Ana Clara Camardella | Outubro 2020

Percebemos que durante o período de isolamento social, os discursos acerca do consumo sofreram algumas reconfigurações. Uma delas foi o apelo para que a população consumisse somente o que é “essencial”. É a partir dessa ideia, que pensamos ser inevitável tratar sobre o dito “consumo consciente”.

Fazendo um paralelo com o consumo de roupas, observamos o modelo de consumo conhecido como Fast fashion, que se caracteriza pela produção, consumo e descarte das roupas realizados de forma rápida. Esse modelo de produção tem sofrido diversas críticas, pois faz uso indiscriminado de recursos naturais. É nesse contexto, que surge o Slow fashion, um movimento que nasce com o objetivo de mudar a mentalidade na forma de consumir moda, através da produção de peças atemporais e a reutilização do que costuma ser descartado pela indústria.

Na obra Moda e sustentabilidade uma reflexão necessária (2012), Berlim aponta para a necessidade de repensar o modelo de negócio praticado pelos grandes varejistas, segunda a autora, a produção slow exige que todos que fazem parte da cadeia têxtil, incluindo o consumidor final estejam atentos aos impactos causados ao meio ambiente. Ainda sobre o Slow fashion, as autoras inglesas Kate Fletcher e Lynda Grose destacam, em sua obra Moda e sustentabilidade: design para mudança (2011), as possíveis transformações ocasionadas com a implementação do modelo de produção slow no sistema da moda. Nas palavras das autoras,

O vocabulário da moda lenta, de produção em pequena escala, técnicas tradicionais de confecção […] muda as relações de poder entre criadores da moda e consumidores e forja novas relações e confiança, só possíveis em escalas menores. Fomenta um estado mais elevado de percepção do processo de design e seus impactos sobre fluxos de recursos, trabalhadores, comunidades e ecossistemas. Precifica as vestimentas a fim de refletir seu custo real. Promove a democratização da moda, não por oferecer às pessoas “mais roupas baratas que basicamente parecem iguais”, mas por lhes proporcionar mais controle sobre as instituições e as tecnologias que impactam suas vidas (FLETCHER e GROSE, 2011, p. 128).

Quando se fala em consumo consciente, muitas das vezes, essa ideia é atribuída a mudanças de hábitos em nível individual. As próprias definições do termo fazem referência a mudanças pessoais a partir de “consciência ecológica, economia de recursos, reciclagem e planejamento de consumo”.

No entanto, essas escolhas individuais não se configuram como movimentos de resistência política ou de pleito de uma alternativa social. Se formos pensar em ações, nesse sentido, poderíamos citar alternativas como usar menos a máquina de lavar, cozinhar com menos frequência ou usar roupas herdadas. Trazendo para a situação prática, podemos perceber que tais ações já são a realidade de grande parcela da população que vive com menos de um salário mínimo e não tem condições de, por exemplo, possuir uma máquina de lavar, realizar todas as refeições ou comprar roupas novas. Portanto, reforçando, escolhas pessoais não podem ser configuradas como ações de resistência, visto que, mudança pessoal não é o mesmo que mudança social.

Vale destacarmos aqui o documentário “Forget Shorter Showers” (2015), que cita outro documentário de 2006 intitulado “Uma verdade inconveniente”. Este último descreve o problema do aquecimento global e apresenta alternativas de cunhos individuais, a partir do argumento de que se todos nós mudássemos nossos hábitos pessoais poderíamos parar o processo do aquecimento global e da mudança climática, garantindo que haverá um século XXII. Porém essas alternativas individuais não gerariam nenhum efeito, visto que como colocado pelo documentário “Forget Shorter Showers” (2015): mesmo que toda a população norte-americana mudasse seus hábitos, tendo condições financeiras para tal ou não, o impacto na produção de gases que gera o aquecimento global seria de 22% e para que o mundo não entre em colapso, precisaríamos de 75%. Então, mesmo que toda a população mude seus hábitos e isso não chega nem a metade do impacto, quem deveria reverter essa situação? A resposta são as grandes indústrias, as grandes corporações, os indivíduos com maior poder aquisitivo para mudar a sociedade, os bilionários, e o governo.

Quando o documentário de 2006 (“Uma verdade inconveniente”) coloca a alternativa da troca de lâmpadas pelos cidadãos, ele não cita, por exemplo, o processo de obsolescência programada empregada pelas empresas capitalistas para que bens e serviços tenham uma vida útil limitada, ficando obsoletos em um curto espaço de tempo, a fim de fomentar o consumo desenfreado. Um exemplo: a produção de celulares que a cada dois anos possuem uma atualização no seu sistema operacional no qual faz com que os modelos mais antigos tenham o seu desempenho comprometido, ficando mais lentos, com designs desatualizados e que promovem uma corrida por status a partir do mais novo modelo lançado, aqui observamos aquele caráter sígnico sobreposto à função objetiva do aparelho, como propôs Baudrillard (1995).

Logo, pensar um novo modo de produção ou consumo consiste é também pensar uma forma de acabar com essa obsolescência programada. O modelo slow até pode ser apresentado como uma alternativa, mas só terá efeito realmente efetivo, se as grandes indústrias mudassem o seu modus operandi.

O questionamento que nos cabe aqui, seria: será que com o avanço da pandemia do Covid-19, a sociedade passaria a produzir/consumir mais conscientemente? Ou seja, aquilo que realmente nos é necessário?

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Ana Clara Camardella é mestranda em Comunicação no PPGCom da UERJ.

 

Referências bibliográficas:

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.

BERLIM, Lilyan. Moda e sustentabilidade uma reflexão necessária. São Paulo, Brasil: Estação das letras e cores, 2012.

FLETCHER, Kate; GROSE, Lynda. Moda e sustentabilidade: design para mudança. São Paulo: Editora Senac, 2011.

FORGET Shorter Showers. Direção de Jordan Brown. Austrália: 2015 (12 min.). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eHb4CZlAfGQ> Acesso em 12 mai. 2020.

UMA Verdade inconveniente [An Inconvenient Truth]. Direção de Davis Guggernheim. Estados Unidos: 2006 (1h 36 min.).

 

Consumo consciente? Uma (breve) análise da dinâmica do ‘discurso consciente’ em um contexto de isolamento social