Ana Teresa Gotardo | Junho 2020

Nós vivemos num momento em que a disputa discursiva nunca esteve tão acirrada. Embora esse assunto tenha uma profundidade muito maior que a que trago aqui neste texto, gostaria de falar um pouquinho sobre o rompimento com a hegemonia da fala por meio da autorrepresentação e da disputa de sentidos no que diz respeito à violência contra a mulher.

Eu sou uma mulher cisgênero, branca, heterossexual, doutora. Sou uma privilegiada. E vivi dois relacionamentos abusivos. O primeiro durou 11 anos + período pós-separação (com uma violência que vem em ciclos porque eu sou obrigada a falar com ele) e o segundo durou um ano e meio, um relacionamento a distância. Eu falo sobre minhas experiências nesses dois relacionamentos sem citar nomes em todas as minhas redes porque decidi entrar na disputa pela autorrepresentação e pela ressignificação de certas verdades por alguns motivos.

O primeiro é que os homens são quase sempre acima de qualquer suspeita, enquanto a mulher é sempre colocada em dúvida, à prova; portanto, eles acabam detendo a hegemonia da fala e, com essa hegemonia, há uma interdição da fala da mulher pela loucura. Foucault aborda a interdição da fala pela loucura em A Ordem do Discurso. É importante compreender isso para desconstruir o mito da ex louca (ou depressiva, ou traumatizada, ou surtada, quaisquer nomes que eles queiram nos atribuir). Desta forma, os abusos continuam mesmo após o término do relacionamento e toda dor física e psicológica acaba sendo exclusivamente da mulher, já que, sendo a hegemonia da fala e da construção da verdade do homem, ele imputa a culpa à mulher, que passa a duvidar de si, enquanto ele segue sua vida normalmente, sem questionamentos de seus atos, e muitas vezes (eu diria a maioria das vezes) sem pagar na justiça pela violência.

Para a sociedade patriarcal cis-heteronormativa, a mulher é a responsável pela relação, pela felicidade do casal, pela manutenção do casamento. Viver uma relação cis-heteronormativa é uma expectativa social: casar, ter filhos, ter uma “vida feliz”, exibi-la nas redes sociais, mesmo que a realidade não seja exatamente essa. Rompimentos de quaisquer ordens a essas normatizações são necessários, acontecem; porém, as pessoas que estão fora das normas vigentes ainda sofrem preconceito e violência, pagando muitas vezes com a própria vida. Eu quero contribuir um pouco com esse rompimento compartilhando algumas experiências pessoais e descobertas, especialmente devido ao aumento da violência doméstica durante a pandemia.

A primeira experiência sobre a qual quero falar diz respeito à vergonha da mulher vítima. No fim do meu casamento (após 11 anos de relacionamento), fui coberta pelo sentimento de culpa e de vergonha. Tudo porque eu percebia a violência, mas, enfraquecida por ela, não tinha coragem de encerrar o casamento. Eu achava que não conseguiria dar conta da casa e da minha filha sozinha e, apesar de eu ser uma mulher totalmente independente, ele fazia com que eu me sentisse de alguma forma dependente dele por meio de constantes abusos psicológicos.

Eu me sentia uma feminista fracassada. Então comecei a falar sobre minha experiência como mulher vítima especialmente em minha conta do Twitter (@anagotardo), porque eu quase não tinha seguidores lá, especialmente pessoas da família e tampouco amigos que conheço pessoalmente, já que tinha medo de como as pessoas me olhariam, vergonha de assumir o que eu achava que era uma falha, uma culpa minha. Era meu lugar de desabafo porque eu tinha vergonha de falar sobre isso nas outras redes, onde eu tenho mais seguidores, amigos, familiares.

E várias mulheres vieram falar comigo sobre como eu as estava ajudando, especialmente depois de um comentário que fiz num tweet de um homem famoso que teve cerca de 700 likes. Eureka! Falar sobre minha experiência como vítima estava ajudando outras pessoas! Eu estava dentro da disputa narrativa, tomando as rédeas da narração da minha própria história. Eu estava me autorrepresentando nesse espaço e ajudando outras mulheres. Mais tarde eu também percebi que muitas mulheres das minhas outras redes engajavam comigo “nas entrelinhas”, e isso também foi muito importante pra mim. E eu já tinha me aberto sobre meu relacionamento abusivo pessoalmente com algumas amigas, mas a ideia de que eu podia ajudar desconhecidas também me fez muito feliz.

Só que ajudar também significava entrar na disputa por sentidos, o que eu entendi como dar o nome correto às coisas. Então:

– Ele te ofende, te manipula, te culpa, se vitimiza? Isso é violência psicológica.

– Ele força sexo sem você querer? Isso é estupro.

– Matou uma mulher? Ele não é louco, é assassino.

E o que eu descobri com isso? Que os homens saem do controle quando a gente dá o devido nome às coisas, quando a gente se torna, digamos assim, “dona da narrativa” – uma narrativa que sim, é nossa, e sobre a qual temos o direito de falar. Ou seja, a disputa de sentido funciona, porque ela ajuda a acabar com a hegemonia da fala masculina branca, cis, hétero que imputa à mulher a culpa pelos atos desses homens abusivos.

E sim, eles tentarão sempre nos interditar pela loucura, ou usarão de novas estratégias discursivas para retomar a hegemonia da fala. Por isso, unir nossas vozes é a única forma de combater essa estrutura que quer nos calar, seja pela violência física, seja pela violência discursiva, seja pela silenciamento ou pelo apagamento. Demorou para que eu aceitasse, mas compreender que a culpa do abuso é do abusador, não da vítima, é algo fundamental no processo de empoderamento. E lembrem-se: violência psicológica tem o mesmo peso que violência física pela Lei Maria da Penha.

Meu aviso aos homens abusivos é: podem ter medo, porque sou muito, muito consciente do meu lugar no mundo e meu objetivo é que outras mulheres também sejam. Por isso, não vou me calar, continuarei lutando pelo nosso direito à autorrepresentação. E darei todos os nomes corretos a todos os abusos.

Pelo direito à autorrepresentação na luta pelo fim da violência contra a mulher