Débora Gauziski | Novembro 2020

Ontem aconteceu o segundo turno das eleições municipais de 2020. Além da cidade do Rio de Janeiro, outras dez capitais decidiram o pleito: São Paulo, Fortaleza, Manaus, Recife, Porto Alegre, Belém, Goiânia, São Luís, Maceió e Teresina. Nas terras cariocas, o ex-prefeito Eduardo Paes, que governou o Rio durante dois mandatos, entre 2009 e 2017, foi o vencedor da disputa contra o atual prefeito Marcelo Crivella.

O embate teve a maior diferença percentual entre dois candidatos neste segundo turno: 64,07% a 35,93% dos votos. Apesar de ter perdido em cinco zonas eleitorais no primeiro turno (pertencentes às regiões de Olaria, Campo Grande e Sulacap), Paes venceu em todas no segundo. A margem expressiva ilustra uma insatisfação generalizada dos cariocas com a gestão do atual prefeito. Além do número de votos nulos e brancos (588.714), um dado que assusta é o número de abstenções: 1.720.154 votantes não compareceram às urnas. Em tempos de Covid-19, é difícil afirmar que esse cenário seja explicado apenas pela descrença no sistema político. Mas acredito que muitos cariocas optaram por trocar as urnas eletrônicas por uma ida à praia num lindo dia de sol (apesar da pandemia, que está novamente numa fase crítica).

Entretanto, não podemos ignorar o desempenho de Crivella nas urnas. Mesmo com uma alta rejeição, o pastor licenciado da Igreja Universal teve 913.700 votos. Em algumas regiões das Zonas Oeste e Norte, os dois candidatos ficaram quase empatados. Na 161ª zona (Olaria), por exemplo, Paes obteve 53,57% e Crivella 46,43% dos votos. Já na 122ª (Campo Grande), foram 52,11% dos votos para Paes e 47,89% para Crivella. Esses números saem bastante do padrão da votação nas zonas eleitorais da Zona Sul e algumas da Zona Oeste, nas quais Paes ganhou com uma diferença expressiva. O que explica esses pontos fora da curva?

Alguns analistas atribuem o bom resultado de Crivella em determinadas partes da cidade à sua influência religiosa e até mesmo à atuação das milícias (segundo relatos de amigos, a milícia de um certo bairro da Zona Oeste estava fazendo campanha abertamente para o candidato). Felizmente, esse voto de cabresto não foi suficiente para reeleger o atual prefeito. Não só para mim, mas para muitos cariocas, ele foi o pior prefeito que a cidade já teve. Além da péssima administração, o debate de sexta passada expôs os preconceitos de Crivella contra grupos minoritários, como a comunidade LGBTQIA+ e as religiões de matriz africana. Ele disse que Paes incentivaria o “turismo gay” e se referiu ao chapéu Panamá usado por ele no carnaval como “chapéu de Zé Pelintra”, entidade da umbanda que simboliza a malandragem (numa atitude de deboche, alguns eleitores foram votar usando o acessório).

Eduardo Paes voltará a governar a cidade em 2021 com alguns grandes desafios no horizonte, dentre eles lidar com a pandemia e com o desemprego. Além da incapacidade de Crivella em lidar com a saúde (vide o desmonte das clínicas da família), minha impressão é que o atual prefeito largou a cidade de mão há um bom tempo. Como moradora da Zona Oeste, minha percepção é que a cidade está caindo aos pedaços nos últimos anos: buracos nas calçadas, postes tombando, desordem urbana, ônibus com intervalos absurdos, entre outros problemas estruturais. O IPTU de Vargem Grande, por exemplo, subiu de forma surreal, sem que os moradores tivessem qualquer melhoria no bairro. Não podemos esquecer ainda que Crivella não terminou projetos como o BRT da Avenida Brasil, preferindo deixar as estruturas abandonadas. Apesar de ter severas críticas a Paes, a cidade estava mais bem administrada naquela época. Contudo, não podemos esquecer de um pequeno detalhe: não teremos megaeventos entre 2021 e 2025. Como o prefeito conseguirá recursos para os projetos? A solução pode ser incentivar a realização de eventos na cidade, aquecendo o turismo após a tão sonhada vacina.

Tive algumas percepções ao longo dessas eleições:

1 – No primeiro turno, não votei em nenhum dos dois candidatos, porém já sabia que o segundo seria disputado por eles. Alguns amigos tentaram me convencer do contrário e, eu entendo, a gente sempre torce e faz campanha pelos nossos candidatos progressistas do coração. Mas a verdade é que o Rio de Janeiro não é só Zona Sul. Na realidade, a maior parte da população que transita pela cidade por necessidade (trabalho e estudo), e vive seus problemas na pele, mora na Zona Oeste, em áreas distantes e precarizadas. Apesar de morar num bairro de classe média da ZO, que é muito mais acessível que Campo Grande e Sepetiba, posso afirmar: é um perrengue circular pela cidade se você não mora na Zona Sul ou em qualquer lugar com estação de metrô. Os ônibus estão cada vez mais decadentes e sempre lotados. A perspectiva diária de ter que pegar um ônibus quente e cheio para o trabalho é deprimente e acaba com o bom humor de qualquer pessoa. Várias vezes esperei mais de uma hora pelo ônibus que me leva para casa, voltando da UERJ. Imagino que uma pessoa que more em Sepetiba, Guaratiba ou Santa Cruz, e vive isso diariamente de uma forma muito mais intensa, transitando entre modais, passe a ter raiva de todos os candidatos políticos. Essas pessoas não acreditam que o voto delas vá mudar alguma coisa. E eu nem vou entrar aqui na questão da violência urbana… Para entender minimamente o Rio de Janeiro, é preciso sair da bolha da Zona Sul.

2 – O segundo ponto é que se um candidato de esquerda quiser levar uma eleição no Rio, precisará se mostrar presente em toda a cidade. Eu nunca vi partidos de esquerda fazendo campanha com intensidade no meu bairro. E, apesar de votar neles, eu não sinto muita verdade quando comentam sobre a Zona Oeste. Sinceramente, acho que não conhecem os problemas da região. Adivinha quem já veio no meu bairro diversas vezes para fazer campanha e inaugurar obras? Eduardo Paes. Cabe ressaltar, todavia, que nenhum dos candidatos presentes na disputa morava na Zona Oeste. Isso é bastante simbólico.

3 – Apesar de não ser geógrafa, sou uma grande entusiasta dos mapas. Fiquei observando o mapa eleitoral e um dado que me chamou muita atenção foi a votação de Paes na região da Saúde. Na 204ª zona eleitoral, Paes teve 69,47% dos votos, uma das maiores da cidade (atrás apenas de zonas localizadas na Zona Sul [Laranjeiras, Jardim Botânico, Copacabana] e a 119ª, na Barra da Tijuca). Nos últimos anos, repensando os ditos legados dos megaeventos, nós, pesquisadores, fomos muito críticos em relação ao Porto Maravilha. De fato, foi um absurdo o tanto de dinheiro público investido no local, que acabou não se consagrando como um novo polo de investimentos. Como meu amigo Angelo Duarte aponta em sua dissertação de mestrado, a região é um símbolo das “ruínas do presente”, com muitos prédios abandonados e sem uso. Outro ponto problemático do “projeto olímpico”, e que obviamente merece críticas, é a questão das remoções, como bem documentado no livro “SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico” (2015). Mas o que explicaria essa votação expressiva na região portuária? Se eu tivesse que fazer uma aposta, seria: Praça Mauá. Quando pensamos no direito à cidade, esquecemos do direito ao lazer, que é essencial. Apesar dos gastos exorbitantes, é indiscutível que a Praça Mauá se tornou um lugar muito mais bonito e interessante após a revitalização. Nos fins de semana, muitas pessoas vão lá andar de bicicleta ou participar de eventos e atividades ao ar livre. O Museu de Arte do Rio (MAR), que tem um acervo permanente, exposições e cursos maravilhosos, tem entrada gratuita para moradores da região (programa Vizinhos do MAR). Acho que esse caso especial da região portuária merece uma pesquisa mais detida. Pelo que parece, algum legado positivo foi percebido pelos moradores.

Existem muitos “Rios de Janeiros” ofuscados pelos lindos cartões postais tradicionais da nossa cidade (que é maravilhosa, apesar dos pesares).

 

Foto realizada por mim na visita guiada às obras do Porto Maravilha em 2015

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Débora Gauziski é doutora em Comunicação pela UERJ, jornalista e coordenadora técnica do Laboratório de Comunicação, Cidade e Consumo (Lacon/UERJ).

 

Referências bibliográficas:

AZEVEDO, Lena; FAULHABER, Lucas. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico. Rio de Janeiro: Mórula, 2015. Disponível em: <https://issuu.com/morula/docs/smh2016_issuu>.

G1. Apuração por Zona Eleitoral. Disponível em: <https://especiaisg1.globo/rj/rio-de-janeiro/eleicoes/2020/mapas/apuracao-zona-eleitoral-prefeito/rio-de-janeiro/2-turno/>.

HAIDAR, Diego. Profissionais denunciam desmonte de Clínicas da Família para inauguração de novas unidades. G1, Rio de Janeiro, 4 jul. 2020, online. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/07/04/profissionais-denunciam-desmonte-de-clinicas-da-familia-para-inauguracao-de-novas-unidades.ghtml>.

SARTORI, Caio. Contra Crivella, eleitor de Paes vota com chapéu de Zé Pilintra no Rio. UOL, Rio de Janeiro, 29 nov. 2020, online. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/eleicoes/estadao-conteudo/2020/11/29/contra-crivella-eleitor-de-paes-vota-com-chapeu-de-ze-pilintra-no-rio.htm>.

Eleições municipais cariocas: desabafos e desafios