Carlos Diniz | Agosto 2020

Não se trata simplesmente de um lugar de passagem e circulação.[…] A rua? É o lugar (topia) do encontro, sem o qual não existem outros encontros possíveis nos lugares determinados (cafés, teatros, salas diversas). Esses lugares privilegiados animam a rua e são favorecidos por sua animação, ou então não existem. (LEFEBVRE, 1999).

O Rio de Janeiro é rua, lugar que permite encontros, desencontros, andanças e aglomerações. Permite que estejamos sempre à deriva pela cidade descobrindo lugares, histórias e pessoas. Permite que não saibamos exatamente o que escolher entre as mil opções culturais que a cidade oferece. Possibilita que nos deixemos levar seguindo sons, cheiros e imagens, entrando em cinemas, galerias, sebos e centros culturais, parando em festivais, shows e botecos. Encontrando, sempre encontrando, mesmo quando não se está procurando.

A rua é um conceito. Um sentimento partilhado, como descrito por João do Rio (1995). Mas 2020 foi e está sendo o ano de ficar em casa, para se proteger e proteger os outros. Quando se pode e caso se possa, ficar em casa significa respeito pela vida e uma forma de afeto para com as pessoas e para com a cidade diante de uma pandemia que já matou mais de 100 mil pessoas no Brasil. Nesse contexto, as distâncias físicas aumentam e a solidão pode ser a única companhia. E a rua se afasta, se subjetiva ainda mais. O amor de João do Rio pela rua, hoje, é um amor à distância. Um amor que não se sabe se é correspondido. Como manter, em época de isolamento social, esse sentimento?

A cidade grita, chora, resmunga, sussurra, ouve, sente. Ela, sobretudo, responde. Entre evidências e surpresas, a cidade produz permanentemente sentidos e significados para cada um de seus habitantes. […] Ela exala sentidos o tempo todo (FREITAS; OLIVEIRA, 2011).

É importante sentir as respostas da cidade. Estar atento a seus gritos e murmúrios. Saímos das ruas (quem pôde), mas a cidade se faz ouvir. Entra pelas nossas janelas nos sons dos carros, nas sirenes, nos panelaços que serviram de relógio por algum tempo nos últimos meses, marcando as 20h30 todos os dias. As vozes da cidade vão atrás de nós. Portas fechadas, mas janelas e ouvidos abertos. Janelas reais e virtuais, dos prédios e dos celulares e computadores. A rua está presente e se adaptou para se manter percebida.

Durante esse período de isolamento social, que continua, a paisagem da cidade se transformou. Lugares acabaram fechando – muitos. Os cinemas estão fechados, os centros culturais idem. As galerias, as praias, os bares… todos viraram, por um bom tempo, imagens do passado. Lembranças que não se sabe se serão revividas nesses lugares ou se passarão aos museus da nossa memória.

Os lugares que não fecharam de vez, procuraram oferecer novas formas de experiências. As aglomerações, proibidas por necessidade, passaram a ser virtuais. As ruas, com seus lugares, foram para dentro das casas. Os festivais de cinema passaram a ser on-line, assim como algumas companhias de teatro adaptaram suas peças, primeiro com a transmissão de gravações antigas e depois com teatro preparado para plataformas virtuais. O grupo Satyros, de São Paulo, por exemplo, montou o espetáculo “A arte de encarar o medo” exclusivamente para streaming. Assim, no escuro da sua sala ou do seu quarto, é possível sentir como se estivesse em uma plateia, mesmo que por alguns instantes.

Festas on-line também passaram a fazer parte da rotina. Todos os sábados, pelo menos, alguns DJs da cidade promovem encontros virtuais para celebração da música nos quais é possível conversar com e ver outras pessoas que costumavam frequentar os mesmos espaços que você ou que têm gosto musical parecido com o seu. Além das festas, reuniões virtuais, de trabalho ou apenas para bater papo, entraram na agenda semanal. Aniversários, com direito a parabéns e bolo, migraram para plataformas como o Zoom. Até conhecer gente nesses encontros é possível. O happy hour do trabalho também se preservou, mesmo com cada um em suas casas. E encontrar pessoas voltou a ser possível ao se participar dessas aglomerações não presenciais. Os hábitos se transformaram para a aproximação dos distantes, conhecidos ou não, e para preservar vidas.

Muitos idosos, como os meus pais, tiveram que aprender a usar novas ferramentas tecnológicas. Chamadas de vídeo não são, hoje, mais estranhas para alguns deles, são ferramentas de comunicação a serem utilizadas sempre. Já outros tiveram que apelar para o velho telefone fixo, que, já há algum tempo, parece mais um artigo para uma exposição sobre o século passado do que uma forma de se comunicar com alguém.

Trocas de experiências, afetos e angústias são necessárias. Buscamos sempre nos relacionar com alguém de alguma forma e/ou nos sentimos pressionados a isso. As experiências são pessoais, mas é difícil se imaginar a rua, enquanto sentimento, não entrar por delivery, solicitado ou não, nas casas de quem teve que se enclausurar nos últimos quatro/cinco meses e assim continua, sem uma previsão de término. Seja por meio de lives nas redes sociais, por aplicativos de reuniões, por festas virtuais ou pelas chamadas pelo pré-histórico telefone fixo, a cidade continua sendo palco de construções de identidades e vivências. Fiquemos em casa, é necessário, mas socializemos, de uma forma ou de outra. Aglomeração é sentimento também.

 

Referências bibliográficas:

FREITAS, Ricardo Ferreira; OLIVEIRA, Janete da Silva (Orgs.). Olhares urbanos: estudos sobre a metrópole comunicacional. São Paulo: Summus, 2011.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura – Divisão de editoração DGDI, 1995.

LEFEBVRE, Henri. Da cidade à sociedade urbana. In: _________.  A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

 

 

Aglomerações virtuais: trazendo a rua para dentro de casa