Por Jorgiana Brennand | Outubro 2019

Os brechós vêm se tornando o novo templo do consumo. E não apenas para quem é adepto da moda sustentável ou busca mercadorias mais baratas do que aquelas comercializadas em lojas. Cada vez mais pessoas – com os mais diferentes perfis e interesses –  incluem os brechós na lista das opções de compras. 

Muitos consumidores buscam a mistura do ontem com o hoje, por meio da ressignificação de peças antigas que passam a ser incorporadas ao guarda-roupa contemporâneo. Outros, principalmente os mais jovens, procuram artigos vintage como forma de reforçar a singularidade de suas personalidades. Há ainda os nostálgicos, curiosos para entender o passado a partir do que está exposto e amontoado em prateleiras e araras.

Mas, poucos estão ali em busca de peças, atraídos apenas por suas histórias. Dificilmente alguém visitará um brechó interessado em memórias por trás das roupas: de onde vieram, como chegaram até ali, as dores e histórias que carregam em torno das manchas de suor – resistentes à higienização – ou dos vincos no cotovelo da velha jaqueta de couro, por exemplo. 

Nunca me deparei com um consumidor ávido pelas memórias que uma roupa traz. Antes de virar desapego, quanto tempo o vestido de festa ficou pendurado no armário? Como diria Peter Stallybrass, em seu mais famoso livro “O casaco de Marx”, as roupas apresentam dois aspectos quase contraditórios associados a sua materialidade: “sua capacidade para ser permeada e transformada tanto por quem a faz quanto por quem a veste; e sua capacidade para durar ao longo do tempo” (2016, p. 17).

 Se as peças duram, acumulam memórias principalmente se pertenceram a pessoas que já partiram. Durante um período, segundo o autor, viram objetos de apego, quase substitutas para tais ausências e perdas, pois carregam individualidades e, mesmo depois da morte dessas pessoas, retêm cheiros, suores e marcas que prolongam, de certa forma, a existência dos que já partiram. É como se as roupas participassem “das rupturas de nossas vidas, moldando-as” (STALLYBRASS, 2016, p. 23).

Entrar em um brechó é saber que muitas mercadorias expostas trazem essas afetividades e lembranças. Muitas peças estão ali e foram trazidas por filhos que perderam seus pais ou pelo fato de as mercadorias já estarem há muito tempo passando de geração para geração e é chegado o momento de incorporar outras memórias e passar a contar a história de outras pessoas. 

Sempre que visito um brechó, uma feira ou um bazar, atenho-me principalmente às roupas. Costumo procurar marcas do tempo (um botão faltando, um forro descosturado, uma mancha ou um cheiro) com o intuito de descobrir um pouco mais sobre suas histórias. Obviamente que as roupas são conservadas e permanecem praticamente intactas à ação do tempo. O que muda são os corpos que as habitaram e passarão a vesti-las. 

Cabides repletos de histórias, dores e afetividades (blog.sebrae-sc.com.br)

É difícil imaginar que aquela saia pendurada que remete aos anos 1950, considerada por muitos como a década que nunca acaba, acumula dores e chegou até ali depois de muita dúvida de seus antigos donos. Nem sempre é fácil se desvencilhar do passado materializado nas peças que abarrotam armários. Esse processo se torna ainda mais doloroso quando a decisão envolve peças de pessoas próximas que já partiram. 

Como se desfazer do velho vestido preto de estrelas azuis usado para fazer os tradicionais biscoitos de Natal? Olhando atentamente ainda é possível observar a mancha de água sanitária e o pequeno rasgo feito por uma faca que escorregou enquanto se retirava o excesso da massa. O vestido continua ali conservado e alimentando lembranças distantes da infância. Às vezes, as cenas não estão vivas na memória, mas basta ver a roupa para que as imagens voltem à mente. É difícil dar outro destino ao vestido de estrelas que não seja o armário recheado de lembranças da mãe que partiu há menos de um ano: 

A mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe: recebe nossos cheiros, nosso suor, até mesmo, nossa forma. E quando nossos pais, nossos amigos, nossos amantes morrem, as roupas ficam ali, em seus armários, retendo seus gestos, ao mesmo tempo confortantes e aterradores – os vivos sendo tocados pelos mortos (STALLYBRASS, 2016, p. 14).

Dessa forma, é praticamente impossível abrir mão de tantas memórias que se materializam por meio de uma peça de roupa, que se for vestida novamente reacenderá tais afetividades. Ou inventará novas, caso seja habitada por um corpo que desconhece tais memórias.

Muitos acreditam na energia que elas carregam e, que necessita ser renovada. As memórias vão permanecer, mas as peças precisam circular para incorporar outras energias. Por isso, muitas pessoas acabam doando tais roupas para que sejam trocadas e adquiridas por outros indivíduos. 

Pode parecer estranho, mas tal gesto pode ser interpretado como uma forma de retribuição pelos presentes recebidos pelos entes que partiram. De acordo com Mauss (2001), referenciando alguns costumes polinésios, não existe apenas a obrigação de retribuir os presentes recebidos. Existem ainda duas outras obrigações: de dar, de um lado e de receber, do outro. Ao  ceder as peças para outras pessoas, permite-se expandir, de alguma forma, o legado que não ficará limitado a armários abarrotados de roupas.

Em uma sociedade, essas trocas são necessárias, pois ajudam a estabelecer e a manter redes de relações sociais (MAUSS, 2001). Ainda de acordo com o autor, não existem simples trocas de produtos, pois todas as trocas estão invariavelmente imersas em relações sociais. E todos nós necessitamos dessas relações para sobreviver. 

Pensando bem, o velho vestido preto de estrelas azuis ficará bem no corpo de outra mãe, que, quem sabe, também o vestirá para fazer os famosos biscoitos de Natal da infância daquela filha que perdeu a mãe há menos de um ano. 

Referências Bibliográficas

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão de troca nas sociedades arcaicas. Lisboa: Edições 70, 2001.

STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupa, memória e dor. 5 ed. Belo Horizonte (MG): editora Autêntica, 2016.

Memórias e afetividades em torno das roupas de brechós