Jorgiana Brennand | Agosto 2020

 

Cinquenta e oito milhões. Esse é o número aproximado de mulheres brasileiras. Já somos maioria na população e representamos, segundo dados do IBGE, 51,8% do total de habitantes do país[1]. A maioria de nós se destaca na moda, na genética, nas artes, na literatura e em tantas outras áreas. Muitas trabalham em funções que, há bem pouco tempo, eram consideradas “típicas do Clube do Bolinha”. É crescente o número de pilotas, mestres de obra, taxistas, motoristas de ônibus e tantas outras profissões.

Também estamos nos destacando em outro segmento,  dominado ainda pelos homens: o do empreendedorismo. Eles são maioria entre os 53,4 milhões de brasileiros à frente de alguma atividade empreendedora, como criação e consolidação de novos negócios ou manutenção de empreendimentos já estabelecidos (AGÊNCIA SEBRAE DE NOTÍCIAS, 10/06/2020).

Segundo informações divulgadas pela Agência, as taxas de Empreendedorismo registradas pelo Global Entrepreneurship Monitor (GEM), em 2019, colocam o Brasil em uma posição de destaque entre as 55 nações que participaram do levantamento. O país atingiu 23,3% de taxa de empreendedorismo inicial (negócios com até 3,5 anos de funcionamento) , considerada a maior marca até agora e o segundo melhor patamar total de empreendedores (38,7% da população adulta, entre 18 e 64 anos) desde 2002, primeiro ano da série histórica desta variável.

Os homens já são quase 30 milhões de empreendedores (formais e informais) no Brasil e nós, cerca de 24 milhões, segundo dados de outro levantamento do GEM, realizado em 2018. O país ocupa a sétima maior participação feminina entre os empreendedores iniciais em 49 países estudados pela pesquisa (AGÊNCIA SEBRAE DE NOTÍCIAS, 18/03/2019).

Muitas de nós se tornam empreendedoras por falta de opção. Quase metade das empreendedoras (44%) cria um negócio “por necessidade” apenas para complementar a renda (AGÊNCIA SEBRAE DE NOTÍCIAS, 18/03/2019). Tal realidade desmitifica a ideia glamourosa de que ser dona do próprio negócio é sinônimo de concretização de um sonho. Para o sociólogo Ricardo Antunes, em entrevista ao portal UOL (MARCHESAN, 2019), em 2019, o empreendedorismo só existe devido a três fatores: desemprego estrutural de grande proporção em escala global; desregulamentação do trabalho e, consequente, perda de direitos sociais e desobrigação crescente do Estado diante de qualquer tipo de seguridade social.

Nesse momento é que ganha corpo a ideia falaciosa, mistificadora, do empreendedor. É uma das poucas alternativas que o mundo do trabalho oferece frente à corrosão dos direitos e garantias sociais. É isso ou o desemprego completo (MARCHESAN, 2019).

De acordo com o sociólogo, empreendedorismo não passa de um “mito”, que se fortalece em meio ao alto desemprego, ao enfraquecimento das políticas sociais do Estado e às novas tecnologias. Além de reforçar a renda familiar e também para fugir do desemprego, muitas de nós decidem criar seu próprio negócio.

Esse foi o caso das expositoras da Feira das Brecholeiras [2], realizada semanalmente, aos sábados, embaixo do viaduto Negrão de Lima, uma das principais vias de acesso de Madureira, no coração do subúrbio carioca.  São aproximadamente 80 mulheres – muitas são chefes de família – que se reúnem para comercializar artigos usados. Enquanto elas estão expondo no evento, muitos homens atuam como coadjuvantes: servem de motoristas, carregam as mercadorias e montam os stands da feira. Em alguns casos, os maridos é que ficam em casa cuidando dos filhos.

A Feira das Brecholeiras, que nasceu do encontro descompromissado de dez mulheres que se reuniam na estação de trem de Madureira para “desapego” de roupas, não surgiu como  comércio. Muitas mulheres estavam ali apenas para trocar roupas entre elas. O negócio foi crescendo e hoje, oito anos depois,  possui uma lista bastante extensa de interessados em expor na feira também. São cerca de 800 pessoas. A maioria é mulher como nós, que buscam uma oportunidade para fugir do desemprego, gerar uma renda extra ou sustentar a família. Quase todas querem empreender. Não para realizar um sonho e sim, por necessidade como a maioria das  empreendedoras brasileiras, reforçando o sociólogo Ricardo Antunes quando este afirma que o empreendedorismo se fortalece, entre outros fatores, devido ao desemprego.

O evento, realizado em Madureira, cenário de muitas manifestações artísticas que transcendem o samba, é dominado também pelo afeto que se manifesta por todos os poros: embaixo dos viadutos, nas paradas de ônibus, na estação de trem e em quase todos os lugares do bairro. Inclusive na Feira das Brecholeiras, reforçando Simmel (2006) quando este afirma que sociedade é muito mais do que os indivíduos que a formam. Sociedade também é conexão. É repleta de vínculos e laços afetivos que margeiam as relações interpessoais e as subjetividades presentes nos grupos, independentemente, segundo Simmel (2006), dos objetivos, impulsos religiosos, objetivos de defesa e inúmeros outros presentes na relação de convívio, “de atuação com referência ao outro, com o outro e contra o outro, em estado de correlação com os outros (SIMMEL, 2006, p. 60). Ou seja, não existe sociedade sem interação.

Tal interação está presente no evento e nas ruas de Madureira. Ela aparece na troca de afeto entre as brecholeiras [3], entre os frequentadores e entre as expositoras e os consumidores. Trata-se de algo espontâneo. É o “estar junto” sem motivo, que se traduz efetivamente pelo interesse pelo outro.

As histórias que se entrecortam na feira revelam ainda uma interação que ocorre também por meio da solidariedade. Em uma das visitas ao evento, isso se tornou evidente quando várias brecholeiras doaram peças não vendidas a uma outra expositora, que as revendeu em um brechó em sua residência. Com o dinheiro arrecadado, ela comprou alimentos e os preparou para distribuir aos moradores mais necessitados da comunidade em que reside. Ela é um exemplo de que viver em sociedade é mais do que encontros. É dádiva também, conforme a tríade proposta pelo antropólogo Marcel Mauss: dar, receber e retribuir de alguma forma. Para essas mulheres, assim como para muitas de nós, empreender é também agradecer e fazer a diferença no mundo de alguém.

 

[1] Informações disponíveis em: <https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html>. Acesso: 12 ago. 2020.

[2] O evento esteve suspenso por quatro meses, mas foi reaberto para o público em 25/07/2020.

[3] Mulheres que se intitulam donas de brechós e sacoleiras simultaneamente.

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Jorgiana Brennand é doutoranda no PPGCom da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora dos cursos de Comunicação do Ibmec/RJ. E-mail: <jorgianabrennand@uol.com.br>.

 

Referências

AGÊNCIA SEBRAE DE NOTÍCIAS. Brasil deve atingir marca histórica de empreendedorismo em 2020. Revista Pequenas Empresas, Grandes Negócios (PEGN) on-line, 10 jun. 2020. https://revistapegn.globo.com/Noticias/noticia/2020/06/brasil-deve-atingir-marca-historica-de-empreendedorismo-em-2020.html. Acesso: 12 ago. 2020.

______________________. Brasil tem a 7ª maior participação feminina entre novos empreendedores. Revista Pequenas Empresas, Grandes Negócios (PEGN), on-line, 18 mar. 2019. Disponível em: https://revistapegn.globo.com/Mulheres-empreendedoras/noticia/2019/03/brasil-tem-7-maior-participacao-feminina-entre-novos-empreendedores.html Acesso: 12 ago. 2020.

MARCHESAN, Ricardo. Empreendedorismo é mito em país que não cria trabalho digno, diz sociólogo In: Portal UOL 19 abr. 2019. Disponível em: https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2019/09/14/entrevista-sociologo-ricardo-antunes-trabalho-emprego-empreendedorismo.htm?utm_source=facebook. Acesso: 15 fev. 2020.

SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da Sociologia. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

Empreendedorismo e afeto numa feira no subúrbio carioca