Daniela Menezes Neiva Barcellos | Junho 2020

Entrevista com o Prof. Dr. Ronaldo Gonçalves de Oliveira sobre o lançamento da obra Cinema, Surdez e Comensalidade.

Ronaldo Gonçalves de Oliveira é Prof. Dr. do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), Pesquisador do NECTAR, Núcleo de Estudos sobre Cultura e Alimentação da UERJ e Pesquisador do CEIS20, Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra, Portugal.

 

Para começar nossa conversa, como se dá a junção da Comensalidade com o Cinema e a Surdez, temáticas de seus estudos e que deram origem ao livro “Cinema, Surdez e Comensalidade”, em parceria com a professora Shirley Donizete Prado e o professor Francisco Romão Ferreira?

Antes do início da jornada investigativa que culminou na publicação do livro Cinema, Surdez e Comensalidade, sabia que seria necessário me localizar num Programa que estivesse aberto a esse diálogo, a essa conversa entre diferentes áreas do saber. Tinha a certeza dessa necessidade, porque conhecia bem o meu objeto de pesquisa: o surdo sinalizante. Pela experiência docente, já havia percebido que qualquer abordagem que fizesse sobre a complexidade posta nas questões sociolinguísticas ligadas à pessoa surda precisaria, necessariamente, considerar o interdiálogo, precisaria considerar a conversa entre disciplinas distintas. Por isso, embora possa causar algum estranhamento o fato de ser da área de Letras foi muito importante estar localizado num Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde, atuando com o conceito de comensalidade e definindo o cinema como campo de observação. Vale esclarecer que o Programa de Pós-Graduação no qual ingressei, pela linha de pesquisa a que me vinculei e pela expertise de meus orientadores, que vieram a ser parceiros na organização do livro citado, possibilitou trabalhar a interdisciplinaridade. Foi nesse PPG-ANS que tive a possibilidade de passear por distintas áreas do conhecimento, sem as barreiras tão comumente encontradas em virtude da falta do diálogo percebido nas Ciências Humanas. Para resumir a junção, tendo-a justificado, posso afirmar que a surdez foi e continua sendo o meu objeto, a comensalidade é o viés por onde caminho e o cinema é o lugar-de-olhar, o campo que me oferece a possibilidade da representação social universalizada.

 

A capa do livro inclusive me chamou muito a atenção, muito criativa! Conta para gente essa ideia que vocês tiveram.

A capa se propõe a permitir a acessibilidade à pessoa surda sinalizante: o título em português é vertido à língua de sinais brasileira (Libras). Pensamos que a presença dos sinais aproximaria a obra ao universo ao qual pertence. Estabelecer tal conexão foi um movimento de empatia com o mundo da surdez sinalizante. Esse grupo de surdos tem na Libras a sua língua de conforto, a sua primeira língua, portanto, nos pareceu respeitoso o movimento de tornar o livro algo que tivesse uma chamada, um apelo ao sujeito surdo, considerando sua familiaridade e seu conforto comunicativo ao se deparar com a obra. Embora o livro não seja direcionado somente ao leitor surdo, já que trata do resultado de uma investigação acadêmico-científica, é sobre ele que tematizamos as linhas dessa obra. Assim, consideramos a capa do livro um movimento inclusivo.

 

Tem uma parte do livro que trata especificamente sobre Surdez e Comensalidade em cenas. O que você esperava encontrar e o que, de fato, encontrou ao abordar estas temáticas?

Vemos o alimento como mediador simbólico, que atua nas dimensões cultural, social e psíquica, capaz de se constituir como formador de códigos de comportamento e interação social. É à mesa que os comensais interagem, trocam experiências, afinam-se ou desafinam-se em gostos e preferências. É lugar de troca simbólica. É lugar de unificação antropológica, em que a linguagem do cuidado com o outro, do afeto, do cuidado de si, do sabor, dos gostos e das preferências significa ou ressignifica o sujeito, independentemente de outras linguagens que possam ali existir. O surdo, geralmente, em famílias de ouvintes, distanciados do universo da surdez, encontra-se em problemática bastante complexa, que requer medidas urgentes de políticas públicas. Entretanto, enquanto não podemos contar com medidas efetivas do poder público, como campanhas informativas que coloquem a população a par da complexidade da surdez, o processo educacional precisa encontrar meios que minimizem a cruel realidade de crianças surdas, que não podem contar com encaminhamentos seguros de seus pais para a aquisição precoce de uma língua de sinais que estruture seu pensamento e o torne um indivíduo capaz de estabelecer relações concretas e abstratas no mundo social. Comer à mesa é de suma importância para a manutenção da condição de civilizado de que desfrutamos; entretanto, no caso de pais ouvintes e filhos surdos, segundo as observações realizadas nos artigos que compõem o nosso livro, caso se percam esses preciosos momentos de comensalidade familiar, priva-se o surdo, nos primeiros anos de vida, do ritual do convívio, cuja representação é a reunião à mesa para comer. Nesse caso, o resultado pode ser trágico. O simbólico no ato de abandonar a reunião à mesa é a desistência da comunicação entre entes da mesma família. Para um sujeito surdo, cuja linguagem ainda não se solidificou, em virtude de atraso no diagnóstico ou no encaminhamento da surdez, é a impossibilidade de que se desenvolvam outras linguagens que não somente aquela que conta com a fala ou a língua de sinais. Todos as cenas fílmicas analisadas puderam comprovar a importância da comensalidade no processo de acolhimento do sujeito surdo, bem como no movimento de autoinclusão realizado por qualquer pessoa acolhida num seio social, representado pela união à mesa.

 

Conte-nos sobre o processo de análise fílmica que envolveu a comensalidade na arte cinematográfica.

A análise fílmica impressa nas linhas deste livro vê o meio social como determinante no conjunto das relações individuais ou de um grupo. Ela buscou os contextos sociais e históricos em que o objeto de análise se inseria, posto que os discursos cinematográficos, compostos por diversas linguagens, se formam numa espécie de campo ideológico que os abriga. O filme é memória e se apresenta com tal, adequando os discursos e os acomodando às situações sociais diversas no universo da surdez. É memória que possibilita perceber a criação discursiva, por via de sua montagem, ou seja, os discursos, abrigados pela ideologia contemporânea, se formam no cinema pelo processo narratológico, que entende a narrativa cinematográfica como algo que transcende o roteiro e se estende à montagem e aos demais elementos por ela demandados. A análise fílmica realizada no livro se deu pelo processo de decupage, que considera três unidades de decomposição. Estas se agruparam, contemplando-se do micro para o macrouniverso narrativo. Foram elas o plano, a cena e a sequência. O plano como a menor unidade fílmica, aquela que se constitui a partir do momento em que o realizador liga o “rec” de sua câmera até o momento em que o desliga. Esses planos se agrupam na cena, que é precisamente a unidade que os contém. Por fim, a sequência é a maior das três unidades. Nela, encontram-se os grandes temas componentes da narrativa fílmica. As sequências contêm as cenas, agrupadas por temáticas confluentes, formando blocos diegéticos. As cenas analisadas ligavam-se diretamente aos momentos de comensalidade expressados pela obra fílmica. Procuramos filtrar essas cenas, contextualizando-as no processo narratológico do filme e decompondo-as.

 

Como professor do INES, você que está em contato diário com um grupo que luta por seus direitos de inclusão e igualdade. Como você enxerga o momento atual em que as sociedades clamam por justiça, paz, igualdades e inclusões?

A pessoa surda luta pelo direito de existência e reconhecimento de suas potencialidades há muitos séculos. Diversos movimentos e duros embates já foram iniciados e travados pelas comunidades surdas em todo o mundo, em busca de respeito e reconhecimento. Até o século XX, muito recentemente, era comum o processo de tutela de um indivíduo surdo. A partir da legitimação das línguas de sinais, após muita luta em diversos países, o surdo teve o direito reconhecido de se constituir a partir de uma língua natural, aquela para a qual tem pré-disposição. Com o reconhecimento de sua língua como forma de estar no mundo, a pessoa surda passa a reconhecer a existência de uma cultura formada por essa língua, a cultura surda. Assim, se constitui como grupo cultural, distanciando-se da perspectiva da deficiência e aproximando-se à da diferença linguística. Entretanto, é grupo cultural minoritário, imerso num sistema majoritário, que é o grupo de ouvintes. Por isso, sua luta por respeito e direito de estar no mundo pela formação de um grupo cultural específico é constante e sem tréguas. Então, neste momento, em que outros grupos culturais reclamam o direito de ser e estar, os surdos mantêm sua militância e compartilham com os demais grupos o sentimento de luta e a necessidade de empoderamento. Há surdos negros, LGBT+, pobres, mulheres, enfim, os conjuntos se cruzam em intercessões num grande conjunto que os abriga, que, no nosso caso, chamamos de povo brasileiro. A luta é de todos, porque todos somos tudo!

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Ronaldo Gonçalves de Oliveira é um professor e pesquisador que busca novos olhares e caminhos sobre as temáticas de seus estudos. Acesse também a conversa virtual que gravamos juntos sobre Cinema, Surdez e Comensalidade. @nectar_uerj

Daniela Menezes Neiva Barcellos é doutora em Alimentação, Nutrição e Saúde pela UERJ.

Uma conversa sobre Cinema, Surdez e Comensalidade