Jorgiana Brennand | Abril 2020

 

A vantagem de se estar isolado é que se começa a valorizar as miudezas, sufocadas pela rotina e praticamente imperceptíveis na correria do cotidiano. Assistir a uma novela antiga na quietude da madrugada insone é uma dessas coisas miúdas, assim como observar a sutileza de sua trilha sonora e perceber o quanto é atual…

Estar isolado é permitir-se sentir saudade do que viveu e descobrir a falta daquilo que nunca fez falta: o barulho da buzina no trânsito engarrafado; a espera longa pelo ônibus na porta da UERJ e até a conversa com o morador de rua embaixo da marquise na esquina do prédio em que moro!

É sentir falta de sair à deriva pela cidade para conhecer vielas, bares e lugares repletos de pessoas que se cruzam e estão ali juntas simplesmente pelo prazer da companhia do outro. O isolamento social me faz sentir saudade do estar-junto apenas pelo estar junto. É sentir falta dessa espontaneidade vital, que, sob o olhar do sociólogo francês Michel Maffesoli, “assegura a uma cultura sua força e sua solidez específicas” (MAFFESOLI, 2000, p. 115) .

A quarentena me faz pensar a sociabilidade às avessas. Nesse momento, não dá para encará-la, sob a ótica da professora Lívia Barbosa (2009), como a materialização do sentimento de prazer no encontro com o outro.  Tudo ficou diferente, sem  “olho no olho”, abraços ou beijos. As práticas de interação assumem contornos mais frios. Agora é a tecnologia que as (re) define. Não há ritos e festas ou personagens desconhecidos, que se incorporam sem compromisso a nossa rotina. Está faltando interconexão, percebida por Maffesoli (2000), como algo essencial nas relações, “pois privilegia o papel de cimento que o afetivo, o ombro-a-ombro, pode representar” (p.125).

A sociabilidade agora vem do não sociável.  Ficar em casa isolado virou sinônimo de afeto e cuidado para com o outro. O máximo que se permite de aproximação é a conversa em vídeo pelo celular ou o bate papo descompromissado pela janela com a vizinha de porta. Ou pelas redes sociais. WhatsApp agora assume status de melhor amigo! Acordar sem mensagens é quase equivalente à rejeição que se sente num sábado à noite quando inexistem convites para curtir à noite pelas ruas da cidade.

O isolamento me faz querer de volta as gargalhadas que rompem o silêncio de uma madrugada na mesa de um bar. Dá saudade até do coro desafinado dos temíveis karaokês e de todo aquele agrupamento espontâneo, longe de ser unificado.

O distanciamento social me faz querer voltar a pegar o trem com destino ao subúrbio só para ouvir “a guerra de ambulantes”, evidenciando o entendimento do conceito de sociedade por parte de Maffesoli (2000). Segundo o autor, ela não se resume a uma mecanicidade racional qualquer: “ela vive e se organiza, no sentido estrito do termo, através de reencontros, das situações, das experiências no seio dos diversos grupos a que pertence cada indivíduo (p. 124).

Aí bate saudade até das empadas de carne seca, das balas de coco e das estratégias dos vendedores tentando me convencer que comer “Tira Teima” é mais legal do que “Torcida”! Saudade de ouvir as histórias entrecortadas daqueles que por ali circulam, cujos relatos se entrecruzam uns com os  outros, constituindo, o que Maffesoli (2000) classificaria como uma massa indiferenciada e polaridades muito diversificadas.

Estar isolada me faz querer perambular pelas ruas populosas de Madureira e fazer trajetos atravessados por afetos que se cruzam embaixo do viaduto Negrão de Lima ou a caminho da feijoada na quadra da Portela. É a quarentena mostrando uma Madureira, que transcende os acordes, batidas e melodias, típicas do samba… É o isolamento querendo me levar de volta às ocupações criativas do bairro para descobrir as “brechas” para driblar a ordem, tão destacadas pelas obras do historiador francês Michel de Certeau (1994)!

A quarentena me mostra uma cidade deserta, quase fantasma em algumas áreas. As ruas vazias escondem o lado pulsante de muitos bairros e ocultam  emoções e sentimentos dados pelo viver urbano. Está faltando vida às cidades, que sempre se traduziram, de acordo com a historiadora Sandra Pesavento (2007), em utopias, esperanças, desejos e medos, individuais e coletivos, que esse habitar propicia em toda a urbe. Das Zonas Sul, Norte e Oeste. Sem distinção.

Isolar-se em casa traz todo tipo de lembrança. Até mesmo de Nescau. Não o Nescau de hoje, extremamente doce e com gosto de conservante… Falo daquele Nescau “raiz”, das antigas. Aquele que vinha numa lata branca com o nome azul! Era um sabor suave com gosto de infância e de saudade de uma época em que as crianças corriam pelas ruas, subiam em árvores e viviam cheias de arranhões. Lembranças de machucados que melhoravam com um copo de Nescau.  Bem diferente da realidade de hoje, dominada por máquinas e aplicativos que reconfiguram diariamente as formas de afeto.

Nesse sentido, vale destacar as percepções de “lembrança” do sociólogo francês, Maurice Halbwachs (1990). Segundo ele, nada escapa à existência social atual e é, por meio da mistura dos elementos que a compõem, que pode surgir a lembrança.

Só mesmo uma quarentena para pensar em Nescau “raiz” e, em seguida, em acarajé. O da Cida, ali, no coração do Largo da Mariquita, no Rio Vermelho, em Salvador. Saudades de comer acarajé, ouvindo “Anunciação”, um dos clássicos de Alceu  Valença, sentindo a brisa do mar. Agora, o máximo que se permite é apreciar a brisa que vem da janela, aquela lateral do quarto de dormir, onde se vê o Pão de Açúcar e os bondinhos que enchiam o cenário de charme, numa paisagem tipicamente carioca. Os bondinhos já não circulam. Pelo menos, até a quarentena acabar!

Essa mistura de lembranças evidencia que a consciência não está jamais fechada sobre si mesma, nem vazia, nem solitária. Somos arrastados, segundo Halbwachs (1990), em múltiplas direções, como se a lembrança funcionasse como um ponto de referência que nos permite situar em meio à variação contínua dos quadros sociais e da experiência coletiva histórica.

O isolamento social me faz pensar em cheiros, sensações e experiências vivenciadas em grupo. Dá saudade praticamente de tudo: do toque dos amigos, do olho no olho e de se permitir ficar perto de quem não se conhece muito bem apenas pelo prazer de vivenciar algo coletivamente como assistir e aplaudir ao pôr do sol, no Arpoador. Isso reforça  Halbwachs (1990), quando este afirma que, de todas as interferências coletivas que correspondem à vida dos grupos, a lembrança é como a fronteira e o limite, atuando como ponto de encontro de várias correntes do pensamento coletivo.

Em tempo de quarentena, chego à conclusão de que Beto Guedes é que estava certo, quando 30 anos atrás, afirmou que não precisa de choro ou deixar as coisas como estão. Afinal, segundo ele, amar é uma coisa normal entre nós. E é mesmo, apesar de hoje ter virado sinônimo de isolamento social. Mas, em breve, voltará a ser uma coisa normal, que combina com abraço, cerveja compartilhada com amigos, feijoada na Portela, baile Charme e bala de coco.

 


Jorgiana Brennand é  doutoranda no PPGCom da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora dos cursos de Comunicação do Ibmec/RJ. E-mail: jorgianabrennand@uol.com.br.

 

Referências:

BARBOSA, Lívia. Comida e sociabilidade no prato do brasileiro. p: 39-59. In: BARBOSA, Lívia; PORTILHO, Fátima; VELOSO, Letícia. (org.) Consumo: Cosmologias e sociabilidades. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica: EDUR, 2009.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1: Artes de Fazer. 19. ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 19994.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: editora Revistas dos Tribunais Ltda., 1990.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2000.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. In: Revista Brasileira de História, vol. 27, n. 53, São Paulo, Jan./Jun. 2007. p: 11-23. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882007000100002>. Acesso: 14 set. 2019.

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