Tetê Mattos | Outubro 2019

Na contemporaneidade, o mundo das marcas se faz cada vez mais presente. Gilles Lipovetsky e Jean Serroy analisam o fenômeno da lógica expansionista da marca nas sociedades pós-industriais, caracterizada pela internacionalização e pelo desencadeamento e progressão rápida das marcas. Para os autores, “as grandes marcas não se contentam mais em implantar o seu logotipo em todo o planeta: elas se empenham em cercar novos domínios, até então não submetidos à sua ação, em empurrar para cada vez mais longe os limites de seu campo de legitimidade” (LIPOVETSKY; SERROY; 2011, p. 94).

 As marcas são capazes de transmitir [evocar] valores, qualidades, provocar emoções, estimular associações mentais, em suma, são ativos simbólicos. Strunck afirma:

A marca é um nome normalmente representado por um desenho (logotipo e/ou símbolo), que, com o tempo, devido às experiências reais ou virtuais, objetivas ou subjetivas que vamos relacionando a ela, passa a ter um valor específico. Quando nos referimos a marcas quase sempre nos lembramos de empresas, seus produtos ou serviços, mas elas são igualmente importantes para designar religiões, partidos políticos, instituições, clubes esportivos e até pessoas (Pelé, Xuxa etc.), além de uma infinidade de outras atividades humanas” (STRUNCK, 2007, p.18.).

 A marca simboliza algo. Ela tem valores tangíveis – logotipo, símbolo, comunicação – e valores intangíveis – experimentação, reputação, crença, confiança e história (op. cit, ). No caso dos festivais de cinema, um grande desafio conceitual  é manter a constante identificação do espectador com os atributos presumidos do evento. No caso dos festivais internacionais de cinema, a marca deve ser identificada num contexto competitivo e global. A Palma de Ouro do Festival de Cannes, o Tyger do Festival de Rotterdam, o Leão de Ouro de Veneza, o Urso de Berlim são marcas reconhecidas numa esfera global e identificadas com o prestígio desses eventos. 

No caso do Festival do Rio, a marca, criada por Jair de Souza, que figura entre os mais renomados artistas gráficos brasileiros, possui uma grande força de reconhecimento. O designer, que havia criado a marca do Rio Cine Festival, a partir da fusão dos dois eventos – Rio Cine e MostraRIO –, foi trazido pela equipe do CIMA, uma das organizadoras do evento para a criação da marca do Festival do Rio na sua primeira edição, em 1999. 

Jean-François Lyotard, em “Paradoxo sobre o artista gráfico”, afirma que um grande desafio do artista gráfico é criar um objeto [ou marca] que represente de forma fiel a coisa que promove, fiel à sua mensagem e ao seu espírito. Ao mesmo tempo, algo que dê prazer ao olhar, que seja belo, que seja agradável. O artista gráfico é um intérprete porque interpreta coisas (instituições, exposições, festivais, peças de teatro) (LYOTARD, 1996). 

No caso do Festival do Rio, um grande desafio do designer foi buscar uma marca que pudesse representar com originalidade uma cidade tão icônica como o Rio de Janeiro, com símbolos muito marcantes. Além de representar o Rio, a marca também deveria pensar a cidade relacionada a uma outra mensagem: o cinema. Para fugir do comum e do óbvio, Jair de Souza iniciou o seu processo de criação buscando escapar dos ícones do cinema e dos ícones do Rio de Janeiro.

Em entrevista realizada em dezembro de 2017, Jair de Souza nos conta que inicialmente apresentou três propostas de marca que evitavam o Rio de Janeiro como protagonista e trabalhavam mais na conexão das mídias. As propostas não agradaram à direção do Festival do Rio, e assim o artista se viu “encurralado” entre o “prazer e a aflição”, até que surgiu a ideia de uma imagem que se assemelhava à uma máscara, ou à um pássaro. 

Essa situação relatada por Jair de Souza exemplifica bem o que Lyotard chamou de “paradoxo do artista gráfico”. Para Lyotard, a arte do artista gráfico sofre coerções na medida em que ela tem que propor algo para além de sua própria obra. Ela deve induzir a outra coisa (o festival de cinema), além do prazer de sua beleza. É uma arte que está subordinada ao evento. Para Lyotard:

O objeto do artista gráfico deve intrigar. Intrigando, talvez ele satisfaça todas as coerções de uma só vez. O que é belo detém o olhar, freia o deslocamento permanente do campo pelo olhar (o que a visão comum faz), o pensamento clarividente faz uma pausa, e essa suspensão é a marca do prazer estético. Isso se chama contemplar” (LYOTARD, 1996, p. 40).

E foi com o foco da criação na visualidade, buscando uma síntese com muita potência, “simplificando o conteúdo ao máximo e com extrema pertinência”, que Jair de Souza chegou à eficiente e fortíssima marca do Festival do Rio.

Marca do Festival do Rio, 1999

Fonte: Catálogo do Festival do Rio 1999. Rio de Janeiro, p.1

Os elementos institucionais que constituem uma identidade visual de marca, segundo Gilberto Strunck (2007), são divididos em dois grupos. Os principais são compostos pelo logotipo, que se refere-se à particularização da escrita do nome, e pelo símbolo, que se refere ao sinal gráfico que identifica um nome, uma ideia, um produto, um serviço. O símbolo pode ser abstrato ou figurativo. Os elementos secundários são as cores padrão, e o alfabeto padrão, que se refere à escolha da tipografia de letras e suas possibilidades (negrito, itálico, caixa alta etc.).

O símbolo da marca do Festival do Rio desperta uma série de informações, experiências e múltiplas leituras. Podemos imaginar uma marca-pássaro, uma marca- óculos, uma marca-máscara. Jair de Souza fala da máscara no sentido de uma janela, uma moldura, um enquadramento, e através dela vemos as imagens. A forma do traço remete à silhueta do Pão de Açúcar e do Morro da Urca, simbolizando por meio da paisagem natural a cidade do Rio de Janeiro. Jair de Souza explica a dificuldade que foi criar uma simetria da marca diante de uma forma tão assimétrica:

A máscara tem que parecer simétrica. A coisa mais complexa do mundo é fazer uma simetria de ângulos totalmente diferentes. De um lado ele tem uma coisa e de outro lado ele é menor. E aí eu passei praticamente um mês olhando as curvas e desenhando, e desenhando, e desenhando, e desenhando, e desenhando, até conseguir fazer a simetria. Não existia nenhuma regra física, geométrica, de desenho que pudesse dar aquela simetria. Ela é puramente visual, puramente um equilibro (Entrevista concedida a Tetê Mattos em 15 dez. 2017.)

A partir dessa simetria ficamos tentados a fazer uma leitura da marca do Festival do Rio: uma cidade desigual, assimétrica mas que quer ser vista como igual, democrática, simétrica. Uma cidade que se destaca pelas belezas de sua geografia: a cidade cenário.

Em relação ao logotipo, a maneira como “Festival do Rio” é escrito, a sua posição diante do símbolo, o tipo e o corpo das letras também fazem parte de interpretações do artista gráfico e são expressivas de significações. Elas determinam o sentido informacional da comunicação. Em 2015, quando Jair de Souza retornou ao Festival do Rio para criar a identidade visual daquele ano, aproveitou a oportunidade e mudou a fonte tipográfica da marca. Além de uma pequena mexida na assimetria do símbolo (praticamente imperceptível a olhos leigos), ele optou por uma fonte que, no seu juízo e interpretação, era “mais contemporânea, mais carioca, mais solta”.

Marca do Festival do Rio, 2015

Fonte: Catálogo do Festival do Rio 2015. Rio de Janeiro, p.1

A força da marca do Festival do Rio é caracterizada por inúmeros atributos: primeiro podemos afirmar que o conceito da marca criado por Jair de Souza é compatível com “a coisa” que ela representa – o Festival do Rio; em segundo lugar, as suas características óticas são perfeitas sendo de fácil legibilidade; outro aspecto é que a marca possui originalidade e personalidade; observa-se ainda que, criada em 1999, a marca se mostra contemporânea, sobrevivendo às inúmeras transformações pelas quais passou o audiovisual; além disso, ela tem pregnância, pois é de fácil memorização; a marca também possui uma internacionalidade, podendo ser lida/compreendida em diversos idiomas (a palavra “festival” tem a mesma grafia em diversas línguas); e, por fim, o seu uso é de fácil aplicação em outras peças gráficas se pensarmos em termos de processo de reprodução e de custos.  O fato é que a marca do Festival do Rio provoca uma relação afetiva na cidade.

 

Referências Bibliográficas:

LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. A cultura-mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

LYOTARD, Jean-François. “Paradoxos do artista gráfico”. In: Moralidades pós-modernas. Campinas: Papirus, 1996.

MATTOS, Tetê. O Festival do Rio e as configurações da cidade do Rio de Janeiro. 2018.Tese (Doutorado em Comunicação) Programa de Pós Graduação em Comunicação, Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

STRUNCK, Gilberto Luiz. Como criar identidades visuais para marcas de sucesso. Rio de Janeiro: Editora Rio Books, 2007.

 

A marca do Festival do Rio