Flávia Barroso de Mello | Julho 2020

Nos últimos quatro anos, apoiada em rastros e vestígios históricos, tenho me dedicado a refletir sobre o Rio de Janeiro, suas incongruências e desafios enquanto cidade e marca. Ao longo desse período, em uma das dezenas de incursões a livrarias em busca de mais e novos conhecimentos sobre a cidade, encontrei o livro “História do Rio de Janeiro através da arte”, de Luciana Sandroni (2010). Literatura infanto-juvenil belíssima, em que um narrador peculiar – o Pão de Açúcar – leva crianças e adolescentes a viajarem pela história do Rio, através de pinturas, figuras, gravuras e fotografias de grandes artistas.

Curiosamente, neste momento de isolamento social, em que somos alçados – mães, pais e familiares – a mediadores dos estudos de nossas crianças, tenho a grata surpresa ao me deparar com o livro de Luciana Sandroni sendo utilizado para apresentar e discutir o conteúdo sobre a fundação da cidade do Rio de Janeiro, na turma da minha filha, do terceiro ano do ensino fundamental. Enquanto o silêncio escolar ecoa para grande parte das crianças que estudam nas escolas públicas brasileiras, poder acompanhar minha filha de perto – ou melhor, como parte integrante do processo de aprendizagem-, em uma conversa com a temporalidade através da arte tem sido, de fato, um imenso privilégio.

“Nunca se esqueçam: se existe arte, existe gente”, diz o Pão de Açúcar às crianças (SANDRONI, 2010, p. 18). Sim! E, se existem gente e arte, diversas formas de produção de sentido social e cultural se fazem presentes e constroem narrativas distintas. Narrar, conforme a “teoria narrativa” de Paul Ricoeur (1994), significa configurar a existência na vivência cotidiana de nossos atos, produzindo reinterpretações e sentido no tempo. Quando narramos, segundo Ricouer, constituímos uma história (ou histórias entrelaçadas), uma trama, sobre as ações humanas e também seus significados.

Em concordância com o pensamento de Geertz (2008), segundo o qual é através da cultura, dos padrões simbólicos que circulam em uma determinada sociedade, que os sujeitos encontram sentido, orientação para o mundo em que vivem, sentimento de pertencimento e senso de comunidade,  Ricouer situa as tramas narrativas na cultura, ou seja, para ele compreender uma história é compreender a trama simbólica da tradição cultural. A maneira como os fatos se desencadeiam no tempo está baseada, assim, em âncoras que acionam memórias, esquecimentos, códigos e regras compartilhados entre os homens e que conferem a estes fatos uma hierarquia de valores.

O tempo torna-se humano, como propõe Ricouer, justamente quando é organizado em narrativa. “Tudo o que se narra acontece no tempo, desenvolve-se temporalmente; e o que se desenvolve no tempo pode ser contado” (RICOEUR, apud BARBOSA, 2006). Nesse sentido, como sugere Heller (1993), ao recorrer ao passado para gerar novos conhecimentos está se reconstruindo as questões da vida e da consciência cotidiana.

Na ditadura do presentismo (HARTOG, 2014) que nos governa atualmente, dar às nossas crianças a possibilidade de produzir sua própria leitura da cidade em que habitam passa por provê-las de historicidade e sentido de pertencimento. Ao apresentar-lhes as múltiplas visões e possibilidades de interpretações para um tempo vivido, damos a ver “um outro”, os “não ditos”, as diferentes narrativas e imagens de cidade que foram soterradas, camufladas, marginalizadas e invisibilizadas, ao longo do tempo, por uma pretendida história oficial. Um convite à compreensão de nosso tempo presente, à construção de um “novo novo” e não de um “velho novo” revestido de uma imagem inovadora. Enfim, um convite à projeção de uma futura narração que respeite a alteridade, a ancestralidade, bem como as esferas da fruição. Na espessura narrativa da história, há que se ter vestígios, mas também a leitura, a interpretação crítica (BARBOSA, 2007) para a apropriação de memórias e experiências a serem (re)contadas na construção da contemporaneidade.

“Corria a lenda entre os nativos que as águas do Carioca eram milagrosas; embelezavam as mulheres e davam boas vozes aos homens. Naquele tempo, a água era cristalina e caudalosa. Descia com muito volume do vale do Carioca, atual bairro das Laranjeiras, e matava a sede de todos os navegantes. Mais tarde, abasteceu de água toda a colônia e é por isso que as pessoas nascidas aqui são denominadas cariocas.” (SANDRONI, 2010, P. 18).

 

Ilustração: Clara Mello de Paula Pessôa, filha da autora

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Flávia Barroso de Mello é doutoranda em Comunicação no PPGCom da UERJ.

 

Referências bibliográficas:

BARBOSA, Marialva. Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 139-149, jan./jun. 2006

BARBOSA, M. Percurso do olhar: comunicação, narrativa e memória. Niterói: EDUFF, 2007.

SANDRONI, Luciana.   História do Rio de Janeiro através da arte. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2010.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

HARTOG, François. Regimes de historicidade. Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

HELLER, Agnes. Uma teoria da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo I. Campinas (SP): Papirus, 1994, 327p.

Um convite à compreensão de nosso tempo