Ana Teresa Gotardo | Maio 2020

Em 2019, enquanto estava na reta final da escrita de minha tese, fui acometida pela desesperadora “crise com o objeto”. Famosa entre mestrandos e doutorandos, ela faz o pesquisador levantar a terrível questão: “mas por que estou pesquisando isso, qual será a contribuição de minha pesquisa para o campo de conhecimento e para as pessoas ou para o mundo?” Pesquisar a marca-cidade em um contexto de escândalos políticos, em meio às notícias da “Vaza Jato” publicadas pelo jornal The Intercept, parecia não ser uma contribuição digna ao momento que estávamos vivendo no Brasil.

Eu poderia refutar esses pensamentos com um argumento muito básico sobre a importância da pesquisa científica de uma forma ampla, mas gostaria agora de compartilhar uma reflexão muito pessoal sobre como o mundo muda, como os ventos invertem sua direção rapidamente: especificamente no meu caso, foram cerca de seis meses entre a dúvida e as alterações no mundo que se apresenta agora. Ainda no meu caso, falo de uma pandemia, algo que não acontece com frequência; no entanto, as transformações acontecem de diversas formas, e talvez algo que não pareça tão importante em um momento torna-se crucial para se pensar e entender o mundo em outro.

Uma das discussões que trago em minha tese diz respeito às representações das modificações urbanas pensadas e executadas em um contexto de neoliberalização da cidade, a transformação do Rio de Janeiro em cidade-mercadoria por um Rio de Janeiro que se pretendia gerencial, tal como uma empresa. Nos documentários que analisei, moradores das favelas reclamam da falta de saneamento básico e hospitais enquanto a prefeitura se propõe a construir teleféricos. O planejamento estratégico urbano estava focado na produção de uma cidade que não ouvia (ou ouvia muito pouco) seus cidadãos, que não tiveram suas demandas atendidas e muitos inclusive foram expulsos de suas residências, perdendo não somente suas casas, mas as relações afetivas que exerciam com o espaço e as pessoas ao redor. Uma cidade regida por interesses econômicos, pela especulação imobiliária, pela intenção de tornar-se cidade global.

Se essa cidade global já ressaltava as desigualdades, a pandemia mostra que, nas cidades, os territórios mais pobres estão ainda mais vulneráveis. Sem políticas públicas, muitas favelas recorrem à auto-gestão para sensibilizar moradores, dar condições de vida àqueles que perderam seus empregos, ou aos que ainda são obrigados a trabalhar, ou ainda, àqueles que não têm como aderir ao isolamento dentro de suas casas pela forma de suas construções, ou pela quantidade de pessoas que nela vivem. Esses processos de auto-gestão me fazem lembrar a fala de uma moradora do Morro da Providência em um dos documentários analisados na tese, que, em citação livre, era algo como “os moradores das favelas sabem o que querem”. Sabem o que querem, o que precisam, e que o poder público não chega (ou, quando chega, é muito pouco) nesses territórios.

E onde fica a marca-cidade nesse contexto?

Tenho uma imensa esperança de que o planejamento estratégico urbano que hoje pensa a cidade como empresa e produto tenha que mudar o foco de ação para ouvir os saberes hoje negligenciados por ele. A pandemia escancara a necessidade de um estado presente, o contrário da neoliberalização que estava sendo implantada. Mas a presença do estado per se não resolve o problema da falta de investimentos: é necessário ouvir as demandas dos moradores, que sabem o que querem e o que precisam, e muitas vezes têm as melhores soluções para as mais diversas demandas. É necessário incluir o cidadão no processo de reconstrução da cidade, uma cidade que é feita por e para ele.

A marca-cidade pós-pandemia carregará novos atributos, ela deve ser repensada, reconstruída, para dar conta desses novos espaços no mundo, das novas formas de inclusão e circulação que potencialmente possam surgir a partir do caos. Se os sentimentos de coletividade e cuidado com o próximo são a ordem para a mitigação do novo coronavírus, então afeto e cuidado com a população podem ser centrais no impacto da imagem do país/cidade para o mundo. E eu não estou falando de lovemark®. Falo de ações concretas que possam contribuir para a boa imagem do país em meio a uma luta que é mundial e para a reconstrução da marca pós-pandemia. Exatamente ao contrário do que nosso presidente Jair Bolsonaro tem feito.

 

Márcia, moradora do Morro da Providência, ressalta a falta de diálogo entre o poder público e residentes da favela no documentário Battle for Rio 

(Fonte: imagem extraída do documentário Battle for Rio, da rede canadense CBC, 2014).

 

Moradores das favelas buscam formas de autogestão na pandemia.

(Fonte:  https://rioonwatch.org.br/?p=45925. Acesso em: 08 de maio de 2020).

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Ana Teresa Gotardo é doutora em Comunicação pelo PPGCom/UERJ.

Qual o futuro da marca-cidade pós-pandemia?