Rafael Nacif | Janeiro 2020

O intuito deste artigo é propor uma reflexão sobre as dualidades entre humano e maquínico, interior e exterior, razão e emoção. Pretende-se compreender de que modo as tecnologias modificam nossa subjetividade. Vivemos, atualmente, uma mudança de paradigma. No entanto, desde que o homem inventou o fogo, a tecnologia sempre foi importante. Para Foucault, vivemos uma mudança epistemológica. Para Morin, trata-se de analisar o espírito do tempo. Identificamos uma mudança no modo de ver as coisas, a partir da atuação de valores distintos. Destacamos a importância do corpo, sua centralidade.

Essa centralidade redunda na teoria do ator-rede ou sistemas complexos. Entendemos cognição como habilidades intelectuais, lógica, tomada de decisão. Passamos por uma verdadeira inversão cognitiva, isto é, pensar o contrário do que considerava Descartes. Nosso pensamento é transdisciplinar: atravessa vários campos do saber. A visão da ciência dividida em disciplinas é típica da ciência moderna, que subdivide a ciência em humanas, sociais, tecnológicas e agrárias, da vida. Estas divisões são disciplinares. No caso da visão multidisciplinar, consideramos que os especialistas não saem de suas áreas de especialidade. No caso da interdisciplinaridade, o objeto de conhecimento está para além das especialidades. A visão transdisciplinar faz com que vejamos o mundo de formas diferentes.

Um marco importante nesse percurso foi a segunda guerra mundial, com o desenvolvimento da computação. Depois das explosões das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, os físicos e toda a humanidade ficaram chocados com o poder destruidor da ciência. Nos anos 50, Watson e Greek desenvolvem uma teoria da informação. Também nos anos 50, Shannon e Weaver criam a teoria matemática da comunicação. Há a descoberta do DNA: nossos genes são manuais de como fazer outros seres vivos. Acontecem as Conferências de Macy, uma série de doze encontros ao longo de uma década que deram origem à cibernética. A cibernética nada mais é do que uma ciência que acredita que tudo são sistemas que recebem inputs e geram outputs. Seus resultados são considerados muito mecanicistas e lineares. A caixa-preta, isto é, aquilo para o qual a ciência não tinha explicação, passou a ser definida por sistemas complexos. A cibernética tratou máquinas como sistemas estruturados. Ela opõe sistemas vivos a sistemas maquínicos. Os cientistas passaram a criar pontes entre as disciplinas, a chamada teoria dos sistemas complexos. O comportamento que o sistema inteiro apresenta não deriva do comportamento individual de um elemento discreto. Segundo a Prof. Immacolata, o paradigma modula a questão que o cientista coloca e as respostas que serão geradas. Para Simondon, o ruído é o acaso e pode ser positivo.

Analisaremos, a partir de agora, as teorias desenvolvidas por Henri Bergson em “Matéria e memória – ensaio sobre a relação do corpo com o espírito”. O autor nasceu em Paris em 1859. Estudou na Ecole Normale Supérieure de 1887 a 1881 e passou os 16 anos seguintes como professor de filosofia. Em 1900, tornou-se professor no Collège de France e, em 1927, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Bergson faleceu em 1941. Além de “Matéria e memória”, escreveu “Memória e vida”, “A evolução criadora”, “O riso”, “Cursos de filosofia grega” e “A energia espiritual”, todos publicados pela editora Martins Fontes no Brasil.

Em “Matéria e memória”, Bergson busca afirmar a realidade do espírito, a realidade da matéria, e tem o intuito de determinar a relação entre eles sobre um exemplo preciso, o da memória (Bergson, 2010, p.1). O autor inicia seu percurso buscando mostrar que idealismo e realismo são duas teses igualmente excessivas, que é equivocado reduzir a matéria à representação que temos dela, assim como é falso fazer da matéria algo que produziria, em nós, representações mas que seria de uma natureza diferente delas (Bergson, 2010, p. 1). Um indivíduo não familiarizado com as especulações filosóficas ficaria bastante surpreso se lhe informássemos que o objeto diante dele, que ele vê e toca, apenas existe em seu espírito e para seu espírito, isto é, de uma maneira geral, só existe para um espírito, como defendia Berkeley. Portanto, segundo o senso comum, o objeto existe nele mesmo e, por outro lado, o objeto é a imagem dele mesmo tal como a percebemos: é uma imagem, mas uma imagem que existe em si (Bergson, 2010, p. 2). De outra maneira, Bergson considera a matéria antes da dissociação que o idealismo e o realismo realizaram entre sua existência e sua aparência. Chega-se então ao problema da relação do espírito com o corpo (Bergson, 2010, p. 4).

Para o autor, a lembrança representa, exatamente, o ponto de interseção entre o espírito e a matéria (Bergson, 2010, p. 5). Bergson defende alguns princípios em suas obras, sendo o primeiro que a análise psicológica deve referir-se a todo momento a respeito do caráter utilitário de nossas funções mentais, essencialmente focadas na ação. O segundo princípio é aquele em que define que os hábitos contidos na ação, transpostos à esfera da especulação, criam então problemas fictícios, e que a metafísica deve começar por desconstruir essas obscuridades artificiais (Bergson, 2010, p. 10).

Segundo Bergson, fazer do cérebro a condição da imagem total é realmente contradizer a si próprio, já que o cérebro, por hipótese, é uma parte dessa imagem. A questão é que nossos corpos escolhem, em certa medida, a maneira de devolver o que recebem. Para Bergson, o corpo, objeto destinado a mover objetos, é, portanto, um centro de ações; ele não poderia fazer nascer uma representação. (Bergson, 2010, p. 14) Isto é, os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles (Bergson, 2010, p. 16). Bergson chama de matéria o conjunto das imagens, e de percepção da matéria essas mesmas imagens relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, meu corpo (Bergson, 2010, p. 17). Daí, podemos inferir que tudo é imagem.

Em “Matéria e memória”, Bergson defende que os movimentos da matéria são muito claros enquanto imagens, e que não há como buscar no movimento outra coisa além daquilo que se vê (Bergson, 2010, p. 18). A principal dificuldade consistiria em fazer surgir dessas imagens muito particulares a variedade infinita das representações; mas, indaga ele, porque pensar nisso quando, na opinião de todos, as vibrações cerebrais fazem parte do mundo material e essas imagens, consequentemente, ocupam apenas um espaço diminuto da representação? (Bergson, 2010, p. 18). Portanto, o que seriam afinal esses movimentos, e que papel essas imagens particulares desempenham na representação do todo? (Bergson, 2010, p. 18). Para o autor, essas imagens tratam-se de movimentos, no interior do meu corpo, destinados a preparar, iniciando-as, as reações de meu corpo à ação dos objetos exteriores (Bergson, 2010, p. 18).

O problema persistente entre idealismo e realismo, isto é, entre materialismo e espiritualismo, coloca-se, para Bergson, da seguinte maneira: Como se explica que as mesmas imagens possam entrar ao mesmo tempo em dois sistemas diferentes, um onde cada imagem varia em função dela mesma e na medida bem definida em que sofre a ação real das imagens vizinhas, o outro onde todas variam em função de uma única e na medida variável em que elas refletem a ação possível dessa imagem privilegiada? (Bergson, 2010, pp. 20-21).

Para resolver a questão, é necessário buscar primeiro um terreno comum onde se trava a disputa, e visto que, tanto para uns como para outros, só apreendemos as coisas sob forma de imagens, é em função de imagens e somente de imagens, que devemos colocar o problema (Bergson, 2010, p. 21). Para o autor, é fácil perceber que o idealismo subjetivo consiste em fazer derivar o primeiro sistema do segundo, e o realismo materialista em tirar o segundo do primeiro (Bergson, 2010, pp. 21-22).

Segundo Bergson, os realistas partem, de fato, do universo, ou seja, de um conjunto de imagens controladas em suas relações mútuas por leis imutáveis, onde os efeitos permanecem proporcionais às suas causas, e cuja característica é não haver centro, todas as imagens desenvolvendo-se em um mesmo plano que se prolonga continuamente. Mas eles são obrigados a constatar que além desse sistema existem percepções, isto é, sistemas em que estas mesmas imagens estão relacionadas a uma única dentre elas, organizando-se ao redor dela em planos diferentes e transformando-se em seu conjunto a partir de pequenas modificações desta imagem central. É dessa percepção que parte o idealista, e no sistema de imagens que ele se oferece há uma imagem privilegiada, seu corpo, sobre a qual se regulam as outras imagens (Bergson, 2010, p.22).

Bergson conclui então, que tanto no realismo quanto no idealismo, há um postulado comum que ele formula da seguinte maneira: a percepção tem um interesse inteiramente especulativo; ela é conhecimento puro. Isto é, tanto para realistas quanto para idealistas, perceber significa antes de tudo conhecer (Bergson, 2010, p. 24). Para o autor, o cérebro não deve ser, desta maneira, outra coisa, na opinião dele, que não uma espécie de central telefônica: seu papel é “efetuar a comunicação”, ou fazê-la aguardar. Ele não acrescenta nada àquilo que recebe; mas, como todos os órgãos perceptivos lhe enviam seus últimos prolongamentos, e todos os mecanismos motores da medula e do bulbo raquidiano têm aí seus representantes titulares, ele constitui efetivamente, um centro, no qual a excitação periférica põe-se em contato com este ou aquele mecanismo motor, escolhido e não mais imposto (Bergson, 2010, p. 26). O que equivaleria, segundo Bergson, a admitir que o sistema nervoso nada tem de um aparelho que serviria para construir ou mesmo preparar representações. O cérebro tem por função receber excitações, montar aparelhos motores e apresentar o maior número possível desses aparelhos a uma excitação dada (Bergson, 2010, p. 27).

O autor enuncia então uma lei: a percepção dispõe do espaço na exata proporção em que a ação dispõe do tempo (Bergson, 2010, p. 29). Para Bergson, na verdade, não existe percepção que não esteja impregnada de lembranças (Bergson, 2010, p. 30).

Bergson, defende, portanto, que há inicialmente o conjunto das imagens; há neste conjunto, “centros de ação” contra os quais as imagens interessantes parecem se refletir; é deste modo que as percepções nascem e as ações se preparam. Meu corpo é o que se desenha no centro dessas percepções; minha pessoa, segundo Bergson, é o ser ao qual se devem relacionar tais ações. As coisas se esclarecem se vamos assim da periferia da representação ao centro, como faz a criança, como nos convidam a fazê-lo a experiência imediata e o senso comum (Bergson, 2010, p. 47).

Podemos concluir, portanto, que a hipótese de enação de Maturana e Varela se coaduna com a descrição do sistema perceptivo feita por Henri Bergson. Nossos interesses determinam que recortes da realidade ganharão efeito sobre nossos corpos, sendo o cérebro apenas um instrumento condutor de substâncias bioquímicas que respondem aos estímulos do ambiente, ganhando destaque o papel da memória constituída ao longo do tempo na forma do aprendizado. Não podemos ignorar a centralidade do corpo na determinação de nossas ações conscientes sobre o mundo. É preciso reconhecer que estamos acoplados ao mundo material, num estado de interdependência que não admite hierarquização. Formamos nossas representações, interpretações e percepções do mundo de maneira interessada, recortando dele os objetos e conteúdos que nos dizem algo a respeito do mundo e de nós mesmos.   

 

Referências Bibliográficas:

 

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando – introdução à filosofia. 2 ed. São Paulo, Moderna, 1993.

 

BERGSON, Henri. Matéria e memória – ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 4 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

 

D’AMARAL, Marcio Tavares. O homem sem fundamentos: sobre linguagem, sujeito e tempo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ-Tempo Brasileiro, 1995.

 

VARELA, Francisco. Conhecer – as ciências cognitivas – tendências e perspectivas. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

 

VARELA, Francisco J., THOMPSON, Evan e ROSCH, Eleanor. The embodied mind – cognitive science and human experience.  Cambridge: MIT Press, 2016.

Filosofia, cognição, matéria e memória em Bergson