Daniela Neiva | Maio 2021

Era noite no Centro da cidade do Rio de Janeiro, meados de 2017. Em pouco tempo, observávamos pessoas em situação de rua aguardando a distribuição de alimentos e outras doações. Muitas instituições e organizações, religiosas ou não, seguiam distribuindo comida e roupas e, para muitas pessoas, aquela era a única refeição no dia.

Entre o emaranhado de sentidos acerca desta situação, muitos questionamentos carecem até hoje de compreensão, ainda mais no colapso da pandemia de Covid-19 em que vivemos. Seguir caminhando pela cidade, já aponta, certamente, para o peso da fome de incontáveis vidas. Este despertar que nos impulsiona ao movimento de abertura para o outro, em direção a compreensões e representações do cotidiano é parte da nossa trajetória acadêmica.

Movidos a refletir sobre os sentidos da comida distribuída para a população em situação de rua, produzimos o estudo Caridade para os merecedores e salvação para os doadores. Escrito com a pesquisadora Julia Horta Nasser, a professora Shirley Donizete Prado e o professor Francisco Romão Ferreira, a inspiração partiu da dissertação de mestrado intitulada O que comem os excluídos? Os diferentes sentidos da comida oferecida para a população em situação de rua.

Muitos interesses, valores e sentidos são depositados na comida que é servida “de graça”. O modo como as instituições e organizações lidavam com a população em situação de rua e com a questão da alimentação desvelavam redes de sentido em torno das práticas de distribuição de comida que nos interessavam compreender.

A produção de sentidos e subjetividades em tempos de exclusão, a partir dos conceitos de produção de subjetividade, de Guattari e Rolnik (2013), e de processos de subjetivação, de Foucault (2004), nos apoiaram e permitiram avanços para buscar compreender as lógicas que regem uma sociedade; a maneira de ser e estar em coletividade. O conceito de governamentalidade, de Foucault (2012), também foi importante nesta reflexão.

Na perspectiva do estudo, foi fundamental reconhecer as tecnologias de poder (FOUCAULT, 2008) e quem eram os excluídos, quem constituía a população em situação de rua. Corpos invisíveis, frutos da desigualdade social, da exploração econômica e da exclusão do mundo do trabalho. Na busca para compreender o fenômeno social “população em situação de rua“, encontramos o sujeito que constrói sua trajetória de vida nas ruas, com laços familiares e comunitários fragilizados ou rompidos, marcado por estigmas e que vive sob lógicas distintas das consideradas “normais” em nossa sociedade. “Como não escolhem e não fazem as regras do mundo em que vivem” (ESCOREL, 1999, p. 236), não são considerados como “indivíduos”, são vistos como desviantes e desumanizados.

Neste cenário, percebemos que a busca por comida é um dos eixos centrais da construção da rotina e dos deslocamentos da população em situação de rua pela cidade. As redes de sobrevivência, em grande parte formadas por entidades privadas e religiosas que distribuem comida, roupa, prestam assistência médica, etc., são “parte crucial da ‘mágica’ da sobrevivência dos moradores de rua” (ESCOREL, 1999, p. 229).

Caridade para os merecedores e salvação para quem doa comida. A maioria das práticas de distribuição de comida é mediada por lógicas normatizadoras e que examinam em detalhes as subjetividades da população em situação de rua. Em um jogo de forças, busca a adequação desse grupo aos padrões sociais e de interesses dominantes, políticos e sociais.

Ao longo deste estudo, consideramos o quanto o ato de distribuir comida torna as pessoas em situação de rua submetidas às condições e normas das instituições doadoras. Mesmo assim, a refeição é capaz de catalisar vínculos e expressões de solidariedade e torna-se importante no combate às violências que a invisibilidade e a indiferença constroem. A comida tem dessas coisas.

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Este estudo integra a coletânea Comensalidades em trânsito, lançada em plena pandemia. A obra é resultado de uma parceria entre o Laboratório Digital de Educação Alimentar (LADIG’E- UFRJ) e o Núcleo de Estudos sobre Cultura e Alimentação (NECTAR – UERJ). Corresponde à quarta iniciativa da Rede Ibero-americana de Pesquisa Qualitativa em Alimentação e Sociedade (REDE NAUS) em matéria de publicações e que, assim, se consolida como uma via através da qual fluem conhecimentos, construindo cooperação acadêmica e firmando a liberdade para criação humana como referência central.

Comensalidades em trânsito está disponível para acesso gratuito no Repositório Institucional da Universidade Federal da Bahia. Ótima leitura!

 

Referências bibliográficas:

ESCOREL, S. Vidas ao léu: trajetória de exclusão social. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.

FOUCAULT, M. Ditos e Escritos: ética, sexualidade e política. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

FOUCAULT, M. Ditos e Escritos: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento das prisões. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografia do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

Caridade para os merecedores e salvação para os doadores