Alessandra Porto | Setembro 2020

Os costumes e hábitos ligados à praia ganharam novas configurações e significados no Rio de Janeiro do século XIX ao XXI, reforçando a essência balneária da cidade. E com o passar dos anos, as praias se consagraram como locais de práticas esportivas e de lazer tanto em terras cariocas quanto em Niterói, cidade da região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município de Niterói possui uma população estimada de 515.317 habitantes no ano de 2020. A cidade tem dezesseis praias, dispostas do seguinte modo: onze são banhadas pelas águas da Baía de Guanabara, e cinco pelo Oceano Atlântico (conhecidas como oceânicas). São elas: Itacoatiara, Camboinhas, Itaipu, Piratininga e Sossego. As cinco praias possuem águas com boas condições de balneabilidade, e são bastante procuradas para o banho de mar e para os momentos de lazer. Nos finais de semana e feriados, as praias oceânicas de Niterói são frequentadas tanto por habitantes da própria cidade quanto pelos dos municípios vizinhos, como São Gonçalo e Itaboraí. De um modo geral, as cinco praias apresentam atmosfera rústica e selvagem, o que acaba atraindo também os moradores do município do Rio de Janeiro (especialmente os que buscam atrelar o passeio em Niterói ao mergulho em praias menos urbanizadas). Ou seja, as areias das praias oceânicas da cidade acolhem diversas tribos, onde os sujeitos estabelecem seus intercâmbios culturais, possibilitando assim uma renovação constante nas práticas e experiências através do jogo cotidiano entre territorialização-desterritorialização, tecendo os significados dos lugares (FERNANDES, 2012).

Nesse contexto, vale lembrar que a variedade de produtos vendidos nas praias da cidade do Rio de Janeiro é enorme: água mineral, água de coco, refrigerantes, cerveja, mate, sanduíches, biscoitos, empadas, pastéis, queijo coalho na brasa, camarão frito, bijuterias, óculos, bonés, chapéus, mantas, redes, roupas, dentre outros (CORRÊA, 2009).  E assim como nas praias cariocas, a presença de ambulantes comercializando diversos produtos também faz parte da rotina das praias desse “lado da poça” (como popularmente as pessoas se referem à separação entre o Rio e Niterói pela Baía de Guanabara), garantindo o ganha-pão de muitos ambulantes. Mas o coronavírus chegou ao Brasil; e, em março de 2020, foi declarado o estado de transmissão comunitária da covid-19 em todo o território nacional. Desse modo, foram adotadas várias medidas sanitárias para evitar o contágio. Estar em locais com aglomerações de pessoas passou a oferecer riscos de contaminação, fazendo com que vários prefeitos criassem leis e decretos municipais adequando a rotina das cidades à realidade pandêmica. Sendo assim, Rodrigo Neves (prefeito da cidade de Niterói)  proibiu a permanência nas praias da Região Oceânica e da Baía de Guanabara através do decreto Nº 13.513/2020, de 19 de março de 2020. Com a proibição de frequentar as praias, ambulantes e barraqueiros pararam de trabalhar em Niterói – e muitos ficaram sem o seu principal sustento. E em meio à confusão para recebimento do auxílio financeiro do governo destinado aos trabalhadores informais e microeemprendedores durante a pandemia, “o povo praieiro de Nikity” se mobilizou para ajudar. E quando mencionamos a situação dos ambulantes das praias oceânicas de Niterói durante a pandemia, é interessante observar a campanha para ajudar financeiramente o Sr. Jair Conceição da Motta. Conhecido pela frase “Alguém me chamou aí?”, o sorridente senhor trabalha há mais de 40 anos vendendo biscoitos de polvilho e picolés nas praias da região oceânica de Niterói (principalmente em Piratininga, onde é considerado um “patrimônio”). É fácil reconhecê-lo nas areias por onde passa, já que o bordão “Alguém me chamou aí?” sai de sua garganta a plenos pulmões quando está trabalhando. Devido à sua popularidade, a prefeitura de Niterói chegou a produzir um vídeo com o Sr. Jair no ano de 2015, onde uma das entrevistadas frisa que o ambulante: “Está sempre sorrindo, está sempre de bem com a vida. É a alegria de Piratininga.” Brincalhão, ele diz que vende picolé de leite “condenado” (em referência ao sabor de leite condensado) e de goiaba “com direito a bichinho”. E enquanto caminha pela areia, o Sr. Jair segue gritando: “Olha ele aí, ele que vende um picolé e ainda faz você sorrir!”

Jair Motta, ambulante das praias oceânicas de Niterói.

Fonte: Facebook.

A situação financeira do Sr. Jair durante a pandemia gerou preocupação entre os seus “fãs”, que lançaram uma campanha nas redes sociais para ajudá-lo. Visando levantar recursos para o ambulante, a mensagem divulgada na rede social Facebook enfatizava a sua gargalhada, e mencionava: “ (…) Alguém me chamou aí?, o vendedor de picolé mais antigo da praia de Piratininga! Mais que isso, ele é nosso amigo, faz parte da família praiana!!!” Nesse sentido, torna-se necessário fazer algo para ajudar aquele “parente da praia”, pois o que está em jogo é o coletivo em ato, as diversas aglomerações (esportivas, musicais, de rede, do tribalismo), uma vez que a acentuação da experiência vital nos induz à socialidade (MAFFESOLI, 2004).

Campanha para o Sr. Jair durante a pandemia.

Fonte: Facebook.

Outro exemplo a ser observado foi o compartilhamento espontâneo das mensagens das Empadas do Barbudo. Comercializada por ambulantes nas praias oceânicas, a tradicional marca de empadas de Niterói lançou uma campanha em sua página no Facebook para estimular a venda do produto através de delivery durante a pandemia, após ver as vendas despencarem com a interdição das praias.

Campanha das “Empadas do Barbudo” durante a pandemia de covid-19.

Fonte: Facebook.

Na campanha criada na rede social Facebook, a marca de salgados faz menção direta à praia de Camboinhas como elemento da mensagem, frisando que as “empadinhas do Barbudo” suscitam a lembrança do local. E logo após a empresa iniciar a divulgação, os fregueses que costumavam degustar o alimento nas areias das praias oceânicas de Niterói começaram a compartilhar os posts no Facebook, para ajudar a marca de empadas a superar a crise de vendas gerada pela covid-19. Território anárquico, a praia mistura cores, sons, cheiros e sabores. Nas praias oceânicas de Niterói, tanto o grito de “Alguém me chamou aí?” do Sr. Jair quanto o gosto das Empadas do Barbudo remetem a um sentir em comum, revelando o élan comunitário, que permite que o intercâmbio indivíduo-cidade desperte ou provoque o grupo para a possibilidade de se re-conhecer (FERNANDES, 2009). E tal experiência do mundo vivido coletivamente nenhum vírus ou isolamento social é capaz de destruir.

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Alessandra Porto é doutoranda no PPGCom da UERJ e professora no IBMEC.

 

Referências:

CORRÊA, Sílvia Borges. Lazer, trabalho e sociabilidade na Praia de Copacabana.  In: BARBOSA, Lívia et al. (Org.). Consumo: cosmologias e sociabilidades. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009.

DECRETO Nº 13.513/2020 – Prefeitura Municipal de Niterói. Disponível em: <https://leismunicipais.com.br/> Acesso em 12 set.2020.

FERNANDES, Cíntia Sanmartin. Territorialidades cariocas: cultura de rua, sociabilidade e música nas “ruas-galerias” do Rio de Janeiro. In: FERNANDES, Cíntia Sanmartin; MAIA, João; Herschmann, Micael. (Orgs.) Comunicações e Territorialidades: Rio de Janeiro em cena. Rio de Janeiro: Anadarco, 2012.

_____________________. Sociabilidade, comunicação e política: a experiência estético-comunicativa da Rede MIAC na cidade de Salvador. Rio de Janeiro: E-papers, 2009.

GOVERNO FEDERAL –  Portaria Nº 454 de 20 de março de 2020: Estado de transmissão comunitária do coronavírus (covid-19) em todo o território nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Portaria/prt454-20-ms.htm> Acesso em 08 set.2020.

INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE (INEA). Disponível em: <http://www.inea.rj.gov.br/wp-content/uploads/2020/01/niteroi_historico_2020.pdf> Acesso em 08 set.2020.

MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pós-modernidade: O lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004.

NITERÓI EMPRESA DE LAZER E TURISMO (NELTUR). Praias Oceânicas. Disponível em: <http://www.visit.niteroi.br/praias-oceanica/> Acesso em 08 set.2020.

PORTAL DO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rj/niteroi.html> Acesso em 08 set.2020.

PREFEITURA MUNICIPAL DE NITERÓI. Alguém me chamou aí? Nós fomos às ruas acompanhar de perto a rotina do Seu Jair e ouvir a opinião carinhosa da galera sobre ele.” Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/?v=724315644349788&extid=8Uo3nW64GVVt6eBf> Acesso em 12 set.2020.

A “família praiana” de Niterói e a pandemia: ambulantes e socialidades das praias oceânicas