Rafael Nacif de Toledo Piza | Junho 2020

Vampyroteuthis infernalis”, fábula filosoficcional de Vilém Flusser, apresenta um conteúdo riquíssimo para a discussão da representação dos desvios humanos na cinematografia do diretor espanhol Pedro Almodóvar. Flusser desenvolve, em seu livro, uma teoria que pretende diminuir o impacto do antropocentrismo científico na reflexão filosófica pós-segunda guerra mundial, por meio de uma fábula em que compara a evolução do homem à evolução do cefalópode que vive no fundo dos mares do planeta Terra, considerando que mais de 80% da superfície terrestre é composta por água e que, contraditoriamente, o homem é considerado o ser mais evoluído na escala darwiniana da teoria das espécies.

Do ponto de vista filosófico, o que Flusser constrói com essa filosoficção fabulosa é um conteúdo que relativiza a barbárie produzida pelo homem no decorrer do processo civilizatório no século XX. O tcheco Flusser foge da Alemanha nazista para o Brasil durante a segunda guerra mundial e produz um conteúdo filosófico que permite relativizar os totalitarismos típicos do capitalismo industrial ocidental, do fascismo e do comunismo soviético ao propor uma filosofia que parta do ponto-de-vista do polvo, e não do homem.

Flusser inicia sua discussão diferenciando homens de moluscos. Os homens, na biologia, pertencem ao filo dos chordata, os polvos são moluscos. Quanto mais nojentos são os animais a que nos referimos, mais estes são afastados da árvore filogenética humana. É fato que toda a vida terrestre tem uma origem comum, a partir de combinações distintas de componentes bioquímicos e de sua adaptação ao ambiente. Enquanto os cefalópodes se desenvolveram para habitar as profundezas dos oceanos, o homem evoluiu para dominar o ambiente terrestre. A ideia de Flusser é superar o antropocentrismo pela perspectiva do vampyroteuthis. Para Flusser, os vampyroteuthis são os antípodas dos seres humanos (Flusser, p.18). Nesta aventura filosófica, Flusser consegue desconstruir a instrumentalização da racionalidade produzida pela civilização humana durante o século XX.

Ele observa que ao mudar a cor da pele, os cefalópodes falam. Para o autor, os humanos e os vampyroteuthis precisam uns dos outros. O filósofo reconhece a realidade como uma rede concreta de relações (Flusser, p. 31). Para ele, o oceano é o assento da vida na Terra (Flusser, p. 32). Conversar com o vampyroteuthis é incorporar o não-usual para o homem (Flusser, p. 35). O ambiente do vampyroteuthis é inabitável e não-usual ao homem. Para o autor, a realidade não é o organismo nem o ambiente, nem o sujeito nem o objeto, nem o ego nem o não-ego, mas a simultaneidade de ambos (Flusser, p. 36).

Segundo Flusser, para Heidegger, o mundo é dividido em dois modos de ser: aquele das coisas presentes às mãos e aquele das coisas prontas para as mãos. As coisas presentes às mãos humanas são o futuro, portanto, a natureza. As coisas prontas para as mãos são o passado, portanto, a cultura. Flusser identifica que os organismos espelham o mundo e o mundo espelha os organismos. (Flusser, p. 38). Ele propõe então que tomemos o ponto-de-vista do vampyroteuthis para fazermos uma análise fabulosa, mas não uma teoria. Pensar é duvidar (Flusser, p. 40). Para o filósofo, a crítica da razão pura do vampyroteuthis é a nossa psicanálise. (Flusser, p. 41). Flusser afirma que reflexão é o processo em que a razão ultrapassa as aparências. A racionalidade do vampyroteuthis é sinônimo de ato sexual, devido a sua constituição corpórea.

Citando Flusser, vemos que: “Homo sapiens é um mamífero que, tendo levantado seu corpo do solo ao ficar em pé, possui antebraços livres pendentes. Como no caso de todos os mamíferos, seus olhos refratam a luz do sol, e os dados que eles colhem são transmitidos do cérebro para as mãos. Suas mãos, por sua vez, transmitem essa informação para o ambiente ao lidar com ele.” Portanto, o humano é uma espécie de loop retroalimentado por meio do qual dados, coletados do lado de fora do mundo, podem reentrar no mundo. Mas desde que o organismo humano (especialmente seu cérebro) é complexo, informações são distorcidas durante esse processo de retroalimentação. Elas são processadas pelo cérebro, que coordena sua resposta reflexivamente e as transmite de forma reconfigurada para as mãos, por meio das quais elas são retransmitidas ao mundo. Neste sentido, os dados que os humanos lançam de volta no mundo representam novas informações. Essas novas informações são percebidas pelos olhos, processadas pelo cérebro e retornadas ao mundo de forma reestruturada. É por meio deste processo que os humanos transformam a si mesmos e ao ambiente. Resumidamente: produzem a história humana. (Flusser, p. 49, tradução nossa).

O autor continua: para entender essa história, é necessário saber que o foco existencial dos mamíferos está no estômago. Os humanos, sem exceção, são motivados a transformar o mundo e a si mesmos pelo estômago. A história humana possui infraestruturas econômicas que são fenomenologicamente observáveis: os objetos do mundo que são alterados pelas mãos humanas o são, no sentido mais amplo, para servir à digestão. Estes mesmos objetos possuem dificilmente qualquer dimensão sexual. De fato, o comportamento sexual dos seres humanos pouco se alterou ao longo de sua história. Ele permaneceu praticamente animalístico e ahistórico. (Flusser, p. 49, tradução nossa).

Esta anomalia, essa supressão do aparato sexual pelo digestivo, não pode ser explicada adequadamente pela Biologia somente. Ela não pode ser explicada, por exemplo, como uma tendência evolucionista no desenvolvimento de intestinos chordata. Ao contrário, afirma Flusser, essa anomalia possui razões históricas. O macho humano é maior que a fêmea humana. Desde o início dos tempos, parece que o homem oprimiu a fêmea e viveu, desde então, com medo de uma rebelião feminina. É assim que os humanos conseguiram perder toda a dimensão feminina de pensamento e atividade. Nós, vampyroteuthis, somos levados a ver a história humana de forma patológica, a de que os seres humanos evoluíram em termos de repressão da sexualidade por medo das fêmeas. A história humana é uma história de aflição. (Flusser, p. 50, tradução nossa).

Os marginais de Almodóvar são exatamente o produto da inversão dessa aflição identificada por Flusser. Ao centralizar seus filmes em protagonistas que invertem a ordem patriarcal do mundo, Almodóvar liberta pensamentos e atividades tipicamente femininos e provoca um processo de inversão representativa.

 

O cinema e a produção doméstica

O cinema só ganhou um circuito de produção doméstica com o advento do filme em Super 8 no período pós-guerra. Aliás, as primeiras produções de Almodóvar na Espanha censurada pela ditadura franquista se deram por meio deste suporte. Antes de se tornar um grande diretor, Almodóvar, que não teve formação específica em cinema, usou uma câmera Super 8 para fazer seus primeiros curta-metragens que exibia com grande sucesso nas sessões da movida madrilenha, movimento contracultural que tomou conta da Espanha a partir de 1975 com o falecimento do ditador, General Francisco Franco.

Neste período, Almodóvar ainda trabalhava como atendente na Telefonica, companhia de telecomunicações espanhola e com o dinheiro do salário que recebia em Madri, depois que se mudou de Calzada de Calatrava, onde nasceu e fez sua educação primária em colégios salesianos, ele conseguiu comprar uma câmera Super 8 e deu início à produção de pequenos filmes de baixíssimo orçamento e produção precária, como “Dos putas, o historia de amor que termina en boda” (1974); “Film político” (1974); “Blancor” (1975); “El sueño, o la estrela” (1975); “Homenaje” (1975); “La caída de Sódoma” (1975); “Muerte en la carretera” (1976);  “Sea caritativo” (1976); “Sexo va, sexo viene” (1977); “Salomé” (1978).

O formato Super 8 era bem difundido nos anos 70 e várias famílias possuíam projetores e filmadoras em casa. A Kodak produzia os cartuchos para a filmagem das imagens. O Super 8 pode ser considerado o formato material anterior ao VHS, que, nos anos 80, fez explodir o comércio de aluguel de fitas em comércios de bairro onde se podia encontrar títulos hollywoodianos, mas dificilmente se encontravam os títulos de cinema de arte, a não ser em locadoras especializadas.

Nos anos 70, também se lançou o formato Laserdisc, que foi substituído, nos anos 90, pelo DVD, que por sua vez foi suplantado pelo formato blu-ray, obsolescido por sua vez pelo streaming digital em plataformas como o YouTube e o Netflix assim como pelos downloads de cópias ilegais compartilhadas na grande rede mundial de computadores.

 

A sociologia do desvio: conceitos e teorias básicas

Nos trechos a seguir, vamos apresentar as visões de Goffman, Becker e Elias sobre a questão da marginalidade. Faremos uma análise comparativa entre as teorias apresentadas por cada um dos autores e definiremos o perfil de marginal que será analisado nos filmes de Pedro Almodóvar no trecho final deste artigo, quando também relacionaremos a teoria do vampyroteuthis infernalis à sociologia do desvio.

 

Goffman e o estigma

Em “Stigma – notes on the management of spoiled identity”, Erving Goffman estuda a situação do indivíduo desprovido de total aceitação social. É precisamente essa aceitação que os personagens de Almodóvar, frequentemente, desprezam. A palavra estigma surgiu na Grécia da Antiguidade e nomeava sinais corporais que expunham algo ruim sobre o status de quem os tinha. Todas as sociedades estabelecem meios de hierarquizar as pessoas. O termo estigma é usado por Goffman para se referir a um atributo que é profundamente desabonador, mas que, no entanto, deve ser analisado, do ponto de vista sociológico, como uma série de relações. Alguém que seria facilmente acolhido em determinado grupo social pode apresentar um aspecto físico, um comportamento ou pode ser adepto de determinadas crenças ou práticas cujo destaque no grupo faz com que aqueles que se aproximariam dele, se afastem, bloqueando o impacto que seus outros atributos menos óbvios ou visíveis poderiam ter diante da coletividade (GOFFMAN, 1963, pp. 2-5).

A principal dificuldade de pessoas estigmatizadas é a aceitação, nomeada pela Sociologia contemporânea como inclusão. Quando a falha de alguém é perceptível durante o contato social, ela sentirá que sua presença é indesejável. Os personagens de Almodóvar parecem não se sentir vitimizados pelos estigmas que carregam. Eles os potencializam como armas contraculturais. A pessoa estigmatizada, diz Goffman, vacila entre covardia e coragem, o que torna a comunicação interpessoal desgastante. (GOFFMAN, 1963, pp.16-18)

Quando estigmatizados interagem com pessoas tidas como “normais”, estes poderão lidar com o estigma de uma melhor maneira se o estigmatizado se parecer com um dos tipos de pessoas presentes no encontro. O autor observa que a tendência é que os normais ajam como se o estigmatizado não estivesse presente no ambiente caso ele não se adapte ao perfil dos demais. A pessoa portadora do estigma é ignorada, ela se torna transparente. O autor observa que existe uma diferença entre a identidade virtual e a identidade real de cada sujeito. Essa discrepância, quando conhecida, pode destruir a identidade social do indivíduo. Os marginais de Almodóvar não se importam com a destruição de suas identidades sociais, contanto que eles obtenham o que desejam ardentemente, seja recuperar um amor do passado, seja esconder uma vida dupla (GOFFMAN, 1963, p. 19).

Ao falar sobre a carreira moral de estigmatizados, Goffman distingue quatro situações possíveis:

  1. a) a do estigma natural que se socializa enquanto se aprende e incorpora os padrões contra os quais ele não se adequa;
  2. b) aquela em que a família ou vizinhança se constituem como bolhas protetoras;
  3. c) uma terceira seria a de quem se torna estigmatizado em idade mais madura, ou descobre tardiamente que sempre foi menosprezado;
  4. d) e, em último caso, há a situação daqueles que são inicialmente socializados numa comunidade externa, mas que depois deverão aprender uma nova forma de se comportar.

Os marginais de Almodóvar recorrem a esse expediente. No filme de 1980, Pepi não revela a Luci sobre o fato de que seu marido a teria estuprado no momento em que a encontra na rua e a pede para lhe dar aulas de tricô. A vítima de estupro, quando torna pública essa informação, costuma ser estigmatizada ou como vítima, ou, segundo os ideais mais machistas, como um tipo de mulher que possa ter provocado a situação. O filme “Acusados”, com Jodie Foster, retrata muito bem esta realidade. No caso do filme de Almodóvar, em cuja obra o tema da violação do corpo feminino é recorrente, Pepi oferece sua genitália ao policial em troca do silêncio sobre o cultivo caseiro de mudas de maconha. Ela, entretanto, esperava que ele fosse apenas fazer sexo oral e não tirar sua virgindade. Em “Labirinto de Paixões”, Riza precisa ocultar sua identidade como príncipe para viver as aventuras sexuais e culturais na Madri do início dos anos 80. Em “Maus hábitos”, a Madre Superiora é viciada em heroína. Obviamente, a mantenedora do convento não sabe nada sobre isso, tampouco sabe a Madre responsável pela paróquia. Sua presença na festa no fim do filme nos revela, no entanto, suspeitas sobre a idoneidade da Madre Superiora do Convento das Redentoras Humilhadas. Em “O que eu fiz para merecer isto?”, Gloria não revela à família a razão pela qual prostituiu um dos filhos para um dentista pedófilo: o desejo de comprar uma escova alisadora de cabelos.

A informação, assim como o signo por meio do qual ela é veiculada, é reflexiva, isto é, é transmitida pela própria pessoa com expressões corporais na presença daqueles que a observam. Aos signos que comunicam informações sociais constantemente Goffman denomina “símbolos”. A informação social comunicada por um símbolo pode estabelecer prestígio ou honra: são os símbolos de status.

Símbolos de prestígio são opostos aos símbolos de estigma, como por exemplo: as cicatrizes nos pulsos de um suicida; as marcas nas veias de viciados em drogas; os pulsos algemados de presos; olhos de mulheres com hematomas. Em certas circunstâncias, a identidade social daqueles com quem um indivíduo está pode ser usada como fonte de informação de que ele é o que os outros que o acompanham são. A sabedoria popular diria: “Diga-me com quem andas que te direi quem és”.

A pessoa cujo estigma é reconhecido pode ou não saber deste reconhecimento; por outro lado, os “normais” podem saber (ou não) que o estigmatizado sabe (ou não) da difusão de informações desabonadoras que o estigmatizam. Enquanto acreditar que não se sabe nada que o inferiorize, ele nunca poderá ter certeza. Goffman explica ainda que se o indivíduo estigmatizado sabe que os “normais” têm conhecimento de sua inferioridade, ele deve, de certa maneira, perceber isto nas relações que estabelecer. A visibilidade do estigma é fundamental para a concretização do processo de marginalização. Goffman coloca que enquanto as ruas das grandes cidades oferecem situações anônimas para aqueles que se comportam bem, essa “anonimidade” é biográfica; não existe completa anonimidade em relação à identidade social. A imagem pública de um indivíduo que está disponível para aqueles que não o conhecem pessoalmente, será necessariamente diferente da imagem que ele projeta por meio de relações diretas com aqueles que o conhecem pessoalmente. Goffman acredita que os contatos diários da vida cotidiana devem constituir algum tipo de estrutura ligando o indivíduo a uma biografia. Entre o segredo completo e a informação completa, parece que os problemas enfrentados pelas pessoas no esforço para não serem estigmatizadas são também vividos por grande parte das pessoas consideradas “normais”. Falhar em aderir ao código é tornar-se alguém auto-iludido, “fora da linha”; ser bem-sucedido é ser tanto real quanto valoroso, as qualidades espirituais que se combinam para produzir autenticidade. A natureza de um indivíduo é gerada pela natureza de nossas afiliações a grupos (GOFFMAN, 1963, p. 66-74).

Nas sociedades contemporâneas, embora o tabu quanto a determinados assuntos e comportamentos tenha diminuído, o estigma de drogadictos, alcoólatras, doentes mentais, homossexuais, travestis, transgêneros, criminosos e vagabundos, por exemplo, permanece muito destacado. Almodóvar se aproveita dos estigmas associados a estes grupos para denunciar ironicamente a hipocrisia da sociedade espanhola e a decadência das instituições, ao mesmo tempo em que, segundo autores como D’Lugo e Cañizal, ambiciona propor uma nova família, reconstruída a partir dos destroços da atomização social contemporânea.

 

Becker e os outsiders

Em “Outsiders – studies in the sociology of deviance”, Howard Becker, sociólogo norte-americano, estuda como se opera o processo de marginalização na sociedade. Inicialmente, ele afirma que todos os grupos sociais constroem regras e tendem a aplicá-las em determinadas circunstâncias. Diz Becker: As regras sociais definem as situações e os tipos de comportamento apropriados a estas, especificando certas ações como “corretas” e proibindo outras como “incorretas”. Quando uma regra é aplicada, a pessoa que supostamente a quebrou deverá ser vista como um tipo especial de pessoa, uma em quem não se pode confiar que viva sob as regras do grupo. Ela é vista como uma outsider (BECKER, 1963, p. 1 – tradução nossa).

Becker explica-nos, no entanto, que a pessoa rotulada como outsider pode ter uma visão diferente do assunto. Ela pode não aceitar a regra sob a qual está sendo julgada e pode não ver aqueles que a julgam como competentes para fazê-lo. Surge, portanto, um segundo sentido do termo que seria: aquele que quebra as regras pode ver seus julgadores como outsiders. Aqui se pode observar a preocupação de Becker em visualizar no sistema de promoção social uma via de mão dupla. O outsider/marginal também tem uma ideologia que justifica o seu estilo de vida.

Goffman trabalha com esta noção ao afirmar que os estigmatizados muitas vezes se percebem como pessoas mais livres e felizes que os “normais”. Almodóvar retrata muito bem em seus filmes essas ideologias. Em “Outsiders”, Becker quer clarificar o processo ocorrido entre as situações de quebra e afirmação das regras. Idealmente, se uma regra tem força de lei ou tradição ou é resultado de consenso, deverá ser função de um corpo especializado, como a polícia ou o comitê de ética de uma categoria profissional, aplicá-la. A aplicação das regras, por outro lado, deveria ser uma função coletiva, ou pelo menos, de todos aqueles pertencentes ao grupo que formulou as normas. Em seu trabalho de pesquisa, o sociólogo preocupa-se principalmente com as regras operacionais dos grupos, aquelas que são mantidas nas tentativas de aplicação (BECKER, 1963, p. 2).

Becker refere-se então ao senso comum, que faz com que pensemos em pessoas que cometem infrações de trânsito ou ficam bêbadas em uma festa como sendo não muito diferentes de nós, resultando num tratamento tolerante quanto a suas infrações. Goffman também trata deste aspecto em “Stigma”, ao destacar a importância de analisarmos os pequenos desvios do cotidiano como fontes de conhecimento sobre o funcionamento de determinada sociedade. Em geral, somos educados para observar um ladrão como diferente dos outros membros da sociedade e o punirmos severamente. Assassinato e estupro, por exemplo, transformam um indivíduo em verdadeiro outsider.  Almodóvar começa sua carreira profissional no cinema representando dois desvios de imediato: o estupro e o vício em maconha na primeira cena de “Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão”.  Assim como Goffman, Becker cita as ideologias de outsiders, que justificam seus comportamentos e recriminam aqueles que os excluem (BECKER, 1963, p. 3). Em poucas palavras, o outsider é aquele que se desvia das regras do grupo.

É facilmente observável que diferentes grupos julgam coisas diferentes como desviantes. Construir uma definição de desvio torna-se, portanto, o principal problema. A visão mais simples de desvio é a estatística, que define o desviante como alguém que varia muito amplamente da média. Segundo esta visão, canhotos e ruivos são desviantes, porque a maioria das pessoas é destra e morena. A visão estatística parece simplista e está muito distante da preocupação com a quebra das regras (BECKER, 1963, p. 4). Outra visão comum de desvio é aquela que o categoriza como algo patológico, revelando a presença de uma doença. Há pessoas que associam o desvio às doenças mentais. Então, o comportamento de um homossexual ou de um drogadicto assim como a dificuldade de cicatrização em diabéticos podem ser vistos como sintomas. Para Becker, a doença mental se assemelha às doenças físicas apenas em termos metafóricos. Neste ponto, ele cita Szasz em seu estudo sobre doenças mentais que afirma, por exemplo, que a homossexualidade é doença porque a heterossexualidade é a norma social (BECKER, 1963, pp. 5-6).

 

Elias: estabelecidos e outsiders

Os termos establishment e established são usados no inglês para nomear grupos ou indivíduos que ocupam posições de poder. Os chamados estabelecidos se autopercebem e são reconhecidos como modelo moral para os outros. Já os outsiders constituem um grupo heterogêneo de pessoas que se unem por laços sociais de menor intensidade.

Como observa Neiburg, os outsiders existem no plural por não constituírem um determinado grupo social. O par estabelecidos-outsiders esclarece o funcionamento das relações de poder na sociedade (ELIAS, 1994, p. 7). Elias iniciou a pesquisa para escrever “Estabelecidos e outsiders” motivado pelo elevado índice de delinquência observado por moradores de um dos bairros da região ficticiamente chamada de Winston Parva. Com o passar dos anos, a área considerada mais nobre do local passou a ter os mesmos índices de delinquência que o outro bairro estigmatizado. No entanto, a imagem que os bairros mais antigos tinham da região mais recente permanecia estigmatizada. O estudo do autor nos permite observar características de uma comunidade que podem ser consideradas fundamentais, como as relações de poder e status e as tensões que derivam delas.

 

Flusser e Almodóvar

O cinema de Pedro Almodóvar possui grandes pontos de contato com a filosoficção flusseriana por se tratar de um cinema de autor, anti-hegemônico, que usa as estratégias de Hollywood para desconstruí-las logo em seguida. A lógica de observar a civilização humana a partir da ótica do vampyroteuthis nos auxilia a revelar na obra cinematográfica de Almodóvar a luta contra o poder patriarcal e contra a opressão sexual dos homens em relação às mulheres. Outra hipótese também a ser desenvolvida com mais atenção na tese de Doutoramento, é o da censura artístico-cultural por parte do Estado, em virtude de processos de estabelecimento de uma cultura oficial, aprovada pelo Estado que também foi configurado no Brasil assim como na Espanha. Não sabemos exatamente que paralelos existem entre a censura franquista e a censura implementada no Brasil pela ditadura que aprovava e reprovava determinados produtos culturais conforme seu potencial de subversão e, principalmente, ao seu alinhamento ao ideário comunista que representava a polaridade de esquerda de combate aos processos de governo autoritários instaurados pelo governo por meio de órgãos oficiais, como no caso do Brasil, fazia o DOPS. O Ministério da Cultura no Brasil só é fundado em 1985, como ministério em separado ao Ministério da Educação, sob o qual as diretrizes de financiamento de produção pública vigente dependiam da aprovação de órgãos como a Embrafilme, que foi uma empresa estatal brasileira, produtora e distribuidora de filmes cinematográficos. A Embrafilme foi criada por meio do decreto no 862, de 12 de setembro de 1969, como Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima. Enquanto existiu, sua função foi fomentar a produção e distribuição de filmes brasileiros. Foi extinta em 16 de março de 1990, pelo Programa Nacional de Desestatização (PND), do governo de Fernando Collor de Mello. Quando o decreto de extinção saiu publicado, a Embrafilme estava às vésperas de lançar com muita divulgação o filme “’Dias melhores virão”, de Cacá Diegues. Atualmente, as funções de regulação, fomento e fiscalização da extinta Embrafilme são feitas pela Agência Nacional de Cinema (Ancine). A função de distribuidora foi deixada para órgãos da iniciativa privada. O incentivo estatal à produção de cinema brasileiro, hoje em dia, se dá pela Lei do Audiovisual e por editais de órgãos públicos, promovidos pela própria Ancine, pela Petrobras e pelo BNDES.

Assim como aconteceu na Espanha, em que identificamos o sufocamento do surgimento de uma indústria cinematográfica local pelo sistema de cinema hollywoodiano dominante, no Brasil, também demoramos um tempo até constituir um parque industrial de produção cinematográfica, sem paralelos com o parque cinematográfico das majors americanas: a Columbia Pictures, a 20th Century Fox, a Warner Bros., a Paramount Pictures, a Universal Pictures, a Metro-Goldwyn-Mayer (MGM)  – (fusionada a Sony/Columbia), a United Artists (fusionada a MGM), e a extinta RKO Radio Pictures.

A fábula do vampyroteuthis e sua percepção orgiástica do meio em que vive devido à disposição dos órgãos vitais em seu corpo é uma metáfora que nos ajuda a compreender a importância da representação dos desvios de Goffman, Becker e Elias em toda a obra cinematográfica de Almodóvar. O cineasta percebe que o cinema é uma arma de difusão contracultural e usa suas narrativas centralizando-as em desvios humanos como que numa tentativa de libertar os espectadores da prisão aflitiva identificada por Flusser na sua análise da produção cultural humana como essencialmente uma produção que tende a reprimir o feminino, recalcando as pulsões sexuais que são vitais e naturais no vampyroteuthis.

O vampyroteuthis flusseriano é uma síntese metafórica dos marginais almodovarianos de Becker, Goffman e Elias. Almodóvar produz, a partir de estratégias do cinema hollywoodiano, um cinema de arte que reproduz a relação orgiástica que o vampyroteuthis infernalis mantém com seu submundo marinho. Almodóvar faz emergir nos espectadores o vampyroteuthis infernalis recalcado pela cultura antropocêntrica, patriarcal e machista.

Flusser e sua filosoficção submarina nos ajudam a compreender o status social atribuído aos outsiders pelos grupos estabelecidos em posições de poder. Entendendo a cultura ocidental como branca, machista, misógina, homofóbica, racista e elitista, vemos então que o vampyroteuthis é uma espécie de antípoda desse modelo, em que tudo que passa por ele no ambiente aquático representa uma forma de relação sexual. O vampyroteuthis é o paralelo dionisíaco dos marginais almodovarianos. As prostitutas, os loucos, os drogadictos, os ninfomaníacos, os psicopatas, os suicidas, os histéricos e outros tipos de personagens marginais que habitam o centro da tela narrativa almodovariana são a corporificação do vampyroteuthis projetada catarticamente nas telas de cinema, gerando espaços de sociabilidades distintas das dominantes pelos grupos que controlam as representações sociais no cinema majoritário.

Recentemente, tentando fazer média com o público, o Oscar premiou um filme que conta a história de dois homens negros homossexuais, Moonlight. Mas Moonlight está longe de ser a tônica do rolo compressor imagético das majors americanas que ainda preferem a produção de séries cinematográficas baseadas fortemente no reforço de estereótipos estigmatizantes. Para Hollywood, ao contrário do que faz Almodóvar, os marginais são tratados como inferiores ou pior, melodramaticamente vilanizados. Almodóvar faz exatamente o caminho inverso. Ele parte de uma ótica marginal para construir suas narrativas, seguindo o modelo hollywoodiano, mas invertendo os papéis entre opressores e oprimidos. O polvo de Flusser, esse ser erotizado, assume então uma centralidade narrativa que Hollywood tenta rotular e enquadrar. Flusser e Almodóvar são artífices de uma contracultura pós-humana.

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Rafael Nacif de Toledo Piza é doutor em Comunicação (PPGCom/UERJ) e Relações Públicas na UERJ.

 

Referências bibliográficas:

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Vampyroteuthis infernalis e os desvios no cinema de Almodóvar