Gabriel Neiva | Outubro 2019

Transporte público é um aspecto central da experiência urbana. Em pesquisa divulgada em outubro de 2019, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que, no Brasil, os gastos do transporte na família brasileira superam os de alimentação.Em 2013, as manifestações de junho no mesmo país eclodiram, tendo como principal bandeira, o preço exorbitante das tarifas de mobilidade.

Antes mesmo da cristalização da problemática contemporânea exposta acima, a questão do deslocamento no espaço público ocupava espaço dentro do imaginário urbano. Lewis Mumford (1998), ao analisar a construção da infraestrutura do Império Romano que se calcava na formação de artérias engenhosas de estradas e canais de saneamento, descreveu a percepção da vivência naqueles arredores, tornando tal rede de mobilidade como uma espécie de “necrópole”. Por sua vez, no monumental “Projeto das Passagens”, Walter Benjamin (2006) posicionou os trajetos das galerias da cidade do Paris em fins do século XIX como ponto nevrálgico de sua narrativa sobre a massificação do consumo na modernidade industrial.

Neste mesmo contexto do boom das grandes metrópoles, Ben Singer (2001) aponta a concomitância entre o transporte público, o cinema e os subsequentes efeitos sobre a subjetividade dos habitantes das novas urbes. Já no Brasil, mais especificamente o Rio de Janeiro do começo do século XX vivendo a época do projeto da Belle Époque, que emulava a reforma parisiense realizada décadas atrás, produziu cronistas e contistas como João do Rio, Machado de Assis, Lima Barreto e Martins Pena que posicionavam o bonde como personagem recorrente das suas narrativas.

Nas décadas posteriores, o transporte público passa a ser representado no panteão da música nacional. Assim, é o samba quem principalmente registra a relação da população com o bonde, meio hegemônico durante tais anos. Não por acaso, durante a década de 1930, Noel Rosa faz menção a este em “Coisas Nossas”, “Por causa de hora”e “Você por exemplo”. Posteriormente, Odette Amaral foi a voz da marchinha vencedora do carnaval carioca de 1937, “Não pago o bonde”. O samba “O bonde de São Januário”, composto por Wilson Batista e Ataulfo Alves e popularizado pela interpretação de Cyro Sampaio, tornou-se não só a mais célebre representação dos bondes no samba, e consequentemente na música nacional, quanto do projeto trabalhista evocado pelo getulismo em tempos de Estado Novo :

Quem trabalha é que tem razão

Eu digo e não tenho medo de errar

O Bonde São Januário

Leva mais um operário

Sou eu que vou trabalhar

Posteriormente, canções como “Trem Azul” e “Trem de doido”, ambas inclusas no clássico “Clube da Esquina 1” conectaram o imaginário dos trens no interior de Minas Gerais a uma subjetividade nostálgica. Já “Trem das sete”, de Raul Seixas” também mobiliza, a partir do trem, fragmentos da sua infância na Bahia rural. Num sentido marcadamente urbano, a composição “Trem das Onze”, composta por Adoniran Barbosa e tornada clássico pelo conjunto Demônios da Garoa em 1964, plasmou tanto o gênero de samba de breque paulistano quanto um fragmento da modernidade então experienciada na cidade.

Enquanto isso, canções como “O ônibus” (Amado Batista) e “Deus é Brasileiro”(Terra Samba) descreveram cenas de aperto e dificuldades em coletivos lotados. Em1997, o conjunto Virguloides teve um sucesso nas paradas de rádios com “Bagulho no Bumba”, descrevendo, de maneira cômica, o imbróglio em torno de um cigarro de maconha (“bagulho”) em ônibus de linha (“bumba”). Na década anterior, Ultraje a Rigor, outra banda de rock também com verve humorística, mobilizou o imaginário dos ônibus nas grandes cidades em “Ponto de Ônibus” e “Nós vamos invadir sua praia”.Conforme Arthur Dapieve (1996) nota, esta última, lançada em 1985, concatenava achegada das bandas paulistas ao cenário do rock nacional com os episódios de aberturadas linhas de ônibus que conectavam parte da Zona Norte às áreas da orla da Zona Sul,autorizada pelo então governador Leonel Brizola. Tal medida causou horror à parte da população dos bairros do Leblon e Ipanema.

Diante de tais contribuições, defende-se aqui principalmente que o hip hop e punk produziram as mais contundentes contribuições a essa temática. Ambas nascidas em fins da década de 1970, tornaram-se expressões contundentes das crises urbanas que pipocaram ao redor do globo. E, em suas feições brasileiras, também operavam a partir de novas configurações e de movimentos sociais dentro das nossas grandes metrópoles.Em 2019, há um grande número de conjuntos e bandas relevantes espalhadas pelo país(principalmente no rap, que tornou uma espécie de “cultura jovem hegemônica (?)), mas é preciso reconhecer a centralidade das contribuições localizadas na periferia da maior cidade da América do Sul, São Paulo.

Por sua vez, o registro do punk no Brasil comumente abordou temáticos de cunho urbano e ligado às chamadas questões sociais. Em relação ao nosso assunto mais premente, mais recentemente, a banda ATOX, oriunda do bairro de Oswaldo Cruz,subúrbio da zona norte do Rio de Janeiro, lançou em 2016 a canção “Transporte Público”. De maneira bastante direta, repete-se um verso que acompanha a música em seus (quase) dois minutos: “Transporte público deveria ser de graça”. Entretanto,conforme dito acima, são principalmente as bandas de São Paulo as que produziram críticas mais incisivas às mazelas sociais. Neste sentido, a primeira geração do punk  paulista, em periodizada entre fins da década de 1970 e começo de 1980, produziu bandas, em sua maioria da periferia da zona metropolitana, como AI-5, Olho Seco,Restos de Nada, Ratos de Porão, Lixo mania, Inocentes, entre outros, que abordavam temáticas acerca dessas problemáticas urbanas.

Dentre tais grupos, destaca-se o Cólera, criado em 1979. Capitaneado pelo vocalista e guitarrista “Redson” Pozzi 4 , esta banda tem como marca em sua discografia, para além das rápidas guitarras e estética tipicamente underground, a discussão sobre as ramificações da desigualdade social. Assim, o álbum “Pela paz em todo mundo”,lançado em 1986, é a magnus opus para compreender esta abordagem. A faixa título e“Vivo na cidade” abordam o cataclismo ambiental sob a égide da desigualdade urbana.“Não fome” e “Alternar” concatenam o absurdo da desigualdade alimentar e o desemprego em São Paulo. Já “Direitos Humanos”, conforme explicitado no próprio título da música, defende a importância desta cartilha diante da miséria imputada a prostituição e às crianças moradoras de rua.

Diante de tantos tópicos abordados no álbum “Pela paz em todo mundo”, o Cólera decide dedicar uma canção especificamente à questão dos efeitos do transporte públicos obre a população periférica de São Paulo. Em “Somos vivos”, os instrumentos frenéticos anunciam, criando uma sonoridade análoga a uma furadeira de parede, a violência desse cotidiano coletivo. De forma bastante direita, a letra de “Redson”enuncia a luta diária pela sanidade mental e o receio por um certo atomismo social emmeio à volta para casa:

Sempre, sempre suicido meu orgulho pessoal

Por que a gente nunca sabe

Se sabemos pra valer.

Quando pego o trem subúrbio

Caio dentro do Real

Cada um é um universo

Face a face com você!

A história do hip hop nacional também se defronta com constantes questões sociais.Neste sentido, é imperativo reconhecer o quanto as temáticas abordadas pelo punk,também são contemplados pelos artistas deste gênero. Nota-se, de forma mais marcante,não só a reivindicação da posição do negro em nossa sociedade, como também toda ramificação das chagas abertas da nossa escravidão. Assim, a questão de transporte público também é indício de uma segregação socio-racial do país; como (quase) via de regra no Brasil urbano contemporâneo, as populações negras e periféricas sofrem com a distância entre trabalho e casa e com o degradante estado da infraestrutura de mobilidade.

Não por acaso, em duas das suas clássicas músicas no álbum “Sobrevivendo no inferno” de 1997, Racionais Mcs citam o fluxo de transporte como parte de um cotidiano massacrante da capital paulista. Em “Diário de um Detento”, em meio a reconstrução da narrativa do massacre da Carandiru, descreve-se “mais um metrô vai passar”, com “gente de bem” passando, alheia a condição degradante de uma parcela da população de detentos. Já “Tô ouvindo alguém me chamar” o jovem protagonista da canção, atrelado a uma vida do crime, “prestou vestibular no buzão (gíria para “ônibus”).

Em “175, Nada especial” de 1993, Gabriel, o Pensador descreve uma viagem pela rota da extinta linha de ônibus 175 (Barra da Tijuca-Central) no Rio de Janeiro.Diversos acontecimentos refletem um estado de precariedade do transporte público como metonímia das mazelas da cidade; assim, há uma tentativa de assalto no ônibus,um ex professor admirado pelo O Pensador, pula a roleta por falta de recursos financeiros, alagamentos e engarrafamentos assolam a cidade e, pela janela, o protagonista da canção observa dois moradores de rua disputarem os restos mortais de um cachorro.

Algumas décadas depois, em 2011, Projota lançou a canção “Rap do ônibus”. Nesta narrativa, o rapper descreve, de maneira pungente, a dificuldade do cotidiano do transporte público na grande metrópole de São Paulo. Há, aqui, principalmente, o relato do castigo corporal que o caminho para o trabalho exige de uma população que tem muitos obstáculos até chegar ao trabalho:

Proteja nossos corpos e nos mantenha de pé

Que eu possa entrar e sair vivo de um metrô na Sé

(……….)

Ô, cobrador, deixa os menino passar

Vou sofrer uma hora e meia e ainda tenho que pagar

Libera ae, porque tá caro pra caralho.

Entretanto, é o trabalho de Rincon Sapiência que se configura como o mais recorrente e complexo registro sobre a temática do transporte público dentro do hip hop nacional. Logo em 2013, ano das grandes manifestações, catalisadas a princípio pela insatisfação com os preços das passagens, lança o single Transporte Público. Em certo sentido, a canção segue uma narrativa próxima às músicas de Gabriel, o Pensador e Projota aqui citadas, concentrando-se principalmente na denúncia dos maus tratados aos usuários de transporte de áreas periféricas e com maior realce às desigualdades econômicas e sociais que engendram tal sistema:

Busão lotado eu vi, se pendura e vai embora

Vai cair quem não segura, ninguém quer ficar de fora

Inimigo das horas, atrasos, atalhos

Perifa vive longe do seu local de trabalho

Trabalhador se arrisca, se não vacilo cisca

O lucro se transfere na mão de quem confisca

Quem depende de longos itinerários

Se perde no horário, o sistema é precário

Em 2017, Rincon Sapiência lança o seu primeiro álbum, Galanga Livre. Nesta obra,o rapper constrói uma intricada narrativa musical sobre a experiência da negritude na sociedade brasileira, do período da escravidão até os dias atuais. Encaixa-se desde o relato da fuga de um sujeito escravizado, “Crime Bárbaro” até a denúncia da extrema miséria nos dias de hoje, “Ostentação à pobreza”. Por outro lado, produz-se canções como “A coisa tá preta”, “Ponta de Lança” e “Meu bloco” que afirmam a positividade da experiência negra no Brasil, alinhado com uma certa história do discurso do movimento negro, que entende a disputa da narrativa de descrição étnica, como aspecto central de militância.

Dentre tais espaços, Rincon retorna na canção “A volta para casa” à temática abordada em “Transporte público”. Assim, de forma mais intrincada, aborda-se mais uma vez os efeitos deletérios da infraestrutura precária de mobilidade principal mentes obre a população negra e de baixa renda. Como parte do fio narrativo de “Galanga Livre”, narra-se a rotina de dois personagens, uma mulher e jovem adulto negro, no seu cotidiano diário de transporte. Em certo sentido, dentro das canções aqui abordadas,“Volta para casa” arquiteta, com sensibilidade, a experiência dessa “classe trabalhadora cansada daquele longo trajeto de ir e vir”. Seleciona-se abaixo o trecho que Rincon produziu do dia a dia, sob a ótica feminina:

Trabalhadora voltando pra casa

Perguntando pra Deus: “Por que não tenho asas?”

Pra voar pelos ares e voltar para o lar

A real, ônibus cheio dói só de pensar

Na bolsa um livro novo, não tem condição Leitura na multidão, frustração

Nove horas o trabalho é bem mais suave

Que as duas horas balançando na condução

O dia inteiro dando duro

Uma volta cansativa, ainda desce bem no ponto mais escuro

A violência subindo de nível

Do receio da solidão a sensação da mulher é horrível

Ela caminha, semblante preocupado 

Escuridão, o bar da rua se encontra fechado

Quanto vale uma vida? Pensa no seu pivete

Na bolsa tem a Bíblia, também tem canivete

Faça o bem que o bem vai te merecer

Mas ela sabe que o pior pode acontecer

Na madrugada pelo bairro impera o sono

Holofote quebrado, matagal, abandono Se ela atrasa, seu dinheiro será descontado

E a firma, ao menos, oferece o ônibus freta do

E a sua mente, quente, como brasa

Só vai relaxar quando entrar dentro de casa

Tendo em vista o nosso precário modelo de transporte público e a insistência numa malha rodoviária defasada, acredita-se que ainda teremos muitas canções que abordaram tal temática. Nesse sentido, compreende-se aqui que a história da representação da música sobre a mobilidade urbana apresenta uma importante chave de compreensão para a própria experiência das grandes metrópoles brasileiras.

 

Referências bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

DAPIEVE, Arthur. Brock: o rock brasileiro dos anos 80. Rio de Janeiro: Editora34, 1996.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político cultural da amefrinidade, in: RevistaTempo Brasileiro, n. 92/93. Rio de Janeiro: 1988.

GUERREIRO RAMOS, Alberto. O negro desde dentro, in: Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995

MATOS, Claudia. Acertei no milhar: samba e malandragem nos tempos de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular,in: CHARNEY, Leo & SCHWARZ, Vanessa (org). Cinema e invenção da vida moderna. São Paulo: Cosaf Naify, 2001.

Referências discográficas:

ATOX. Transporte público. Single digital. Gravadora Independente, 2016.

CÓLERA. Pela paz em todo mundo. LP/CD/Digital. Ataque Frontal, 1986.

CYRO MONTEIRO. Mestre do samba. CD. BMG/Universal, 2004.

MILTON NASCIMENTO E LÔ BORGES. Clube da esquina 1. LP/CD/DigitalEMI/ODEON, 1972.

NOEL ROSA. Noel Rosa pela primeira vez. CD/Digital. Universal Music, 2000.

RACIONAIS MCS. Sobrevivendo no inferno. CD/Digital. Cosa Nostra, 1997.

RATOS DE PORÃO. Crucificados pelo sistema. LP/CD/Digital. Devil Discos, 1984.

RINCON SAPIÊNCIA. Transporte público. Single digital. Gravadora Independente,2013.

RINCON SAPIÊNCIA. Galanga Livre. CD/Digital. Boia Fria Produções, 2017.

VIRGULOIDES. Virguloides?. CD. Warner/Excelentes discos, 1997.

Música e transporte público: fragmentos de uma história urbana