Roberto Vilela| Maio 2021

Carnaval, Réveillon, Círio de Nazaré, Lavagem do Bonfim, Folia de Reis, Festa do Padre Cícero, Festa Junina, Festa de São Jorge, Festa dos Navegantes, Semana Santa e Natal. Não seria exagero afirmarmos que os principais festejos populares no Brasil têm uma fundamentação religiosa, mas vão muito além dela. O cotidiano, mais que um campo inventivo, múltiplo e inacabado, se inscreve também como inventário de diferentes rotas e saberes (SIMAS e RUFINO, 2019). Citamos algumas dessas festas acima pensando no país como um todo e pedindo perdão, desde já, caso tenhamos esquecido de alguma.

Olhando mais de perto o Rio atualmente, três festividades têm uma grande força popular, uma espécie de “axé praticado”, que fundamenta o real relacionando-o à crença numa energia vital transcendente, que reside em cada um e na troca com o coletivo, em objetos consagrados, nos alimentos, nos rituais, na dança, no giro, no choro e na gargalhada. Nesse sentido, o carnaval, o réveillon e o dia de São Jorge são três festas inscritas do cotidiano carioca que vão muito além da comemoração em si, mas representam uma potência vital que troca, transforma e nos restitui caminhos reencantando a vida (SIMAS e RUFINO, 2019). Ali projetamos expectativas, no caso do réveillon; reforçamos nossa fé, no dia de São Jorge; ou nos transbordamos num transe coletivo de múltiplos sentidos e fantasias, quando do carnaval.

O réveillon, por exemplo, começa a ganhar a dimensão que tem hoje a partir dos anos 1980. Mas sua ritualística possui uma fundamentação religiosa, dos cultos a Iemanjá, que nos remontam ao final do século XIX. Com o carnaval não é diferente, muito embora sua projeção midiática tenha se intensificado mais a partir da inauguração do sambódromo da Marquês de Sapucaí, em 1984. Registros não faltam sobre essa festa ao longo do século XX. O entrudo, tão combatido por Pereira Passos, não nos deixa mentir. Já o dia de São Jorge, data alusiva ao santo católico, foi largamente reapropriada pelos adeptos dos cultos afro-brasileiros que o sincretizam com o orixá Ogum. Tal data ganhou uma dimensão tão grande que ultrapassa católicos e umbandistas, levando multidões às Igrejas de São Jorge (em Quintino e no Centro), bem como aos terreiros de umbanda pela cidade e quadras de escolas de samba. Em 2008 o dia 23 de abril foi transformado em feriado municipal, e, sem medo de errar, afirmamos que há mais festa pela cidade no dia de São Jorge do que no dia de São Sebastião, padroeiro do Rio.

Mas de onde vem esse cruzo, essa capacidade sincrética e antropofágica que amálgama inúmeros imaginários, formando uma bacia semântica quase inesgotável? Não acreditamos ter neste momento um gabarito para essa questão, mas julgamos possuir alguns elementos que podem contribuir com a formulação de uma resposta.  Para tanto, faz-se necessário um retorno à priscas eras de um Estado teocrático, uma ex-colônia de exploração que tinha no catolicismo um elemento de dominação ideológica e aniquilação de corpos desviantes de um padrão cultural não-branco.  Contexto em que não ser católico era crime, período no qual o negro e o índio eram catequizados na marra, e, para não sucumbirem física e simbolicamente, eram obrigados a ocupar as frestas do cotidiano a fim de criarem subterfúgios pela manutenção de sua cultura e de suas tradições. Artes de fazer, diria Michel de Certeau (2011), ou simplesmente um fazer poético assentado na precariedade, que visava proteger corpos expostos e aprimorar afetos, baseado no encanto e na solidariedade.

No Rio oitocentista a principal festa popular que havia era a Festa do Divino Espírito Santo, que ocorria no Campo de Santana, no dia de Pentecostes[1]. Ali havia uma grande mistura que reunia de fiéis católicos a barraquinhas de jogos de azar, passando pela venda de comidas, bebidas, leilões, até ciganas e cartomantes tentando prever o futuro ou restituir amores. Os cartazes que vemos pela cidade hoje – “Trago seu amor em 3 dias!” – não são novidade.

Quando da Festa do Divino, o Campo de Santana era tomado por acrobatas, dançarinas de corda, equilibristas e batuques de pretos[2] em louvação aos orixás, (ABREU, 1994). Um verdadeiro circo se formava no local, Lima Barreto referia-se à festa como as “folganças de junho no Campo de Santana”. Em realidade a Festa do Divino era um grande espaço de disputas pois a Igreja não aprovava esse tipo de comemoração, eram as irmandades e ordens terceiras quem organizavam essas festividades em dias santos. No caso da Festa do Divino, a irmandade de Santana era a que mais se dedicava à sua realização. Essas irmandades muitas vezes reuniam escravos e adotavam posturas contrárias àquelas indicadas pela Igreja.

Com todos esses variados acontecimentos, a festa do Divino reunia os ingredientes da festa mais popular da cidade: as atrações espetaculares e ilusionistas desafiavam a simplicidade do dia a dia; muita música, dança, sensualidade, comida e jogos completavam o ambiente profano de uma festa religiosa. A presença e a vivência da festa por diferentes setores sociais também garantia que ela fosse um local de encontro e, principalmente, de troca e circulação entre as diversas manifestações culturais. (ABREU, 1994, p. 194)

Podemos comparar a Festa do Divino ao que hoje é a Festa de São Jorge, não à toa o citamos acima. Santo católico de origem turca (da região da Capadócia), Jorge foi um soldado romano que se negou a perseguir os cristãos e por isso foi morto. O “santo guerreiro” como é conhecido, é fortemente cultuado nos ritos afro-brasileiros. Na umbanda carioca, por exemplo, São Jorge é sincretizado com Ogum, orixá ligado aos metais e às batalhas, guerreiro vencedor de demandas, a quem muito se recorre para pedir proteção e caminhos na vida. Ogunhê![3]

Traçamos essa relação entre as festas de São Jorge e do Divino, pois são momentos em que sagrado e profano se lambuzam e se ultrapassam, tal e qual uma encruzilhada, abrindo novas possibilidades. Há missas, sermões dos padres, procissões e romarias, mas também há churrasquinho nas esquinas, cerveja gelada, feijoada, caipirinha, pagode e rodas de samba nos botequins, e a curimba[4] batendo forte nos terreiros pela cidade. Afinal, como diz Jorge Benjor, “Domingo 23 é dia de Jorge!”[5]

No século XIX, as principais comemorações religiosas da cidade, todas com origem no período anterior, ainda eram as mais concorridas: as procissões do padroeiro São Sebastião, Cinzas, Semana Santa (Passos, Endoenças, Enterro) e Corpo de Deus; as festas em homenagem aos Santos Reis, Santana, São Jorge, Santo Antônio, São João e, a maior delas, a do Divino Espírito Santo. (ABREU, 1994, p. 185)

Nesse sentido, faz-se necessário salientar que a Festa do Divino, bem como outras que havia pela cidade em dias de santos, não eram organizadas pela Igreja católica, mas por irmandades e ordens terceiras. Organizações leigas que na maioria das vezes não contavam com a total apoio da Igreja para as suas realizações, pelo contrário. A Festa do Divino, por exemplo, era um manancial de disputas entre a irmandade de Santana (organizadora da festa) e a Igreja católica, que não aprovava certas práticas tidas como pagãs, tais como as batucadas e danças promovidas por escravos e ex-escravos, além de jogos com apostas em dinheiro. Essas práticas eram apontadas pela polícia, como perturbadoras à ordem pública. Segundo o clero da época, atividades deste tipo modificavam perigosamente aspectos originais da doutrina católica, causando confusões entre o sagrado e o profano. Mas como na batina do padre tem dendê, em 1874 a Câmara aprovou a construção de mais coretos e barracas ao redor do Campo de Santana para as comemorações do Divino.

As danças negras da cidade do Rio de Janeiro, desde o início do século XIX, realizavam-se nas festas religiosas ou acontecimentos sociais, como as coroações ou nascimentos de reis, todos eles eram ótimas ocasiões para o encontro de escravos. (ABREU, 1994, p. 191)

Por mais que a Igreja e o Estado tentassem disciplinar e desencantar os corpos, o chamado “catolicismo barroco” – típico do século XIX – marcado por missas pomposas, festas com muita música, fogos de artifício, comidas e bebidas. Acontecia, mas não agradava à Diocese. O “dendê” não era uma unanimidade entre clérigos brasileiros, mas havia os que gostassem.

Devido a uma deficiência de quadros, o alto clero local só conseguia atuar em situações específicas, não chegando a todos os fiéis. Então, grande parte da formação religiosa (inclusive de novos padres) ficava a cargo das irmandades e ordens leigas. No bojo dessa disputa, a Igreja iniciou uma reforma a fim de diminuir o poder das irmandades e formar um novo clero alinhado às perspectivas tridentinas. Daí vem a expansão das escolas confessionais e dos seminários sacerdotais, justamente para fazer frente às ordens terceiras, o que afetou as festas e comemorações populares em dias de santos.

À 7 de setembro de 1880 são inauguradas as reformas no Campo de Santana, sob supervisão do engenheiro Francisco Pereira Passos. O projeto ficou por conta do botânico francês François Glaziou que idealizou um grande parque à inglesa, com alamedas ornadas, lagos e grutas artificiais. A praça também fora dotada de animais caros à fauna brasileira e cercado com grades. A partir deste momento a Festa do Divino passa a ser mais controlada pela Igreja e consequentemente pelo Estado, que a transformam praticamente numa quermesse, algo muito menor do que fora anteriormente. Ao redor da praça também foram construídos edifícios que simbolizavam os principais marcos do poder imperial.

Foram, igualmente, um importante sinal de que a antiga sociabilidade praticada nas ruas e festas de irmandades, começava a ser limitada e afastada do centro do poder, expressando um novo tipo de ocupação, recreação, encontro (os passeios “familiares”) e saúde (em busca do ar puro) nos espaços públicos. (ABREU, 1994, p. 196)

As obras no Campo de Santana, além de inviabilizarem a da Festa do Divino e suscitarem a demolição do Teatro Provisório, também levaram ao chão o Chafariz das Lavadeiras, famoso ponto de encontro de escravas e mulheres pobres que papeavam e interagiam enquanto lavavam roupas. Obviamente todas essas ações do Estado (que frisamos, não era laico) ocorreram com total apoio da Igreja.

Contudo, por mais que nessa queda de braço entre Diocese e irmandades o poder diocesano tenha prevalecido, o sincretismo estabelecido pelos escravos para continuarem manifestando sua fé nos orixás não acabou, pelo contrário. É pródigo à cultura banto[6] uma postura antropofágica diante do novo, onde tudo é mastigado, engolido e devolvido ao mundo reinventado à sua maneira. Não queremos com isso suavizar a violência física e simbólica da Diáspora Africana, mas ressaltar a potência cultural desses povos e sua capacidade de se reinventar no precário.

João do Rio em As religiões do Rio, por mais que seu texto tenha uma carga preconceituosa às macumbas, mostra claramente que muitas das senhoras que iam à missa de domingo, noutros dias da semana dirigiam-se às “casas de feitiço” do Centro da cidade, para se consultarem com pais e mães de santo. Numa mão a hóstia, na outra uma garrafa de marafo[7]. Há muito mais dessas frestas, plenas de práticas e simbolismos, no nosso dia a dia do que podemos imaginar. Elas fundam-se na força dos comuns, nas diferentes formas de se sentir e praticar a vida em sua fartura de sentidos.

Preto velho trabalha com dendê;

Preto velho trabalha com dendê;

Na batina do padre tem dendê;

Ai, se tem, eu quero vê!

 

Referências bibliográficas:

ABREU, Martha. Festas Religiosas no Rio de Janeiro: perspectivas de controle e tolerância no século XIX. In: Revista de Estudos Históricos, vol. 7, n. 14. Rio de Janeiro, 1994.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Ed. Vozes. Petrópolis (RJ), 2011.

SIMAS, Luiz Antônio e RUFINO, Luiz. Flecha No Tempo. Ed. Mórula. Rio de Janeiro, 2019.

 

[1]  Celebração cristã que comemora a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, cinquenta dias após a  Páscoa.
[2]  Termo usado à época para designar os escravos e ex-escravos.
[3]  Termo utilizado pelos umbandistas para saudar Ogum.
[4]  Conjunto de atabaques tocados nos rituais de candomblé e umbanda em louvação aos orixás, iabás e demais entidades invocadas.
[5]  Música do álbum Ben, de Jorge Benjor, lançado em 1972.
[6]  Conjunto de povos da África sul-equatorial de forte tradição cultural.
[7]  Aguardente utilizada nas giras de umbanda.

 

Na batina do padre tem dendê: religiosidade e festas populares no Rio oitocentista