Gustavo Lacerda | Julho 2020

Os bares estavam cheios, como há muito tempo não se via. É como se uma espécie de vácuo entre o carnaval e aquela quinta-feira separasse um tempo do outro. Exceto pelo fato de este ‘vácuo’ ter sido preenchido por uma pandemia, cujos efeitos sobre a saúde e economia mundiais não se via há exato um século, desde a Gripe Espanhola… dizem.

Exceto, também, pelo fato de que a pandemia do novo coronavírus – producente da doença Covid-19 –, até a data de publicação deste texto, já contabilizava mais que o dobro de perdas humanas da antecessora.

Suas consequências no Brasil, naquele dia de quinta-feira, no entanto, seguiam em prumo, deixando incontáveis contagiados e mortos.

Uma parcela imensurável, dada a in-confiabilidade das estatísticas, preferiu se manter em casa, apesar das medidas de flexibilização do isolamento, classificado pela imprensa, erroneamente, como ‘quarentena’. Uma outra parte se aglomerou nas ruas de um endereço peculiar da cidade: o bairro Leblon, na região Sul da capital fluminense.

Em um dos vídeos veiculados pela TV, um indivíduo não identificado descreveu a imagem como ‘carnaval no Leblon’. Não estava errado! Lançou, em seguida, a constatação de que, ‘finalmente, tudo estava voltando ao normal’. Não estava certo!

Existem peculiaridades na composição ‘d’aquele grupo, ‘n’aquele lugar, passível de ser compreendida pelo imaginário (DURAND, 1994) que tece, em um primeiro momento, a condição carnavalesca daquele momento, como descreve o cidadão, e, no segundo, o mito que cerca as tais ‘pessoas do Leblon’: uma maior condição financeira que permite o acesso ‘d’aquela gente ao consumo desenfreado naqueles bares, naquele bairro.

As ditas ‘pessoas do Leblon’, no entanto, não estavam ali na condição de se gabar de um poder de consumo do objeto, em si – as bebidynhas, os drinks –, mas ao que Baudrillard define como o consumo dos valores compartilhados por aquele grupo e o seu significado.

Lipovetsky aciona a categoria imagem, assim como Duran, e rechaça a predominância da ideologia, por exemplo, entre aquele grupo, ali, reiterando o consumo pelo hedonismo… pelo prazer de fazê-lo.

Aqueles foliões da pandemia foram condenados no discurso midiático pela falta de empatia… não demorou que em círculos de amigos em redes sociais ocorresse o mesmo. Se ainda nos coubesse tratar as sociabilidades neotribais (MAFFESOLI, 1987) pelo prisma dos estratos socioeconômicos, aqueles seriam descritos por Buckner como ‘a burguesia’. Não se trata da burguesia pela burguesia, mas daquela que se resvala na busca pelo dever de felicidade.

Buckner faria coro aos jornais e descreveria ‘as pessoas do Leblon’ como o retrato do ‘novo burguês’… ‘isento de qualquer obrigação com a coletividade’. ‘Circunspecto de dia, “farrista de noite”’ – esta última classificação adotada do sociólogo Daniel Bell.

Ao permitir tratar a empatia como uma metodologia no trabalho antropológico, Maffesoli (2010) classificaria aquele ‘estar-junto’ como uma partilha de interesses comunitários, por outro lado, afastando-se dos julgamentos sobre o ethos do grupo. Para além de qualquer questão ideológica, observaria uma sensibilidade partilhada. Ou não, Mafesa?

As ‘pessoas do leblon’, no sentido de categoria fechada em si, portanto, implode-se e se coloca como um desafio à pesquisa antropológica que, através da mídia, ganha contornos sensacionais, fomentando um discurso limitante e enquadrante (BOURDIER, 1997).

Por outro lado, nós, ditos acadêmicos: cujo acesso à multidisciplinaridade nos permite ver o mundo através de mais e mais linhas; que nos permite, inclusive, enquanto cidadãos, apontar e condenar a ‘falta de empatia’ para com todos que estão em casa e com os entes das vítimas da Covid-19. No entanto, naquela ecologia, também estavam imersos garçons, motoristas de aplicativos e ciclistas de entregas em domicílio.

Todo este arcabouço passível de ser lido e cujos nossos dedos apontamos para o outro, agora, devem se voltar para nós mesmos – pretensos futuros foliões, à espera do mais urgente carnaval. E se o ensaísta Bruckner estiver certo ao afirmar que, para reconhecer este novo burguês, basta observar quando este está a ‘maldizer a burguesia’ e sua ‘odiosa respeitabilidade’, reconheceremos, no mesmo caminho, nossa atroz hipocrisia.

 

Crédito da imagem na miniatura: Jornal Extra/divulgação

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Gustavo Lacerda é doutorando em Comunicação no PPGCom da UERJ, pesquisador do Lacon e professor da Universidade Veiga de Almeida.

 

Referências bibliográficas:

BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2005.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BRUCKNER, Pascal. A euforia perpétua. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

DURAND, Gilbert. L’ imaginaire. Essai sur les sciences et la philosophie de l’image. Paris: Hatier, 1994.

LIPOVETSKY, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LIPOVETSKY, G. O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

MAFFESOLI, M. O conhecimento comum: introduçao à sociología compreensiva. Porto Alegre: Ed. Meridional, 2010.

As ‘pessoas do Leblon’ e um dedo de nós mesmos