Ricardo Ferreira Freitas | Maio 2020

Picolé! Picolé! Picolé na porta da sua casa!!!

No último domingo de março, ao tomar banho à tarde, ouvi um homem anunciando picolé. Pensei: quem é essa pessoa que está vendendo picolé nas ruas vazias de um bairro tão pacato de Teresópolis em plena quarentena? Olhei pela janela do banheiro da minha casa, que fica no alto de uma colina, e vi um senhor em uma rua na parte baixa do bairro, solitário, anunciando seus picolés, até que sua voz desapareceu ao longe. Eu me perguntei: a quem ele vai vender esses picolés? Não há ninguém na rua!

O bairro onde fica minha casa já é, em situações normais, um lugar muito quieto, com raras pessoas nas ruas. Com a pandemia da Covid-19, praticamente parece um bairro fantasma, onde vez ou outra passa alguém, em geral, um trabalhador local. Em se tratando de um domingo, nem esses personagens estavam circulando…

Aquele apelo ao consumo do sorvete do senhor com seu carrinho de mão me cortou o coração. Imaginei quantos outros trabalhadores desesperados estavam nas ruas das diferentes cidades do país, tentando ganhar um trocado para garantir a refeição do dia ou da noite.

À noite, em casa, quando servi meu jantar, os gritos do senhor ainda ecoavam na minha cabeça. Senti-me culpado por estar comendo confortavelmente à beira da lareira enquanto ele talvez só tivesse os próprios picolés para se alimentar.

Ao longo daquela semana, só saí uma vez para ir às compras. Na porta do supermercado, havia um senhor bem idoso e debilitado, pedindo ajuda; uma senhora negra com máscara, vendendo chocolates que ela própria produz; e uma outra senhora, vendendo máscaras que ela criou com restos de pano. Voltou a imagem do homem dos picolés à minha mente. Colaborei com os três, inclusive comprei máscaras da senhora costureira, apesar de já ter um estoque delas em casa. Mas não foi o suficiente para esquecer a voz solitária do senhor dos picolés nas ruas desertas do alto de Teresópolis.

Todos os dias, quando não chove, saio para caminhar nas alamedas do bairro que parece fantasma. Ter vindo para Teresópolis foi estratégico justamente por isso. Aqui, posso caminhar, cuidar das plantas do jardim, e, assim, adiar o processo de enlouquecimento a que estamos sendo submetidos com essa pandemia. Se tivesse ficado no meu pequeno apartamento do Rio de Janeiro, certamente já estaria em alto grau de estresse. Os dias passaram e, aos poucos, fui me esquecendo do senhor dos picolés. Continuei minhas caminhadas, sempre que o tempo permitiu.

Semanas depois, no primeiro domingo do mês de maio de 2020, ao sair para me exercitar, escolhi um caminho cheio de ladeiras para forçar uma atividade cardiovascular. Ao subir uma dessas ladeiras, tive a impressão de novamente ouvir Picolé!! Picolé na porta da sua casa!! Mais uma vez, me veio a lembrança triste daquele senhor solitário.

Ao chegar no topo da ladeira, lá estava ele em frente à portaria de um condomínio, anunciando os picolés com seu carrinho de mão. Ele portava máscara da maneira correta e quando lhe cumprimentei com um “Bom dia”, deu para perceber seu sorriso sincero de quem estava feliz por encontrar alguém na rua. Eu me senti um monstro, pois havia saído de casa sem dinheiro. Então com um ímpeto clássico dos culpados, puxei uma conversa rápida e perguntei se ele tinha clientes em plena quarentena. Sem deixar seu sorriso por trás da máscara, ele respondeu: “não consigo vender nada. Antes da doença, este condomínio ficava cheio de crianças nos domingos. Elas vinham correndo para a portaria quando me viam”. Ele tem orgulho de seu trabalho e da alegria que proporciona às crianças. Lembrei-me da minha infância em um subúrbio do Rio de Janeiro, quando apareciam vendedores de sorvetes e eu saía a correr e pedir a minha mãe que comprasse um. Queria perguntar se ele tinha filhos e netos, como estava fazendo para se manter, mas não consegui. Fiquei tão emocionado com sua disposição para trabalhar que só pensei em continuar a caminhada, desejando-lhe boa sorte.

Ainda não o encontrei novamente. Tenho saído sempre com um trocado e com luvas, além da máscara, para poder comprar um picolé e ter a sensação, talvez hipócrita, de colaborar com uma família. Mas, pelas alamedas do bairro, cada vez mais me vêm à mente as imagens de pessoas nas ruas, que vejo na imprensa e nas redes sociais, tentando ganhar algum dinheiro para poder sobreviver.  Que tipo de sociedade é essa que deixa tanta gente desamparada? A que ponto do capitalismo chegamos em que a sobrevivência e a dignidade de cada pessoa dependem exclusivamente do dinheiro? Simmel (1987) tinha razão ao defender, há mais de cem anos, que o dinheiro é o mais assustador dos niveladores. Simmel elencou três efeitos culturais do dinheiro (Bruno e Guinchard, p. 39): discriminatório, visto que existe uma correlação entre intelectualidade e economia monetária; espacial, devido às modificações na noção de distância que o dinheiro oferece; e de ritmo, com as contradições entre regularidade e diversidade de tempos.

O senhor dos picolés é um triste exemplo das diferenças sociais a que o dinheiro submete a civilização. Ao mesmo tempo, ele é o melhor dos exemplos de pessoa que tenta manter sua dignidade, apesar das adversidades, postura bem diferente da maioria dos poderosos políticos brasileiros.

 

___________________________________________________________

Ricardo Ferreira Freitas é coordenador do Lacon e professor titular da Faculdade de Comunicação Social da UERJ.

 

Referências bibliográficas:

BRUNO, Alain e GUINCHARD, Jean-Jacques. Georg Simmel: vie, oeuvres, concepts. Paris: Ellipses, 2009.

SIMMEL, Georg. Philosophie de l’argent. Paris: PUF, 1987a

O senhor dos picolés