Roberto Vilela | Novembro 2019

Dia desses eu estava no metrô, indo da Tijuca para o Centro da cidade, quando ouvi duas pessoas conversando sobre aonde passariam o réveillon 2020.Entre idas e vindas no papo, uma disse a outra que ano passado havia passado o ano novo em Nova Iorque e que estranhara muito o fato de não ter praia.Neste momento, e tomada por certo espanto, a outra interlocutora disse que não se lembrava a última vez que havia passado o réveillon em um lugar que não tivesse praia. Pra muitas pessoas a vivência deste festejo na praia é algo tão natural que nem se dão mais conta disso.                                                                                                                                                                    Se estendermos o nosso raciocínio perceberemos que praticamente todos os rituais que praticamos na passagem de ano estão ligados à praia: pular sete ondinhas, jogar flores brancas ao mar e fazer pedidos, usar roupas brancas, acender velas na areia… São práticas que realizamos sem, na maior parte dos casos, pensarmos a origem disso. Hobsbawm em “A invenção das tradições” é pródigo em nos mostrar que não há tradição natural, tudo é fruto de construções culturais, políticas e sociais. Mas provavelmente a dupla que conversava no metrô sobre réveillon só se deu conta da centralidade da praia nessa comemoração, em nossa cultura, porque a outra levantou um contraponto, desnaturalizou aquilo que para nós é quase natural.

O leitor pode estar se perguntando: “Tudo bem, mas então de onde vem esse costume no Brasil, e, sobretudo no Rio de Janeiro, de comemorarmos a passagem de ano na praia?” Somos consequentes de uma cultura de encruzilhada, não pelo viés da confluência, mas pelas possibilidades que ali nos são oferecidas. A ritualística do nosso réveillon mescla elementos de diferentes origens, que se ultrapassam de inúmeras maneiras e convergem no mar. Este, não é o fim, mas o feixe de onde (novamente) partem uma série de crenças e imaginários. É a encruzilhada da encruzilhada. Para que entendamos tal percurso faz-se necessário voltarmos na história ao Brasil colônia e Império, principal reduto escravagista do empreendimento colonial lusitano, que tinha na cidade do Rio de Janeiro o seu mais movimentado porto. O cais do Valongo não nos deixa mentir. A cidade que em 1808 foi elevada a capital do Império, desde aquela época possuía grande efervescência cultural. Por aqui havia índios, portugueses, franceses, espanhóis e africanos do Senegal a Angola, passando por Benin, Nigéria, Congo… Um verdadeiro sarapatel!

Mas em meio a essa multiplicidade havia um Estado teocrático, cerceador e violento que, embasado por um forte discurso religioso, tentava homogeneizar e “pacificar” a sociedade. Em meados do século XIX a principal comemoração popular que havia na cidade era a Festa do Divino, no Campo de Santana, organizada pela Irmandade de Sant’anna. Ali, se os ritos católicos davam o tom à festa na Igreja, ao seu redor, no Campo de Santana, havia de tudo: ciganas jogando baralho, barracas de bebidas, jogos de azar, batuques de pretos aos orixás e toda uma sorte de atividades que marcavam, ao mesmo tempo, além de uma disputa com a diocese, a “terreirização” de uma série de atividades levavam o sagrado e o profano a se besuntarem o tempo inteiro.

É neste contexto que as religiões afro-brasileiras vão tomando forma ao estabeleceram uma relação entre o culto aos orixás e iabás 1 com os santos católicos. O chamado sincretismo religioso brasileiro é, antes de qualquer coisa, de base africana. Prova maior disso é o candomblé, religião que se formou no Brasil, mais precisamente no estado da Bahia, como uma mescla de cultos africanos. Dissemos acima que os escravos que chegavam ao Brasil eram de diferentes origens na África. Nesse sentido a única coisa que os unia era o culto aos orixás e às iabás. Ocorre que, dependendo da sua nação (jeje, ketu, nagô, ijexá, banto, efon…), a ritualística destes cultos era totalmente diferente. O candomblé, então, foi a saída que esses escravos encontraram para não deixar suas tradições morrerem, unindo-as. São as “artes de fazer”, segundo Michel de Certeau. É óbvio que existem diferenças quando nos referimos aos “cultos de nação”, apenas procuramos salientar que a origem do candomblé passa por uma lógica da reinvenção do sagrado no precário. A umbanda idem, mas neste caso, além do culto aos orixás, a religião de umbanda (e suas diversas vertentes) mistura: catolicismo, kardecismo e cultos ameríndios como o catimbó. Seria uma espécie de “sarapatel” arriado numa encruzilhada.

A essa altura, se você está indagando: “Esse texto começou falando de réveillon,praia, tradições e agora descambou pra essa coisa de candomblé e umbanda. Que papo de macumbeiro?!” Não se espante, mas se tens por hábito passar o réveillon na praia, vestir-se de branco, jogar flores ao mar fazendo pedidos, pular sete ondinhas, acender velas na areia… Me desculpe, mas realizas práticas “macumbísticas” sem saber! Deixando a brincadeira de lado, e iniciando a tessitura de uma resposta às indagações propostas no começo do texto, no que diz respeito à nossa ritualística quando da passagem de ano, tudo converge aos cultos à Iemanjá. Há múltiplos arquétipos relacionados a tal iabá nos ritos de nação, suas representações estão ligadas, de uma forma geral, à ideia da genitora-mor, mãe de todos os orixás. Daí a ideia de recomeço, de possibilitar o novo. Esta seria uma de suas ligações com o réveillon. E o porquê do
mar, ou da praia? Pois, se na cultura africana cada orixá/iabá representa uma força da natureza, Iemanjá é justamente aquela ligada ao mar e às confluências de águas entre rios e oceanos. Como diz um dos cânticos de umbanda mais tradicionais de louvação à Iemanjá:

É no mar, é no mar, é no mar.

Onde mora aieieu. (2x)

Coroa maior, coroa

maior. Aieieu, odociaba. (2x)

Mas há diferenças com relação ao sincretismo desta iabá com as santas católicas. No candomblé baiano Iemanjá é sincretizada com Nossa Senhora do Navegantes, cujo dia santo é 2 de fevereiro. Já na umbanda carioca tal santa não é tão cultuada como em Salvador, daí o sincretismo de Iemanjá com Nossa Senhora da Glória, cujo dia de louvação é 15 de agosto. Isso também se deve ao fato da antiga praia do Russel, que existia aos pés do Outeiro da Glória, ter sido um dos primeiros cenários de ritos à Iemanjá na capital do Império, ainda no século XIX. Tal região, próxima ao finado Morro do Castelo, assim como a Praça Mauá, eram redutos de moradia de muitos negros alforriados. Pós-abolição esse contingente aumentou ainda mais.

Mas voltando ao sincretismo, muito se comenta a respeito, como se esse tivesse sido uma saída encontrada pelos escravos para continuarem louvando seus orixás e iabás, fugindo ao julgo da Igreja. É verdade. Mas também é verdade que, sobretudo na cultura banto, existia uma forte tendência ressignificadora e antropofágica. Ou seja, tudo era assimilado, digerido e vivificado segundo suas tradições. Com o catolicismo não seria diferente. Salientamos isso justamente para fugir um pouco a um discurso do senso comum, que coloca a cultura africana numa posição excessivamente passiva perante a dominação católica. Não estamos negando a opressão que efetivamente houve, só queremos ressalvar que o sincretismo não vem somente daí. Assim, destacamos que Iemanjá também pode ser sincretizada, dependendo da tradição candomblecista ou umbandista, com a Virgem Maria, Nossa Senhora das Graças e Nossa Senhora da Piedade.

Falando especificamente da festividade de ano novo no Rio de Janeiro, o grande impulso para a ligação entre Iemanjá e o réveillon, deu-se através do pai de santo Tancredo da Silva Pinto, mais conhecido como Tata Tancredo. Foi ele que em 1950 fundou a Federação Umbandista de Cultos Afro-Brasileiros para resistir à perseguição que a umbanda sofria. Sobretudo da polícia que, valia-se da lei de contravenções penais de 1941 para reprimir tais religiões. Foi com o intuito de aumentar a visibilidade da umbanda para fugir ao preconceito e à intolerância religiosa que Tata Tancredo,valendo-se de sua notoriedade, inclusive como figura influente no mundo do samba, passou a fomentar os cultos à Iemanjá nas praias cariocas (notadamente em Copacabana) na noite de réveillon.

Nos anos 1950 Copacabana já era um bairro solidificado na cartografia carioca,e simbolizava o que de mais luxuoso e sofisticado havia à época. Assim, os umbandistas que realizavam seus cultos a Iemanjá na enseada do Flamengo, da Glória e em algumas praias que ainda existiam na região central, atendendo ao chamado de Tata Tancredo, começam a “terreirizar” a “princesinha do mar” que, pouco a pouco, vai incorporando à sua crença, além do terço e da homilia, o galhinho de arruda, o alguidar, os atabaques, charuto e até marafo!

Na edição de 2 de janeiro de 1952, o jornal O Globo narra tais ritos com reservas e indaga se não seriam um caso de polícia, visto que a grande quantidade de velas acesas poderia ocasionar graves incêndios. Julgamos perspicaz e elegante a postura do jornal, para condenar os cultos à Iemanjá, usando como mote o perigo do fogo, mesmo que na areia e a poucos metros do mar. O fato é que a grande mídia, inicialmente, reagiu mal a essa “invasão” de terreiros de umbanda à Copacabana na noite do dia 31. Mas depois, sobretudo a partir dos anos 1970, quando tais ritos passam a dar o tom às comemorações réveillon, aquilo que era visto como um acinte à ordem e aos bons costumes, passa a ser midiatizado como a “Noite de Iemanjá”, o grande atrativo do ano novo de Copacabana. Ou seja, não há como falar de ano novo no Rio
sem falar das religiões afro-brasileiras. Por algumas décadas o réveillon de Copacabana representou efetivamente a mais forte expressão da “macumbização” cultural do Rio de Janeiro.

No próximo artigo, que será a continuação deste, debateremos o réveillon de Copacabana dos anos 1970 em diante e sua transformação em megaevento. Concomitantemente, discutiremos mais a fundo as leis que criminalizavam as religiões afro-brasileiras. Mas isso ficará para o ano que vem. Que venha 2020!

 

Referências Bibliografias:

BAHIA, Joana. O Rio de Iemanjá: uma cidade e seus rituais. Revista Brasileira de
História das Religiões, ano X n. 30, 2018.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Ed. Vozes. Petrópolis,
2011.

HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições. Ed. Paz e Terra. São Paulo, 2014.

SIMAS, Luiz Antônio e RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das
macumbas. Ed Mórula. Rio de Janeiro, 2019.

Réveillon, praia e macumba