Ana Teresa Gotardo | Novembro 2020

Gostaria de propor uma reflexão acerca das críticas que vêm sendo feitas à forma como Jojô no reality show A fazenda, exibido pela Rede Record – ressaltando que se trata mesmo de uma reflexão, pois eu não acompanho o referido reality, portanto não se trata de uma análise baseada em um método definido, mas sim, das relações que estabeleço a partir do meu olhar dessas críticas com um artigo escrito com o professor Ricardo Freitas do qual tenho muito orgulho: Civilizar para consumir: as favelas e os processos civilizatórios no documentário seriado No Reservations.[1]

Nesse artigo, analisamos o segundo bloco do episódio Rio, da série No Reservations, de Anthony Bourdain, no qual o apresentador faz uma visita à Rocinha. O episódio fez parte, na íntegra, do corpus da minha dissertação de mestrado, intitulada Rio para gringo: A construção de sentidos sobre o carioca e a cidade para consumo turístico [2]. A análise feita no artigo é mais ampla, mas gostaria de destacar aqui a ideia do “processo civilizador”, conceito discutido a partir de Norbert Elias (1994).

Nessa obra, o autor faz uma análise da história dos costumes durante a formação do Estado Moderno, como se deu o processo de mudança na conduta e sentimentos humanos, que, embora não tenha sido planejado, ocorreu dentro de um tipo específico de ordem. Elias ainda destaca dois processos fundamentais para a construção da civilidade: o primeiro é o que denomina de “monopolização da violência física”, ou seja, quando o Estado passa a concentrar armas e homens armados e a defesa de uma sociedade passa a ser objeto de controle, o que “força os homens desarmados, nos espaços sociais pacificados, a controlarem sua própria violência mediante precaução ou reflexão. Em outras palavras, isso impõe às pessoas um maior ou menor grau de autocontrole” (ELIAS, 1994, p. 201); o segundo é a busca do controle da conduta no que o autor chama de “estratos agrários e urbanos inferiores” (Ibid., p. 209), ainda que haja a necessidade, por parte dos estratos mais “altos” da sociedade, de manutenção da diferenciação social.

Passamos então à narrativa documental: Bourdain vai à Rocinha alguns meses após a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) local. Há todo um reforço de estereótipos, da ideia de cidade partida, das UPPs como salvação, de que as pessoas que vivem na favela não são cariocas, dentre outros, todos criticados e embasados no artigo, para quem tiver interesse de conhecer de forma mais profunda. No que diz respeito ao tema deste texto, especificamente, tem relação com a visita que o apresentador faz ao Instituto Kapacidade, uma organização não governamental idealizada e mantida pela família Greice, que ensina Jiu-Jitsu a crianças em situação de vulnerabilidade. Igor, porta-voz do Instituto no episódio, diz: “Nós não queremos ensinar uma arte marcial. Nós queremos ensinar a eles como respeitar o outro. Um estilo de vida.”

Essa fala de Igor está profundamente relacionada ao processo civilizador de Elias: o desejo, de uma classe mais abastada, de assimilação, por parte das classes mais baixas, do que seria considerado um “bom modo de vida”. A ideia desenvolvida nos estudos citados anteriormente é de que havia uma necessidade de reinventar os imaginários das favelas para preencher uma expectativa de segurança, a partir desse ideal presente na Modernidade, apresentando a favela em uma “embalagem” mais “aceitável” para esse espectador com potencial de consumo turístico.

E o problema disso é exatamente o silenciamento de todos os modos de vida presentes na favela. O julgamento de que a forma como Jojô se comporta “não é correta” porque ela não preenche essa expectativa dos “bons modos” definidos por essa classe mais abastada. Essa questão fica bastante clara em uma fala do apresentador do programa, Marcos Mion: “Você é uma mulher que defende os seus princípios, defende a sua história. Mas você também já viu que a intensidade com a qual você se defende e defende os seus princípios, às vezes, pode machucar” [3], reforçando ainda um outro estereótipo: o da mulher negra agressiva.

Jojô rompe com o silenciamento que lhe é imposto social e historicamente ao impor sua voz n’A Fazenda. Uma mulher negra, gorda, da favela, mostrando que sim, ela merece respeito, o modo de vida dela merece respeito: um posicionamento que assusta as pessoas que buscam apenas o apagamento das alteridades e dos conflitos cotidianos, mais até que estupros que ocorrem nesses programas, só em termos de comparação em relação à naturalização da violência contra a mulher.

Embora eu não assista ao programa, torço para que Jojô ganhe. Ela é potência de rompimento em todas as suas formas, uma potência que pode até cantar um ponto de Exu na emissora de um bispo evangélico.

 

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Ana Teresa Gotardo é doutora em Comunicação pelo PPGCom/UERJ.

 

[1]  https://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_comunicacao_inovacao/article/view/3894

[2] https://www.academia.edu/34000184/Rio_para_gringo_A_constru%C3%A7%C3%A3o_de_sentidos_sobre_o_carioca_e_a_cidade_para_consumo_tur%C3%ADstico_Rio_for_gringo_the_construction_of_meanings_about_carioca_for_tourist_consumption

[3] Fonte: https://www.uol.com.br/splash/colunas/mauricio-stycer/2020/10/09/mion-e-a-direcao-da-fazenda-erram-com-pedido-para-jojo-pegar-mais-leve.htm. Acesso em 9 nov. 2020.

 

Referências:

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

Jojo Todynho e a docilização do corpo da mulher negra no reality “A Fazenda”