Flávio Lins | Novembro 2019
Até a Revolução Industrial, as cidades eram pequenas em termos de população, mas foi em seu espaço que floresceram o comércio, a indústria e, mais tarde, os serviços terciários. Desde o seu surgimento, seguiram imantando pessoas ao redor, inebriadas pela sua dimensão imaginária, elaborada, principalmente, através da narrativa imagética, como a produzida pelos impressionistas no século XIX. Encantados pela Paris reformada pelo prefeito Haussmann, pelo novo ritmo, pelas novas tecnologias, cores e possibilidades sensíveis da urbe, como as Exposições Universais, eternizaram-na em pinceladas ágeis como uma festa de luzes, matizes e emoções, convidando ao deleite. A cidade consolidava-se como um espaço de sedução. O cinema, o teatro, os espetáculos de variedades e, especialmente, as compras, despertavam para as possibilidades que se abriam com o aumento de número de coisas e de pessoas que podiam ser consumidas. A cidade se mostrava atrativa, libertadora e infinitamente experiencial.
Embora destaquemos a explosão das cidades no século XIX e sua relação com as mudanças trazidas pela Revolução Industrial, este processo já estava em andamento, tendo sido tonificado pelas novas técnicas que surgiram na Inglaterra do século XVIII. O crescimento das cidades atrela-se à própria trajetória do homem sobre a superfície da terra, do nomadismo à necessária forma agrupada e ao sedentarismo, instaurando um espaço de comunicação (CAIAFA, 2007, p.20), ainda que aquele não tenha desaparecido.
Contudo, sobre a cidade que se desterritorializa com as tecnologias do virtual, tecedoras de um universo paralelo desafiador da lógica demarcadora de terra e céu, o arquiteto e filósofo Paul Virilio ressalta que “é a vez do espaço urbano perder sua realidade geopolítica em benefício único de sistemas instantâneos de deportação cuja intensidade tecnológica perturba incessantemente as estruturas sociais” (VIRILIO, 1993, p.12).
Mesmo imersas no olho do furacão das novidades tecnológicas que se hibridizam aos veículos de comunicação e demandam novas sensorialidades a todo instante, fracionando-nos entre espaços diversos que se desafiam e se mesclam, Pesavento (2007, p.11) salienta que as cidades sempre foram refúgio de uma nova sensibilidade.
Embora a autora sinalize com traduções sensíveis do espaço urbano, Ítalo Calvino (1990, p.14), em As Cidades Invisíveis, destaca que não se trata de tarefa fácil, já que a cidade “não conta o seu passado, ela o contém”. Talvez esteja aí o fascínio das cidades: o caráter mutante e enigmático que se desdobra em uma multiplicidade de traduções, encontrando nas metrópoles o terreno adequado para rebentação da “simbologia midiática contemporânea” (FREITAS, NACIF, 2005, p.7), cujas trasladações permanecem imprevisíveis, já que a cidade vai tomando consistência a partir dos “fatos cotidianos e banais” (MAIA, 2005, p.31).
Ao afirmar que a cidade “excede a representação que cada pessoa faz dela”, se oferecendo e se retraindo, “segundo a maneira como é apreendida”, Henri-Pierre Jeudy (2005, p.81) sobreleva o desafio e o fascínio deste espaço, uma vez que, ao mesmo tempo em que a cidade se mostra, ela absorve o novo. Assim, mesmo rabiscos, pinturas, fotografias, músicas e pedaços da cidade, aparentemente embalsamados ou trancafiados em estruturas museificantes, ainda que escapem à degradação advinda pelo tempo, irão se transformar a partir de novas interpretações e olhares, sendo afetados também pelos reflexos do seu entorno, movendo-se espelhados na vitrine que os contém.
Referências Bibliográficas:
CAIAFA, Janice. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
FREITAS, Ricardo Ferreira; NACIF, Rafael. (Orgs.). Destinos da cidade: comunicação, arte e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2005.
JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
MAIA, João; KRAAP, Juliana. Comunicação e comunidade: novas perspectivas das sociabilidades urbanas. In : FREITAS, Ricardo Ferreira; NACIF, Rafael. (Orgs.). Destinos da cidade: comunicação, arte e cultura. Rio de Janeiro : EdUERJ, 2005.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 53, p. 11-23, jan.jun. 2007.
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.