Rafael Nacif | Junho 2021

Uma das características mais marcantes da história do homem, qualquer que seja o período analisado (não incluída aí nenhuma crença mística envolvendo Adãos e Evas edênicos), é a interdependência efetiva que se nota entre seus momentos cronologicamente sequenciais. Certamente, esse fato não constitui um artifício criado por historiadores aflitos, envolvidos pela lógica da racionalidade humana, para aplicar o princípio naturalmente universal de causa-efeito às conjecturas que corporificam essa disciplina, seguindo, nesse aspecto, um mecanismo de inspiração darwinista. Se pelo menos, à luz da ciência moderna, já houvesse sido desvendada a origem do Homo Sapiens, talvez existisse uma asserção suficientemente convincente que pudesse responder tal inquietude. Entretanto, como ela não existe, que se permita ao homem especular acerca dessa dúvida, do que se ocupou Foucault ao elaborar o estruturalismo. Esse desencadear histórico propriamente dito não é o objeto de estudo deste documento, mas a sua relevância será aqui relacionada, no que diz respeito ao legado artístico das vanguardas modernistas, com a construção da obra de dois dos mais significativos representantes da estética pop: Andy Warhol e Roy Lichtenstein.

A Pop Art está inserida num contexto histórico-artístico categorizado como pós-modernidade. E ela se justifica , enquanto “ pós-… ”, a partir do instante que surge como uma concepção estética “substitutiva” da saturação do expressionismo abstrato americano, um dos legítimos representantes da galeria modernista. O pós-modernismo é um fenômeno corrente, porém já encontra os seus teóricos, desmistificando a ideia de que “ só se pode obter o conhecimento sobre coisas de alguma maneira acabadas e encerradas. ” Segundo Connor, “ as teorias do pós-modernismo na arte abrangem duas correntes principais … . A primeira, exemplificada pela obra de Charles Jencks e associados, pode receber o nome de “ conservadora-pluralista ”; … . A segunda, que deveria ser chamada de “ crítico-pluralista ”, é evidenciada notadamente por Rosalind Krauss, Douglas Crimp, Craig Owens, Hal Foster e outros autores da revista “ October ”, … ”.

A linha de Jencks defende que, após o esgotamento do vanguardismo modernista, a arte retornou a ser o que sempre foi, completamente burguesa. Ele concentra-se em duas áreas principais — a multiplicação de normas estilísticas e o retorno do simbolismo. Enquanto a linha conservadora-pluralista se resigna ao desaparecimento da vanguarda e a sua incorporação ao establishment, o pluralismo crítico submete a estética de vanguarda e modernista, procurando reinventar modelos de prática artística oposicional. Mais especificamente, Argan nos servirá como base para desenvolver uma análise comparativa entre as obras de Warhol e Lichtenstein.

Warhol, na década de cinquenta, trabalhou como ilustrador de material publicitário, o que explica sua predileção pelas técnicas gráficas e tipográficas e pelo uso da grande dimensão. Como membro do cenário pop, realizou uma documentação objetiva dos fetiches-símbolo da civilização de consumo, utilizando a transposição fotográfica, através de serigrafias, de imagens repetidas em série, como num processo mecânico. A partir de 1962, inicia seus filmes, nos quais mostra as condições de exploração a que a sociedade submete os jovens, a mulher, o sexo. Mais tarde, inaugurou um clube noturno chamado The Exploding Plastic Inevitable, e empresariou a banda da casa chamada Velvet Underground. Além disso, aventurou-se no mundo editorial lançando a revista de fofocas “Interview”, que revolucionou os conceitos do aproveitamento da fotografia no “jornalismo”.

Lichtenstein trabalhou como designer publicitário e vitrinista, antes de ser primeiramente reconhecido como um jovem pintor de estilo expressionista abstrato. Em 1957, imagens de quadrinhos contidos em papel de chiclete tornaram-se seus motivos. No início da década de sessenta, interessou-se por produzir arte a partir de ícones da massificação. Enormes reproduções de “ tirinhas ”, simulando a técnica tipográfica, foram algumas de suas contribuições. Usando uma linguagem anônima, as fontes dos temas são transformadas, apresentando novas formas de compreensão da arte. Para ele, o uso do cartum torna-se o meio de elaboração de qualquer tipo de imagem, como uma espécie de filtro “ mecânico ” pelo qual ele faz passar a linguagem da pintura, ironicamente. Ele não pretende avançar nas pesquisas sobre a percepção, mas sim, com um pontilhismo próprio, exprimir a banalização operada pela informação de massa sobre todos os dados reais. Incluiu a escultura, em anos mais recentes, como representações de imagens emprestadas dos quadrinhos e da art decó. Numa comparação das obras de Warhol e Lichtenstein, Argan observa:

“A inserção da exigência estética na tecnologia da informação e da comunicação não é teoricamente impossível, assim como não era impossível sua ligação com a tecnologia da produção. Mas choca-se contra a finalidade do sistema, que, visando a determinar uma ânsia de consumo ilimitado, faz de tudo para desestimular nos consumidores a tendência de formar juízos de valor, a qual, pelo contrário, é incentivada e multiplicada pela exigência estética. Mas tentou-se essa inserção, especialmente com dois americanos: Lichtenstein e Warhol. ”… “ Os consumidores de histórias em quadrinhos são poupados de qualquer mínimo esforço intelectual; tudo foi pensado, preparado, digerido de antemão. A pintura (mesmo que já não se possa chamar assim) de Lichtenstein é uma prova de inteligência, mas em essência demonstra apenas que o artista pegou o truque, e está capacitado para participar do “truste de cérebros”. Warhol, não: não é absolutamente um entusiasta da cultura de massa e do “ modo de vida americano ”. Na prática, porém, é um técnico da informação, assim como Lichtenstein. Sua vertente é a da “ obsolescência ”, o processo de absorção e dissolução da notícia na psicologia de massa. Analisa os efeitos da repetição da notícia: o acidente de carro, a cadeira elétrica, Marilyn Monroe e Che Guevara vistos no jornal, no cinema, por toda parte. ”… “Do ciclo de informação, Lichtenstein considera a parte iluminada, e Warhol a parte na sombra: todavia o ciclo é sempre o mesmo, a “ obsolescência ” era prevista, sabida e planejada.”

Num trecho de seu livro, Connor analisa as críticas feitas à estética pop, de um modo geral, por Stanley Cavell, que argumenta:

“ A pop art não é pintura. Não é pintura não porque as pinturas não possam ser assim, mas porque a pintura séria não o é. A pintura séria não é assim não porque a pintura séria não seja forçada a mudar, a explorar os seus próprios fundamentos e até a sua aparência; mas porque a maneira como ela muda — aquilo que conta como mudança relevante — é determinada pelo compromisso com a pintura como arte, em sua aceitação e rejeição das convenções, intenções e respostas que compreendem essa história. ”

Argan, sendo conservador, ao menos analisa as propostas de Warhol e Lichtenstein, enquanto Cavell ignora-as sumariamente. Enfim, podemos concluir que apesar de ambos os artistas pertencerem a um contexto maior que lhes confere semelhanças suficientes para enquadrá-los num mesmo “movimento”, cada um apresenta peculiaridades no tratamento dado aos objetos de interpretação. Warhol busca seu material, assim como Lichtenstein, nos meios de massificação. A diferença entre eles está, basicamente, em que tipo de informação é absorvida e que aspecto dela é ressaltado em seus trabalhos. Warhol pesquisa imagens que “fizeram notícia”, que se encontram consumidas, desgastadas, esvaziadas pela superexposição, conferindo a sua obra uma conotação altamente crítica e sombria. Lichtenstein recupera a imagem arquetípica presente nas comic strips, descaracterizada pelas exigências de reprodutividade tipográfica e impacto “emocional” que ela deve cumprir. Ou então faz o mesmo exercício, só que inversamente: toma um quadro de Picasso ou Mondrian e transcreve essa imagem esteticamente definida para o código tipográfico. Assim, ele pretende mostrar que o valor estético de um produto industrial é feito, não pelo artista, e sim pelo consumidor comum.

Pode-se verificar que Warhol tende a reconstituir o caminho descendente ou desintegrador da imagem massificada, enquanto Lichtenstein reconstrói a trajetória inversa, ascendente ou formadora. Ambos negam a história, todavia cada um deles privilegia um período de tempo: Warhol, o passado; Lichtenstein, o presente. Este último demonstra claramente não estar interessado no conteúdo da mensagem, mas no medium, na maneira como ela é transmitida. O primeiro intenciona desmascarar a notícia mitificada, que é inconscientemente absorvida. Representam, os dois, diferentes aspectos de um mesmo fenômeno. E ao fornecerem matéria de discussão e polêmica em torno dele, criam, concomitantemente, mesmo que sem a intenção, um espaço de indagação ética e estética.

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Rafael Nacif é doutor em Comunicação pelo PPGCom da UERJ e relações públicas na UERJ.

O Pop pós-moderno de Warhol e Lichtenstein