Adriana Guimarães Moreira | Junho 2020

O isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19 transformou hábitos e comportamentos, (re)criou formas de produção e de consumo, bem como estabeleceu novos modelos de interação com as marcas. De uma hora para outra, no início da segunda quinzena de março, as ruas ficaram vazias. O comércio não essencial à população fechou as portas e todas as atividades culturais foram suspensas. O silêncio e o vazio modificaram o cenário urbano tanto do ponto de vista espacial quanto simbólico. A sonoridade das cidades mudou. Shows foram cancelados, turnês precisaram ser interrompidas, festivais tiveram que ser adiados e inúmeros artistas de rua saíram de cena. A tecnologia passou a ser ainda mais presente no cotidiano e, assim, os relacionamentos acabaram desembocando no ambiente digital sobretudo nas redes sociais on line.

O confinamento e as restrições de lazer e de entretenimento geraram uma rápida e impressionante expansão das transmissões ao vivo de vídeos na internet, também conhecidas como lives, nas quais se incluem aquelas exclusivamente dedicadas ao universo da música. Do pop ao sertanejo, do rock ao eletrônico, do funk ao samba, inúmeras manifestações artísticas, informais ou produzidas profissionalmente, estão sendo protagonizadas durante a pandemia por cantores, músicos, djs entre outros.

André Lemos e Pierre Lévy (2010, p.22) observam que a cibercultura “modifica hábitos sociais, práticas de consumo cultural, ritmos de produção e distribuição de informação, criando novas relações no trabalho e no lazer, novas formas de sociabilidade e de comunicação social”. Com base nesse conceito, podemos dizer que a cibercultura transformou o entretenimento nesse período. A explosão das lives não tem precedentes. Dados do Youtube [1] mostram que as buscas por conteúdo ao vivo cresceram 4.900% no Brasil durante a quarentena. O crescimento dessa modalidade de transmissão ao vivo também estabelece novos parâmetros de práticas de consumo por uma sociedade contemporânea globalizada e que, cada vez mais conectada pela tecnologia, anseia por respostas imediatas.

Assistimos como os indivíduos se relacionaram com artistas e com marcas que passam a ter presença obrigatória nos meios sociais digitais e a fazer uso de uma linguagem condizentes com a informalidade e o imediatismo. Podemos dizer que o período inicial das lives se caracteriza por uma estética própria localizada em um tempo determinado. Em seguida, entre as últimas semanas de março e o início de abril, começam a surgir as apresentações e os festivais patrocinados por marcas e organizados pelas principais gravadoras, como Sony, Universal e Warner. É também nesse período que o mercado da música se estrutura rapidamente e intensifica as transmissões no Youtube. Essa segunda fase é apontada por executivos do alto escalão das empresas fonográficas[2] como o marco da profissionalização das lives durante o isolamento no país.

Considerando a dimensão comunicacional das relações sociais, iniciamos um estudo que procura refletir como as novas práticas de consumo reconfiguraram o mercado de lazer e de entretenimento por meio das lives musicais. Para tanto, buscamos dois caminhos. Primeiramente, observamos a evolução dessas lives em plataformas digitais (Youtube e o Instagram) e em veículos de comunicação (tevê aberta e por assinatura), bem como acompanhamos as principais notícias veiculadas na imprensa sobre essas apresentações no Brasil e em outros países. No segundo momento, realizamos uma sondagem de opinião[3] com 100 pessoas, por meio de um questionário com 10 perguntas, aplicado entre 1 a 8 de maio, para analisar como foi a interação do grupo com as lives musicais e as marcas. O trabalho está apresentado detalhadamente em um artigo a ser publicado em breve. Por ora, podemos adiantar que para a maioria dos entrevistados as lives representaram momentos de alegria.

Se por um lado as marcas impulsionaram o crescimento das lives, por outro,  podemos observar que a tecnologia impulsionou o indivíduo, uma vez isolado em casa ou em apartamentos, a procurar frestas simbólicas em janelas virtuais que, em alguma medida, o reconectaram com sensações próximo as àquelas vividas, até então, em grupos em ambientes urbanos. Desta forma, o fenômeno das lives se configurou rapidamente como um produto cultural pautado por uma nova ordem social que associou a quarentena ao lazer, ao entretenimento e à comunicação em rede, capaz de promover uma prática de consumo temporária motivada pelo desejo pelo compartilhamento de experimentações coletivas.

 

[1] Disponível em https://exame.com/revista-exame/o-mundo-e-uma-live/ acesso em junho de 2020.

[2] Informações obtidas no webinar “A indústria do entretenimento no pós-pandemia”, em 9/6/2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vV5iKP7ZmpI&feature=youtu.be acesso em junho de 2020.

[3] O questionário foi elaborado com auxílio da plataforma Survey Monkey e divulgado nas páginas do Facebook e do Instagram, bem como em grupos de relacionamento pelo whatsapp da autora.

 

____________________________________________________

Adriana Moreira é jornalista e mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da UERJ.

 

Referências bibliográficas:

LEMOS, A.; LÉVY, P. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010.

Ao vivo em casa: como as lives musicais entraram no cotidiano durante a pandemia