Ana Teresa Gotardo | Setembro 2020

A violência contra a mulher tem diversas formas e está tão enraizada em nosso cotidiano que muitas vezes é difícil identificá-la. Ela é reproduzida e normalizada nos mais diversos artefatos da cultura, o que torna seu combate muito difícil, especialmente porque é preciso que a mulher se empodere, identifique-se como vítima e, assim, possa romper com outra violência para quebrar o próprio ciclo em que está inserida: o silenciamento, que pode vir da própria mulher (calar-se), pelo medo ou pela vergonha (muitas vezes imputados pelo agressor ou por uma sociedade que responsabiliza a mulher pelo sucesso ou fracasso de uma relação), ou por quem exerce a violência, por meios de processo de interdição discursiva ou, ainda, no limite, até pelo feminicídio.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o conceito de empoderamento aqui empregado, tendo em vista que sua vasta utilização tem trazido diversos significados que muitas vezes esvaziam a luta política nele contida. Trata-se de uma tomada de consciência, um processo que é tanto gradual quanto doloroso, mas que carrega em si um grande potencial transformador tanto no plano individual quanto coletivo. Não é algo que possa ser transmitido de uma pessoa para outra, mas uma conscientização sobre as relações de poder e as opressões para visar o fim das (ou resistência às) estruturas patriarcais.

No plano pessoal, o empoderamento de mulheres se refere aqui ao processo da conquista da autonomia, da autodeterminação, enquanto no plano político diz respeito ao desenvolvimento da força política e social das mulheres como um grupo ou minoria. Mas um depende do outro, ambos trabalhando no sentido da libertação das mulheres das amarras da opressão de gênero patriarcal. (Sardenberg, 2018, p.18)

Em segundo lugar, é necessário destacar que as diversas formas de violência contra a mulher possuem raízes profundas. Federici (2017) aborda a questão da acumulação primitiva a partir da perspectiva feminista destacando fenômenos de exploração ligados ao gênero e essenciais para a acumulação capitalista, como construção de uma nova divisão sexual do trabalho e de uma nova ordem patriarcal, que exclui e subordina as mulheres do trabalho assalariado e as transforma em “máquinas de produção de novos trabalhadores” (Federici, 2017, p.26), com a idealização da maternidade compulsória; nesse sentido, o capitalismo precisou destruir, com sua “caça às bruxas”, alguns sujeitos femininos: “a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião” (Federici, 2017, p.24). Ainda seguindo o pensamento da autora que novas fases de acumulação capitalista vêm acompanhadas por mais violência, talvez fosse possível inclusive traçar um paralelo com o enriquecimento das famílias mais ricas do mundo durante a pandemia[1] enquanto casos de violência doméstica crescem a cada dia e o acesso aos canais de denúncia estão cada vez mais dificultados tanto pela pandemia em si quanto pelos desmontes das políticas públicas em favor das mulheres (Sardenberg, 2020).

O silenciamento é necessário para a manutenção da sujeição das mulheres a esse sistema patriarcal opressor: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar” (Foucault, 2000, p.10). Há, Segundo Foucault (2000), alguns procedimentos de interdição discursiva que garantem a manutenção desses processos de silenciamento que são parte de uma violência estrutural, mas que também é institucionalizada nas mais diversas instâncias e naturalizada pelos mais diversos meios, incluindo até mesmo algumas patologizações da mulher (por exemplo, a mulher que não consegue controlar as emoções, ou a ex louca, deprimida, bipolar), como se patologizar o problema garantisse a inviolabilidade do saber científico médico com o acionamento de biopoder, um poder disciplinar, tecnologia disciplinadora do corpo da mulher que a subjuga.

Os procedimentos de exclusão discursivos externos (Foucault ainda fala dos procedimentos internos de controle e das condições de funcionamento), os quais destaco aqui pela frequência com que são usados como forma de violência de gênero, são: (1) interdição, pelo tabu do objeto, pelo ritual da circunstância ou pelo direito exclusivo de fala, sendo que essas interdições revelam uma ligação com desejo e com poder; (2) segregação da loucura, um discurso que não pode circular como os outros; a palavra louca era ou nula ou fonte de estranhos poderes premonitórios, mas de toda forma, era o reconhecimento da loucura do louco, portanto, nunca eram recolhidas ou escutadas “desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância” (Foucault, 2000, p.10); (3) vontade de verdade, com sua estreita relação com a vontade de saber, sustentada por todo um sistema de exclusão histórico, institucional, opressor, que pode agir inclusive como sistema de coerção. E é justamente a vontade de verdade que justifica os dois primeiros procedimentos, a interdição e a segregação.

Os padrões discursivos se repetem constantemente, acionando os mesmos métodos. “Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo o caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade” (Foucault, 2000, p.53). O poder patriarcal, assim como outros sistemas de opressão, utiliza desses procedimentos de exclusão para silenciar vítimas, reforçar o ideal de competição entre mulheres e continuar na manutenção do seu propósito de vontade de verdade.

Mas se, por um lado, a violência contra a mulher está sempre se reinventando e tomando novas formas, as resistências estão ganhando corpo ao redor do mundo, inclusive pela disputa semântica, para que seja possível à mulher apoderar-se também desse poder/saber discursivo, enfrentando o poder da fala masculino-cis-branco-hétero contra o silenciamento imposto também pela naturalização da violência. Empoderamento feminino também diz respeito a reconhecer essas violências discursivas e lutar contra elas, tanto no âmbito pessoal, problematizando as vivências e verdades que  naturalizamos, especialmente quando ditas por homens cisgênero (por exemplo, você estaria disposta a ter uma conversa franca e honesta com a ex de seu atual parceiro, aquela que ele diz que é louca?), ou os lugares que nos são destinados na vida privada; mas também entendendo que não se trata de uma questão privada, e sim, pública, de forma a romper com essas raízes profundas, buscando condições de equidade como política pública de enfrentamento e tendo consciência de que não estamos sozinhas e que precisamos umas das outras para nos fortalecermos.

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Ana Teresa Gotardo é doutora em Comunicação pelo PPGCom/Uerj.

 

Referências:

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Fundação Rosa de Luxemburgo: Editora Elefante, 2017.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2000.

SARDENBERG, Cecilia M. B. O pessoal é político: conscientização feminista e empoderamento de mulheres. Inclusão Social, v. 11, n. 2, 13 ago. 2018.

SARDENBERG, Cecilia M. B. Violência contra a mulher na pandemia: políticas para o empoderamento feminino. Publicado em 23 de julho de 2020. Extraído de: http://www.aconteceh.uerj.br/fcs2013/?page_id=9407. Acesso em 14 ago. 2020.

 

[1] Fonte: https://oglobo.globo.com/economia/ricos-ficam-ainda-mais-ricos-na-pandemia-fortuna-das-25-familias-que-estao-no-topo-chega-us-14-trilhao-24564120. Acesso em 03 ago. 2020.

A violência do silenciamento e a disputa discursiva