Roberto Vilela | Setembro 2020

O sociólogo francês Marc Augé notabilizou-se pelo conceito de “não-lugares”, espaços de passagem, sem significado, sem identidade, onde não há a construção de vínculos. Humildemente, peço licença para discordar de Augé, pois, para este que vos escreve, o significado de qualquer coisa (ou lugar) está muito mais ligado às representações que projetamos naquilo, do que à coisa em si. Mas a partir de Augé, mergulho no subterrâneo carioca para contar uma história que poucos conhecem, a história de “cápsulas do tempo”, de frestas e túneis, de “não-lugares” cheios de significados, de sonhos interrompidos e planos abortados.

​O metrô do Rio foi inaugurado em 1979 com apenas quatro estações: Praça XI, Central, Presidente Vargas e Glória. Em 1980 houve a primeira expansão com a inauguração das estações Estácio e Uruguaiana. No ano seguinte, 1981, há outro ciclo de expansão quando as estações Botafogo, Flamengo, Catete e Carioca são abertas. Em 1982 o metrô chega à Tijuca com a inauguração da estação Saens Peña, e assim a Linha 1 foi paulatinamente se expandindo, ligando as zonas norte e sul, e passando pelo Centro.

​A estação Carioca foi pensada como um ponto nodal do sistema, possibilitando a convergência das Linhas 1 e 2, bem como ensejando a Linha 3. Quando disponível ao público, poucos sabiam que 15m abaixo daquela plataforma havia outra em construção: a Carioca II (Linha 2). ​A ideia era que tudo fosse inaugurado em 1981, mas as obras atrasaram. Então, inaugurou-se a Carioca Linha 1 e, concomitantemente, prosseguiram com as obras abaixo dela a fim de terminar a Carioca Linha 2, cuja data de finalização foi adiada para 1984. A estação ficou pronta, faltando apenas detalhes de acabamento, mas as composições do metrô nunca chegaram ali. A Linha 2 foi projetada, originalmente, para ligar Belford Roxo a Praça XV, mas até hoje o único trecho construído vai da Pavuna ao Estácio. Mediante tal situação, a estação Estácio foi transformada numa ligação paliativa entre as Linhas 1 e 2, até que a Carioca II ficasse pronta (teoricamente em 1984). Ocorre que, na prática, o paliativo que era para durar de 2 a 3 anos, perdurou até 2010, quando a gambiarra da gambiarra foi inaugurada, a estação Cidade Nova. Vocês já vão entender o porquê da “gambiarra da gambiarra”. Tenham calma.

​O projeto original do metrô do Rio previa que a Linha 2 fosse totalmente independente da Linha 1, seu único ponto de contato ocorreria na estação Carioca. Poucos sabem disso, mas a partir da estação Estácio há 150m de túnel aberto pelo “tatuzão” (e com trilhos já instalados) na direção do sambódromo, ali teríamos a estação Catumbi. Seguindo nesta trajetória em direção à Carioca, teríamos a estação Praça da Cruz Vermelha. Depois, descendo a rua da Relação, haveria a conexão com a Carioca II por debaixo da Avenida Chile. Ali, ao lado do prédio da Petrobrás, ficaria o principal acesso da superfície à Carioca II, o outro seria à rua Evaristo da Veiga. Subterraneamente, Carioca I e Carioca II se comunicariam integralmente como uma grande estação. Dando sequência ao traçado original da Linha 2, da Carioca II o metrô chegaria à Praça XV. Ali acabaria a Linha 2, mas, trocando de plataforma, acessaríamos a Linha 3 cujo trajeto passaria pelo fundo da Baía de Guanabara até a Praça Arariboia (em Niterói), para seguir rumo à Avenida Jansen de Melo, ao Barreto, São Gonçalo, até Itaboraí. Tal processo parece complexo, mas na Europa e EUA há alguns trechos de metrô e trens – como no Canal da Mancha – que passam por debaixo de rios, baías e canais.

Muitos devem estar se perguntando: “Nossa! Mas falta muita coisa para completar a Linha 2 toda?!” Se pensarmos de Belford Roxo a Praça XV, sim. Mas se ao menos as estações entre Estácio e Carioca II fossem inauguradas, isso desafogaria muito o nó que há na Linha 1 no Centro nos horários de pico, bem como dinamizaria a Linha 2, que diariamente transporta mais passageiros do que a Linha 1.

Funcionando pelo menos da Pavuna a Carioca II, sem baldeações no Estácio ou na Cidade Nova, a Linha 2 poderia operar com composições de 8 vagões, e não 6 como atualmente. Isso diminuiria o intervalo entre os trens que hoje beira os 6 minutos na hora do rush, para pouco mais de 1 minuto. Estudos de engenharia de tráfego realizados pela COPPE-UFRJ comprovam o que estamos dizendo. Além disso, tal medida desafogaria a Linha 1 que compartilha os mesmos trilhos com a Linha 2 da Cidade Nova até Botafogo. Por isso dissemos que a estação Cidade Nova é a “gambiarra da gambiarra”. Ou seja, se a gambiarra inicial era a baldeação da Linha 2 no Estácio, em 2010, ao invés de finalizarem a Carioca II e sua ligação com o Estácio, preferiam fazer uma estação de arremedo na área de manutenção do metrô, ao final da Avenida Presidente Vargas. Tal solução, visualmente chamativa, com uma passarela de arquitetura arrojada sobre a Avenida Francisco Bicalho, não só não resolveu o histórico problema dos longos intervalos da Linha 2, como açodou ainda mais a Linha 1.

​Nas fotos, vocês podem ver nitidamente a estação Carioca II praticamente pronta, com plataformas, rampas de acesso, escadas, espaço para a instalação de escadas rolantes e toda a estrutura 90% pronta. Ao final de 1997, quando o metrô do Rio foi privatizado, ventilou-se a possibilidade da conclusão da Linha 2 original, pelo menos esse trecho do Centro que vai do Estácio à Praça XV, mas o consórcio Opportrans preferiu investir na expansão da Linha 1 aos bairros atlânticos da Zona Sul, daí a chegada do metrô a Copacabana em 1998.

Mais recentemente, no bojo do “oba-oba” olímpico, em 2015, o então governador Luiz Fernando Pezão cogitou retomar as obras da Linha 2 original, concluindo a estação Carioca II e sua ligação com o Estácio. Mas tudo não passou de “cortina de fumaça”. As fotos que acompanham essa postagem datam de uma coletiva à imprensa na Carioca II, e também de pesquisadores que tiveram acesso ao lugar na mesma época, após muito insistirem, inclusive por meio de ações judiciais.

​Voltando às fotos, notem que há um túnel fechado propositalmente com várias vigas. Notaram? Sabem o que é aquilo? Vamos explicar: a promessa de inaugura-la em 1984 também atrasou, mas as obras continuaram. Até que em 1988 o então governador Moreira Franco as interrompeu. Os homens que ali trabalhavam foram obrigados a deixar o canteiro de obras do jeito que estava… Pertences largados, roupas, sapatos, capacetes de segurança, material de obra, canos, vergalhões, vigas, latas de refrigerante, restos de “quentinhas”, cadeiras, mesas… Tudo foi deixado pra trás como numa cápsula do tempo. Para enfatizar a paralização abrupta, conscientemente ou não, em algumas paredes alguém escreveu usando tinta spray “1988”, o ano em que tudo parou 15m abaixo da plataforma 1 da estação Carioca.

Mas o túnel a que nos referimos no parágrafo anterior, com algumas vigas propositalmente fechando-o, é o túnel que dá acesso à estação Praça da Cruz Vermelha. Ela existe parcialmente. O local ainda está na rocha, no barro. Ou seja, o “tatuzão” já a escavou, iniciou a perfuração do túnel de ligação com a Carioca II, mas nenhum tipo de benfeitoria, como a delimitação de uma plataforma ou acessos à superfície, por exemplo. Lá ninguém vai desde 1992, quando algumas obras foram feitas na intenção de construir acessos à superfície, mas não houve continuidade. O único elo que a liga ao mundo se dá através desse túnel, ainda em estado bruto, que a liga à Carioca II.

Em nossa próxima postagem falaremos sobre outra estação “fantasma” que há no subterrâneo carioca, mais precisamente em Botafogo. Se há casos em que o silêncio tem mais eloquência do que o som das palavras, os “não-lugares” de uma cidade também podem dizer mais sobre ela do que alguns espaços largamente frequentados e consumidos.

 

Referências Bibliográficas:

Acervo do jornal O Globo.

Blog o metrô do Rio (não oficial). Disponível em:  <http://www.metrodorio.blogspot.com>.

AUGÉ, Marc. Não Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas (SP): Ed. Papirus, 1992.

Ocasos do metrô carioca: Linha 2, gambiarras e “não-lugares”