Tetê Mattos | Setembro 2020
No campo acadêmico brasileiro observamos um aumento das pesquisas em programas de pós-graduação tendo os festivais de cinema como objeto de estudo. Essa ainda tímida expansão pode ser percebida na edição de 2019 da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual onde seis dos trabalhos selecionados tratavam de festivais de cinema, sejam eles diretamente centrados nos eventos audiovisuais, ou os festivais atravessando as pesquisas.
Diante do aumento expressivo dos festivais de cinema no Brasil, sempre tive uma grande inquietação devido à ausência de pesquisas sobre esse segmento tão potente e estratégico para o audiovisual brasileiro. Em 2014, ingressei no PPGCom da UERJ para estudar o Festival do Rio sob a orientação do professor Dr. Ricardo Ferreira Freitas. A pesquisa desenvolvida na linha Cultura das Mídias, Imaginário e Cidade foi intitulada “O Festival do Rio e as configurações da cidade do Rio de Janeiro.” O meu objeto buscava investigar a imagem do Rio de Janeiro representada nos discursos oficiais do Festival do Rio e nos filmes exibidos no Festival que tinham a cidade como protagonista. O meu objetivo era entender semelhanças e diferenças entre dois discursos – o discurso oficial e o discurso estético -, para entender como eles se articulavam nos festivais de cinema. Parti da hipótese de que havia uma provável diferença entre estes dois discursos e intui que havia uma intencionalidade do discurso oficial do Festival com o discurso de cidade promovido pelas instâncias patrocinadoras.
A vantagem de realizar uma pesquisa com abordagem contemporânea é a de que ela te permite coletar material e dados diretamente durante o Festival. A desvantagem foi ter que lidar com um contexto em transformação e a ausência de distanciamento que às vezes dificulta a compreensão do momento estudado. No caso desta pesquisa, ela foi realizada no contexto das profundas transformações no traçado urbano da cidade do Rio de Janeiro que na ocasião se preparava para receber os megaeventos tais como a Copa do Mundo, e especialmente os Jogos Olímpicos de 2016.
No inicio da pesquisa pretendia estudar o discurso oficial / institucional do Festival do Rio em três momentos. Porém, diante do entusiasmo com o objeto e ausência de pesquisas sobre o tema, optei em estudá-lo em todas as suas edições, isto é, de 1999 até 2017. E no caso do discurso estético, representado pelos filmes exibidos na mostra Première Brasil, escolhi a edição de 2015 que apresentava um conjunto significativo de filmes onde a cidade era protagonista.
A pesquisa partiu de duas premissas: a primeira compreende os festivais como fenômenos de comunicação e constituem importantes espaços de sociabilidade e de trocas simbólicas. A experiência de assistir a um filme coletivamente, a presença de artistas que participaram das obras exibidas nas sessões, os debates seguidos de exibição, são experiências que potencializam os festivais como possíveis instituições discursivas. A outra premissa entende os festivais como experiências de cidade. No caso do Festival do Rio, a cidade aparece no nome do Festival, se sobrepondo ao campo artístico.
Para analisar o discurso oficial/ institucional do Festival do Rio partimos de duas linhas de análise: a cidade no Festival, onde utilizamos como corpus da pesquisa a identidade visual, a marca, as peças gráficas (cartazes, convites, programas), os textos dos catálogos, troféus e as vinhetas; a outra linha o Festival na cidade analisamos os espaços de realização do evento. Também realizamos entrevistas com diretores do Festival do Rio, e com o artista gráfico criador da marca. Para o discurso estético, analisamos os filmes.
Fig. 1 – Catálogos do Festival do Rio.
Foto: Tetê Mattos.
Fig. 2 – Postais do Festival do Rio.
Foto: Tetê Mattos.
Pesquisar um objeto efêmero – festivais de cinema – implica alguns desafios. Os festivais de cinema estão muito focados em sua produção anual. Assim que o material produzido (identidade visual, por exemplo) esgota o seu valor de uso, isto é, divulgar o festival, ele é descartado devido às dificuldades de armazenamento. Um dos desafios foi levantar o material de 19 anos de Festival que se encontrava fragmentado em arquivos institucionais e outros pessoais. Para isso, contamos com uma rede de colaboração afetiva de cinéfilos, arquivistas e cineastas, além, é claro, da equipe de produção do Festival, resultando no acesso à quase totalidade do material.
O meu papel como pesquisadora também foi facilitado na medida em que sempre fui frequentadora do Festival do Rio, e neste sentido já possuía muitos catálogos e postais, e durante o processo da pesquisa tive a sorte de ter um filme selecionado para a mostra competitiva do Festival, o que me proporcionou acesso privilegiado às sessões da Première Brasil. A pesquisa no acervo da Cinemateca do MAM também foi fundamental para a coleta das fontes. As cinematecas são espaços fundamentais para a preservação dos filmes, mas também dos documentos ligados ao audiovisual.
Diante de material tão vasto e diverso, utilizei como estratégia metodológica a criação de categorias de cidade que me possibilitaram a análise dos discursos do Festival.
Fig. 3 – Categorias de cidade.
Elaboração: Tetê Mattos.
Assim, a partir das categorias, o trabalho transitou em diferentes tipos de análise: análise visual da parte gráfica, análise audiovisual dos filmes e das vinhetas, análise discursiva dos textos do catálogo, trabalho de campo nos espaços de exibição e produção do festival, e entrevistas com os produtores e profissionais envolvidos.
A pesquisa apresentou um aspecto interdisciplinar tendo a sua fundamentação teórica em textos do campo do urbanismo, do campo da produção cultural, e dos estudos do audiovisual
Por fim espero que este artigo tenha encorajado futuras pesquisas neste emergente campo de estudo que são os festivais de cinema. Campo este de imensa potência e estratégico para os estudos do audiovisual. E que mesmo em tempos de pandemia, vem encontrando formas de (re)existência no ambiente virtual.
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Tetê Mattos é professora do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense, doutora em Comunicação pelo PPGCom/UERJ e documentarista.