Ana Clara Camardella | Novembro 2019

Por muito tempo, brechós foram estigmatizados e evitados, pois eram alvo de tabus ligados à sujeira, doença e morte. A ideia de que a roupa de segunda mão seria roupa de pessoas que já morreram ainda persiste no imaginário de muita gente. É comum escutar que o fato de não saber “de onde aquela roupa veio” ou “a quem pertenceu” seria um impeditivo ou ponto negativo para a escolha desse tipo de consumo. Também é possível observar outro imaginário acerca das roupas usadas, que seria a curiosidade e o interesse (de forma positiva) acerca da memória que essas roupas carregam. Isso nos mostra como o consumo é rodeado de sentidos e significados e como cada contexto cultural é capaz de construir um imaginário sobre um determinado bem.

Por isso, quando falamos sobre consumo de segunda mão, pensamos ser possível fazer uma aproximação à teoria de Marcel Mauss sobre a dádiva (1974). Para o autor, as sociedades fundadas sobre a troca mercantil emergiram historicamente das sociedades organizadas pela reciprocidade, na qual a própria troca viria da dádiva. Alguns teóricos rejeitam o pensamento de que a troca se desenvolveria a partir da dádiva, posto que a primeira se motiva pelo interesse e o sistema de dádiva se sustenta na nobreza e na honra, na qual o doador ganha prestígio. E sustentam o pensamento de que a troca e a dádiva sempre coexistiram, mas a primeira acabou triunfando na sociedade ocidental.

De todo modo, a qualificação da dádiva se dá a partir da tríplice obrigação “dar, receber e retribuir” e, por isso, é possível realizar uma aproximação ao consumo de segunda mão, principalmente àquele que não é pautado em trocas comerciais, mas em troca de caridade. Ao realizar a doação de um bem de consumo, outra pessoa recebe aquele bem e pode passar adiante um outro bem que não utiliza mais, garantindo os valores da reciprocidade direta ou indireta (devolvendo o bem a mesma pessoa que recebeu ou a outro indivíduo). Mesmo as trocas comerciais de objetos usados ainda nos permite realizar tal aproximação, visto que os objetos são passados de um indivíduo a outro e muitos interpretam que aquele objeto ainda carrega algo do seu antigo dono. A essa ideia, podemos aproximar o conceito de mana cunhado pelo antropólogo. Para ele, existe uma força espiritual entre os atores da dádiva, um vínculo de almas. Essa força ou energia espiritual ligada ao processo de dar, receber e retribuir foi nomeada, por Mauss, pelo termo polinésio mana. Por mais que esse conceito se aplique em sociedades nas quais o material e o espiritual se fundem (nas sociedades modernas observamos a separação entre os dois) e que acreditam que a coisa dada carrega o ser do seu antigo dono, como o caso de sociedades indígenas por exemplo, ainda hoje podemos perceber algumas tendências de pensamento que se aproximam a esse conceito, como é o caso de indivíduos que creem que roupas (e bens em geral) de segunda mão carregam as energias de quem os passou à diante.

Por fim, podemos chegar à conclusão de que muitas crenças que permanecem em nosso imaginário, muitas vezes, são pautadas em questões que muitas vezes não racionalizamos, mas que vêm de tradições e construções primitivas. Mas e você? Gosta de comprar em brechó? Também acredita que as peças carregam essas energias?

 

Referência Bibliográfica:

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. v. II. São Paulo: Edusp, 1974.

O consumo de segunda mão e a dádiva de Marcel Mauss