Gabriel Neiva | Agosto 2020

 

A chave do presente, muitas vezes, se apresenta num passado bem recente. Neste sentido, o processo de urbanização excludente do Rio de Janeiro se apresenta como um fio contínuo que se desvela a partir da implementação da chamada “Era dos Megaventos”. O filme “Domínio público”, por sua vez, produz uma instigante tese acerca destes acontecimentos. No presente artigo, propõe-se analisar como uma série de relatos constroem uma potente crítica a um imaginário de cidade globalizada e neoliberal.

Os discursos presentes em “Domínio Público” acabam por abordar principalmente as disparidades socioespaciais e suas discrepâncias institucionais em tempos de megaeventos. A representação do Rio de Janeiro contemporâneo torna-se uma arena de disputa, em que os atores acionados, a partir de suas múltiplas vivências, mobilizam um imaginário, muitas vezes silenciado e esquecido, da cidade para além dos seus cartões-postais internacionalizados.

Assim, o filme “Domínio Público” (2013) foi dirigido por Fausto Mota, Raul Vidal e Henrique Ligeiro. A partir de uma campanha realizada pelo site de crowdfunding Catarse.me, conseguiu-se captar o orçamento necessário para finalizar o documentário. De acordo com a descrição dessa mesma página, a realização nasce com a intenção de investigar as repercussões dos megaeventos sobre o país e, mais especificamente, o Rio de Janeiro.

O caráter de colaboração coletiva atrelado ao Dossiê e ao filme “Domínio Público” se apresenta pela multiplicidade de discurso ligadas ao filme. Dentre os participantes das empreitadas, apresentam-se cineastas, urbanistas, sociólogos, jornalistas, antropólogos e ativistas de diversas filiações. Nessa última categoria estão arrolados movimentos ligados à causa indígena, às comunidades e favelas, núcleos sociais da defensoria pública e partidos políticos, os chamados “midiativistas [1]” e institutos e organizações não governamentais cuja atuação se baseia na denúncia das violações dos direitos humanos. A partir do recorte proposto, vamos nos concentrar principalmente às críticas que os geógrafos e urbanistas na análise da presente película.

A crítica a um imaginário de cidade “harmônica” e “maravilhosa” recuperada pelas possibilidades dos megaeventos é a força motriz dos discursos produzidos em “Domínio Público”. De forma (quase) unívoca, cristaliza-se um coral de vozes dissonantes aos processos de mudanças que o Rio de Janeiro sofreu até chegar, a partir do recorte aqui operado, à realização da Copa do Mundo de 2014. Dessa forma, a principal crítica entre os atores mobilizados na película gira em torno do projeto de “cidade neoliberal”, cuja lógica imperativa de mercado acaba por engendrar ainda mais exclusões dentro do espaço urbano, ramificando-se na militarização dos espaços das favelas e das contínuas remoções habitacionais.

No filme “Domínio Público”, o urbanista Carlos Vainer chama atenção para a consolidação desse projeto de “cidade neoliberal”, cuja proposta de torná-la competitiva e aberta ao mercado foi acelerada pelo anúncio e preparação dos ciclos desses megaeventos. Estes discursos já circulavam pelo imaginário da cidade antes mesmo da década dos anos 2000. Não por acaso, o mesmo Carlos Vainer (2000) registrava o começo da publicização dos projetos urbanos neoliberais, a partir da gestão do prefeito César Maia. Para o autor, a cerimônia do primeiro Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro consolidou a importação do chamado “Modelo Barcelona”, em que consultores catalães como Jordi Borja e Manuel Castells desenhavam a importância de revitalização da paisagem urbana a partir das oportunidades geradas pelos Jogos Olímpicos de Verão de 1992. Para que tal processo se consolidasse era preciso que a malha urbana abrisse para lógica empresarial e, a partir daí, a imagem do Rio se tornaria competitiva, atraindo eventos culturais em escala global.

No caso específico do Rio de Janeiro, conforme já apontado por Carlos Vainer, foi a gestão César Maia pioneira em tentar implementar o projeto neoliberal de captação dos megaeventos. Liderou, então, os fracassados pleitos para sediar os Jogos Olímpicos de Verão de 2004 e 2012. Propôs também planos de revitalização da zona portuária, chegando a assinar contrato com a Fundação Guggenheim para a edificação de uma filial carioca na Praça Mauá. Em consonância com os preceitos do chamado “urbanismo ad hoc”, termo cunhado por François Ascher (2010), convocou estrelas da arquitetura internacional (neste caso específico, o projeto foi do francês Jean Nouvel) para ajudar a reposicionar a infraestrutura do espaço urbano, de acordo com o receituário do mercado. Tais estratégias foram aplicadas na revitalização da paisagem predial da zona central de Barcelona. Mais uma vez, a prefeitura copiava, sem sucesso, os parâmetros estabelecidos pela cidade catalã.

Mesmo com esses fracassos, a prefeitura de Cesar Maia consegue um importante passo para a consolidação do seu projeto de renovação neoliberal da cidade: sediar os Jogos Pan-Americanos de 2007. Conforme apontado pelo geógrafo Gilmar Mascarenhas em “Domínio Público”, o desenrolar desse evento engendrou um protótipo de “city marketing” que mobilizou a cidade em torno da necessidade dos Jogos como projeto de recuperação da cidade. A partir da construção de práticas discursivas em torno de consenso acerca da exequibilidade do evento, típica estratégica da cartilha neoliberal, o Rio de Janeiro trazia o “megaevento como forma de potencializar investimentos de ordem empresarial” (MASCARENHAS; SANCHEZ; BIENENSTEIN, 2011, p. 145).

No mesmo ano de 2007, o Rio de Janeiro tornou-se uma peça central para a concretização dos megaeventos em escala nacional, tornando-se um sítio chave para a eleição do país para sediar a Copa do Mundo de 2014. Com o fim do mandato de César Maia em 2008, consolida-se uma aliança política e econômica entre a esfera federal e os poderes estaduais e municipais da cidade para tornar o Rio e, consequentemente, o Brasil, um “jogador internacional”. Diante de tais esforços e outras articulações para manter a “atmosfera” de consenso em torno de tal empreitada, em outubro de 2009 a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida como sede dos Jogos Olímpicos de Verão de 2016.

A narrativa da cidade competitiva e orientada para o mercado, fortalecida pela aliança das três esferas governamentais, faz com que o modelo de gestão empresarial consolide definitivamente suas intervenções na paisagem da cidade carioca. Não por acaso, o alvo preferencial do discurso crítico em “Domínio Público” são as ações da prefeitura municipal. Diante disso, as falas de Eduardo Paes no filme, principalmente retiradas de trechos de uma entrevista concedida à “TV FOLHA”, em que este argumenta a necessidade de tornar o Rio de Janeiro “competitivo”, “voltado para o mercado internacional” e “de venda da cidade”, são visualizadas a partir de uma televisão, expressando um efeito de distância daquele registro (o mesmo efeito aparece em trechos relacionados às outras figuras ligadas ao projeto “oficial”) em relação às argumentações opositivas das estratégias do planejamento neoliberal.

Em um extrato de fala presente em “Domínio Público”, o urbanista e geógrafo David Harvey aponta o quanto as preparações para os megaeventos ajudam a acelerar o processo de tornar a cidade um “balcão de negócios”. Em seu texto “Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração no capitalismo tardio”, registro seminal de meados dos anos 80 que acabou por influenciar grande parte das críticas ao projeto neoliberal neste capítulo, Harvey diagnosticou a centralidade do sítio urbano dentro das dinâmicas do capitalismo contemporâneo. Dessa forma, as cidades tornam-se espaços de especulação e competição financeira cujas forças políticas, em sintonia com tais estratégias, tornam-se emissários de um novo empresariado urbano, fomentando revitalizações de espaços antes economicamente desvalorizados, favorecendo principalmente agentes do capital especulativo e afastando populações de baixa renda desses lugares. Mobilizou-se também campanhas de publicidade urbana que suscitariam “imagens de prosperidade e recuperação econômica” (HARVEY, 1996, p. 53) com o intuito de angariar novos contingentes de turistas para essas cidades inseridas no ciclo de competitividade global.

Por sua vez, a zona portuária da cidade tornou-se um pólo central para a construção do imaginário da urbe globalizada e competitiva. Consequentemente conforme João Roberto Lopes, cientista político, membro da ONG Mais Democracia e colaborador do Dossiê do Comitê Popular afirma em “Domínio Público” o grupo de construtoras composta por Odebrecht, OAS e Carioca Engenheira se configuram  como os “donos do Rio”. Conforme afirmado por Lopes e outros entrevistados na película, esse processo foi realizado de “cima para baixo”, sem devida participação e consulta popular. A busca do consenso do discurso abriu caminho também, como abordado a seguir, para o sufocamento de vozes dissonantes.

Os “donos do rio” também são patrões da paisagem carioca, amparados por uma produção do sentido de um discurso em que as mudanças espaciais, como as da região portuária, foram unanimamente positivas. Não por acaso, as imagens das obras do “Porto Maravilha” no “Domínio Público” são visualizadas ora como espaços vazios ora através de relatos de habitantes que sofreram reveses por tais acontecimentos. Observa-se, assim, um direto contraste entre esta abordagem e as realizadas pela grande mídia (Rede Globo, principalmente) e pela prefeitura municipal.

Por sua vez, o Maracanã também tem um papel preponderante no projeto da cidade neoliberal, cuja privatização é um ponto estratégico para atrair investimentos do capital financeiro e turístico. Conforme Christopher Gaffney (2016) aponta, as “paisagens do esporte” são territórios chave para as revitalizações urbanas. No caso dos estádios de futebol, estes acabam por “produzir um espaço central para a vida cotidiana” (MASCARENHAS E GAFFNEY, 2006, p. 7). Não por acaso, a reforma do espaço do Maracanã e as suas consequências simbólicas e materiais geram uma dramática mudança na vivência da paisagem urbana.

Relembrando a fala de Gilmar Mascarenhas em “Domínio Público” aqui já citada, o processo de mudanças catalisadas pelos Jogos Pan-Americanos nos ajuda a explicar a consagração do projeto neoliberal atrelado aos megaeventos. Não por acaso, a partir dali, começou-se a mobilização para a futura privatização do Maracanã, projetando o surgimento de um “torcedor consumidor”, que ocuparia os espaços do estádio reformado, gastando o seu dinheiro não só com o jogo com si, mas com as outras maneiras de experiências monetárias.

Em entrevista ao “Domínio Público”, Christopher Gaffney, historiador, arquiteto, militante da ANT (Associação Nacional dos Torcedores) [2] e colaborador do Dossiê do Comitê Popular, descreveu a centralidade dos megaeventos (principalmente, no caso do Maracanã e as reformas para a Copa do Mundo) para a mudança de um projeto de cidade neoliberal que gera um legado de exclusão, tanto pela via do mercado quanto pela atuação do poder estatal. Num texto mais recente, Gaffney (2016) descreveu o Rio de Janeiro, em época de megaeventos, como um “laboratório neoliberal”, cujos discursos de intervenções geram transformações urbanas que despossam aqueles que não se encaixam no paradigma mercadológico. Isto posto, pode-se articular, em consonância com a contribuição de Aihwa Ong (2005), a territorialização das estratégias do discurso neoliberal na urbe carioca, construindo paisagens de exclusão pela cidade

Em outro trecho de sua entrevista ao “Domínio Público”, Carlos Vainer nota que estas leis, capitaneadas pela Lei Geral da Copa de 2012, são criadas para garantir os interesses dos investimentos empresariais no Rio de Janeiro e, consequentemente, no Brasil. Assim, tal legislação passa por cima das diretrizes do Estado de Direito supostamente aqui implantado, valendo-se da importância dos megaeventos. Poder estatal, mídia e forças empresariais acabam por reforçar a produção deste discurso. Consagra-se, então, o que Nelma Gusmão de Oliveira (2011) chama de “caráter autoritário do consenso” (GUSMÃO OLIVEIRA, 2011, p. 5), ao mobilizar, no caso da urbe carioca, uma grande chance de salvar a cidade do seu perene colapso.

Ainda no mesmo registro de “Domínio Público”, Vainer definiu a consagração desta conjuntura no Rio de Janeiro como um “estado de exceção”. Inspirado principalmente pela famosa tese do filósofo italiano Giorgio Agamben, que descortinou, no decorrer do século XX, a submissão das instituições jurídicas à força do grande capital, o urbanista interpretou, em outro texto, a permanência da emergência na cidade como uma “democracia direta do capital” (VAINER, 2011, p. 14), em que as violações dos direitos humanos são respaldadas em prol da estratégia neoliberal urbanística.

Corta para 2020. Em meio a pandemia do Covid 19,  a cidade do Rio de Janeiro continua a experimentar a especulação e implementação da urbanização neoliberal. Diante da escalada autoritária no país, observa-se a promulgação da chamada “Lei do Puxadinho”, que desobedece um marco regulatório do plano urbano da cidade, dando a possibilidade de construir habitações e pontos hoteleiros em áreas de proteção ambiental. Uma audiência pública discute a possibilidade de construção de um novo autódromo, potencial sede para as corridas da Fórmula 1 automobílistica, na região da Floresta de Camboatá, na região da Deodoro.

Diante destes recentes acontecimentos, torna-se possível compreender que a tese de “Domínio Público” continua em pleno processo. A semente da chamada “Era dos megaeventos” abriu uma “caixa de pandora” em que a especulação do solo da cidade tornou-se um recorrente modus operandi. O passado mais que recente apresentou a possibilidade da compreensão deste processo. Fica então a dica aos leitores: assistam o filme, em sua duração completa, na rede social Youtube [3].

 

[1] Os “midiativistas” podem ser descritos como um grupo heterogêneo de produtores de vídeo para mídias digitais como Youtube, o Livestream, o Vimeo e também aos sítios de conteúdo como a “Mídia Ninja”,construindo uma voz alternativa à chamada “mídia tradicional”.

[2] Gaffney é um dos diretores da ANT (Associação Nacional dos Torcedores), criada em 2010 por Marcus Alvito. Diante das mudanças geradas pelos megaeventos, sua principal bandeira é a crítica à elitização e privatização dos estádios. Sobre este projeto, ver: http://web.observatoriodasmetropoles.net/projetomegaeventos/indexb434.html?option=com_k2&view=item&id=27:associa%C3%A7%C3%A3o-nacional-de-torcedores&Itemid=334. Acesso realizado em: 01 ago. 2019.

[3] Eis aqui o endereço para o filme “Domínio Público” em sua íntegra: <https://www.youtube.com/watch?v=dKVjbopUTRs>.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ASCHER, François. Os novos princípios do urbanismo. São Paulo: Romano Guerra, 2010.

GAFFNEY, Christopher. The megaeventcity as neoliberal laboratory: the case of Rio de Janeiro. Percurso Acadêmico, Belo Horizonte, v. 4, n. 8, jul./dez. 2014.

GUSMÃO DE OLIVEIRA, Nelma. Força de lei: rupturas e realinhamentos institucionais na busca do “sonho olímpico” carioca. Anais…, XIV Encontro Nacional da Anpur. Rio de Janeiro: Anpur, 2011

HARVEY, David . Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração no capitalismo tardio. Espaço & Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, n. 39. São Paulo: 1996.

MASCARENHAS, Gilmar. “Inventando a “cidade esportiva” (futura cidade olímpica): grandes eventos e modernidade no Rio de Janeiro”. In: MASCARENHAS, Gilmar; BIENENSTEIN, Glauco; SANCHEZ, Fernanda (Orgs). O jogo continua: megaeventos esportivos e cidades. Rio de Janeiro: EdUerj, 2011.

ONG, Aihwa. Neoliberalism as exception. Duke: Duke University Press, 2006.

VAINER, Carlos. “Pátria, empresa e mercadoria: a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano”. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos (Orgs). A cidade do pensamento único. Petrópolis: Vozes, 2000.

______________.Os liberais também fazem planejamento urbano? In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos (Orgs). A cidade do pensamento único. Petrópolis: Vozes, 2000.

______________. Cidade de exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro. Anais..., XIV Encontro Nacional da Anpur. Rio de Janeiro: Anpur, 2011.

“Domínio Público” e o projeto de urbanização neoliberal no RJ