecnológicas, ou apenas novos contatos culturais. Laraia também destaca que é preciso entender que todo sistema cultural sempre estará sujeito a mudanças, para evitar que ocorram comportamentos preconceituosos no choque entre as gerações.

Porém, quando estudamos um pouco mais sobre os desfiles das escolas de samba, por várias vezes podemos constatar uma certa oposição entre aquele que ficou conhecido como um modelo de desfile tradicional (que existia antes da criação do sambódromo, em 1984, onde não havia muitas limitações do número de alegorias, e todas as escolas desfilando no mesmo dia, com mais tempo para apresentar sua obra), e o moderno (que, para atender os horários das rádios e TVs que transmitem o espetáculo, precisou ser dividido em dois dias, com a diminuição do número de desfilantes e alegorias; além da redução do tempo total de desfile, onde caso a escola ultrapasse o tempo, recebe penalização por minuto excedido).

Com o crescimento do interesse das mais diversas camadas da sociedade neste evento, os principais meios de comunicação do país viram a oportunidade de levar o espetáculo diretamente para a casa do público e ao mesmo tempo lucrar com a ideia. Desde então, a apreciação dos sambas-enredo, que eram considerados o ponto alto dos desfiles antigos e criados originalmente por integrantes de classes sociais mais baixas, deixaram de ser o principal enfoque das transmissões e perderam espaço para a estética visual das escolas, proposta pelos carnavalescos (membros de uma cultura mais elitizada). Com a evolução das transmissões televisivas nos desfiles, — com a extinta TV Manchete e a Rede Globo -, a partir do final da década de 1970 e auxiliadas com a construção do Sambódromo para o Carnaval de 1984, houve um notório aumento da infraestrutura das equipes de TV na nova “passarela do samba”.

Além da intensificação da cobertura dos desfiles em um local renovado, o aumento expressivo do foco na plasticidade visual das escolas de samba fez com que nas últimas décadas, a forma de apreciar um desfile ganhasse novas prioridades e passássemos a ter nas nossas memórias mais imagens marcantes do que letras de sambas-enredo históricos. Como exemplo, o desfile de 1989 da Beija-Flor de Nilópolis, com o enredo “Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia”. Após um pedido da Arquidiocese do Rio para que a Justiça impedisse a apresentação de um carro alegórico simbolizando o Cristo Redentor trajado com vestes de morador de rua, esta alegoria entrou na avenida e permaneceu coberta por um grande plástico preto, com os dizeres “Mesmo Proibido, olhai por nós!”. A imagem entrou para a história como uma das mais marcantes de todo o carnaval, porém, ao mesmo tempo, a letra e a melodia do samba que regeram esse momento, não são de domínio predominante do público.

Fazendo jus ao conceito de cultura de massa e em contraponto ao parágrafo acima, justamente ao fato de que os sambas teriam ficado em segundo plano, a TV Globo, sem sair dos padrões da indústria cultural, atendeu clamores populares para que se desse uma maior atenção ao tema e produziu o programa “Seleção do Samba” (2021), que consiste em transmitir outro evento bastante esperado pelo amante do carnaval: a final do concurso que define o samba-enredo de cada escola para o desfile. Tradicionalmente restrito às quadras de cada agremiação, a escolha do samba que irá representar as escolas na Marquês de Sapucaí é um evento capaz de mobilizar milhares de pessoas por conta do grau de acirramento e tensão que envolve a disputa.

Apesar da transmissão para a grande massa na televisão ocorrer após os sambas já terem sido escolhidos originalmente pelas escolas, em um momento de pandemia que ainda vivemos — onde eventos de grande magnitude como tal ficavam restritos por conta das normas sanitárias vigentes do momento — não poderia ter escolha melhor para atrair aquele apaixonado pelo carnaval, que caso estivesse em tempos normais, poderia frequentar a quadra de sua escola preferida para acompanhar ao vivo esse momento tão aguardado.

Com uma história rica e com suas origens ligadas à população negra e pobre, os desfiles das escolas de samba fazem parte da cultura do carioca e suas histórias são difundidas de geração para geração. Além disso, essa tradição sociocultural se mostra de grande relevância para a cultura popular brasileira e é considerada como um dos eventos mais importantes do planeta. Mas se levarmos em consideração o número de pessoas que assiste à festa mesmo sem estar presente no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, podemos afirmar que os desfiles de escola de samba, nos moldes atuais, também se tornaram um componente fundamental da indústria cultural e, mais precisamente, da cultura de massa.

Referências:

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

Texto escrito por Gustavo da Silva Vicente dos Santos, graduando em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Gustavo já atuou como assessor de imprensa na empresa Marrom Glacê Assessoria e, como jornalista, trabalhou como repórter e comentarista na Antena Esportiva Web Rádio e estagiou no Jornal O DIA e no projeto “Esporte no Ar” do Audiolab UERJ. Seus principais trabalhos são:

Brasil atinge mais uma triste marca e chega aos 300 mil mortos por coronavírus | Brasil | O Dia;

Reconhecimento aos melhores do Carnaval | Rio de Janeiro | O Dia;

Sete décadas de evolução e inovação | Rio de Janeiro | O Dia;

Torcedores do Flamengo fazem homenagem aos meninos do Ninho | Flamengo | O Dia.

Os desfiles de escolas de samba como parte da cultura de massa