Por Gabriel Neiva | Junho 2019

As discussões sobre as milícias cariocas tornaram-se ordem do dia dos noticiários locais e nacionais nos últimos anos. Conforme artigo da Folha em São Paulo¹, entre 2014 e 2019 as organizações paramilitares no Rio de Janeiro cresceram oitenta e sete por cento. Esse aumento tem sido anabolizado, como estudado por Ignacio Cano e Thais Duarte (2012), desde os primeiros anos da década de 2000.

Por outro lado, tal fenômeno pode ser traçado a partir do final dos anos 1960, período de aumento da repressão da ditadura militar e consequente recrudescimento da violência urbana no Rio. Autores como Michel Misse (2008) e José Claudio Souza Alves (2003) situam a gênese das milícias contemporâneas neste mesmo período, tendo como organização pivô, a Scuderie Le Cocq. Fundada em 1965, em homenagem a um policial morto em uma ação na Favela do Esqueleto (aonde situa atualmente parte da UERJ), esta ganhou força com a nomeação dos chamados “doze homens de ouro” em 1969 pelo então secretário de segurança estadual Luís França, cujo intuito era de “limpar a cidade da bandidagem”.

A Scuderie Le Cocq tornou-se o mais proeminente grupo de extermínio no Rio de Janeiro, atuando em (quase) toda a região metropolitana do estado. As práticas do grupo comumente extropolam a legalidade atribuídas a agentes públicos de segurança, reunindo assim, durante as décadas de 1960 e 1970, denúncias de assassinatos por encomenda, tortura, envolvimento com “jogo do bicho” e ligação com assaltos à mão armada.  Mesmo assim, parte da imprensa parecia estar enamorada com a atuação do grupo; talvez o caso mais emblemático seja o envolvimento de David Nasser, renomado jornalista do Cruzeiro e Manchete, que se tornou presidente de honra do Le Cocq e, ao morrer em 1980, teve a bandeira estendida da organização no seu enterro.

Por outro lado, setores do jornalista investigativo da cidade começaram a produzir matérias que expunham as transgressões do grupo paramilitar.  Mesmo diante do aparelho repressor ditatorial, profissionais como Percival de Souza, Carlos Heitor Cony, Aguinaldo Silva e José Louzeiro se destacaram ao destrinchar o esquema criminoso de alguns membros da Scuderie Le Cocq. Esse último, ao coletar o depoimento do assaltante Lúcio Flávio, famoso por assaltos mirabolantes na cidade no começo da década de 70, destrinchou a ação de policiais corruptos do esquadrão. Seu principal alvo foram os crimes do investigador Mariel Mariscot, um dos “homens de ouro” da polícia militar, elevado a status de “galã” e “celebridade” pela imprensa “marrom”. Tal depoimento levou à prisão de Mariscot, sua expulsão da Le Cocq e uma execução misteriosa em 1981, enquanto cumpria período de “prisão albergue”.

Diante desse quadro, a produção do cinema nacional se mobilizou em representar essas ações. Filmes como “O amuleto de Ogum” (Nelson Pereira dos Santos, 1974) e “Crueldade Mortal” (Luiz Paulino dos Santos, 1976) apresentam os grupos de extermínio como pano de fundo de suas narrativas. Porém, são os filmes inspirados por reportagens da crônica jornalística investigativa aqui já citada os que abordaram de forma mais incisiva a problemática das forças paramilitares. Inspirado pelo livro de José Louzeiro, “Lúcio Flávio, passageiro da agonia” (Hector Babenco, 1976) narra os dias finais do famoso assaltante, tendo como clímax a denúncia aos policiais ligados a Scuderie Le Cocq e sua subsequente prisão. O desfecho do personagem principal (Reginaldo Faria, em atuação primorosa) é interconectado com a revelação das ações assassinas e ilegais do detective Dr. Moretti (Paulo César Pereio). Para além da semelhança do sobrenome, este último apresenta trejeitos e trajetória semelhante aos de Mariel Mariscot. A película angariou cerca de cinco milhões de espectadores nos cinemas (DA SILVA NETO 2002: 472) e consolidou Babenco como diretor de renome.

Outro filme que aborda o cenário das forças paramilitares na década de 1970 é “República dos assassinos” (Miguel Faria Jr, 1979). Inspirado por um romance colhido a partir das crônicas policiais do (então) jornalista Aguinaldo Silva, representa-se aqui o cenário da ação do Esquadrão da Morte no Rio de Janeiro. O personagem principal Mateus Ribeiro (interpretado por Tarcísio Meira) interpreta uma figura similar a Mariel Mariscott; trata-se de um policial corrupto, genocida e faminto pelos holofotes da imprensa. A adaptação de Faria Jr. estende o universo atrelado ao Esquadrão e da violência carioca setentista através dos seus personagens; eis o repórter Clemente, com trejeitos próximo a de David Nasser (Ítalo Rossi), a atriz Marlene das Graças (Sandra Brea), inspirada por Darlene Glória, que teve um filho e foi casada com Mariel Mariscott e um jornalista Jarbas Teixeira (Camilo Bevilaqua), cuja atuação remete aos achados do próprio Aguinaldo Silva.

Um aspecto diferenciador de “República dos Assassinos” reside na figura de Eloína (Anselmo Vasconcellos, em atuação irreparável). A travesti, artista da cena underground carioca, acaba por desvelar na trama, através da morte do seu companheiro (Tonico Pereira), os caminhos da brutalidade do Esquadrão da Morte. Eloína é fruto da outra face da violência paramilitar, personagem trágico representativa das vítimas silenciosas da repressão ditatorial. Não por acaso, Aguinaldo Silva era também colaborador do jornal Lampião da Esquina, importante registro do universo LGBT setentista. Nesse sentido, a película de Miguel Faria Jr. soube transpor, de forma primorosa, a conexão que Silva transpôs entre os diferentes universos do submundo carioca.

Por outro lado, houve espaço dentro daquele universo fílmico para outra forma de construção. Neste sentido, a película “Eu matei Lúcio Flávio” (Antônio Calmon, 1979) gira em lógica oposta aos registros de Babenco e Faria Jr. Jece Valadão interpreta, de maneira semi biográfica, a figura da Mariel Mariscott. Em tom celebratório, o inspetor ligado ao Esquadrão da Morte é representado como um típico anti herói de filme de ação, destroçando a “bandidagem” e fazendo sexo com muitas mulheres. Tal escolha narrativa não é surpreendente, basta lembrar no livro de memórias de Claudio Guerra,  (2012), ex delegado do DOPS (Departamento da Ordem Política e Social), “Memórias de uma guerra suja”, em que Valadão é descrito como frequentador do Angu do Gomes, ponto de encontro entre militares e simpatizantes/apoiadores do regime. Para além disso, Guerra também relata que o ator “saía em operações” com a Scuderie Le Cocq e parecia ter prazer em ver pessoas assassinadas (GUERRA & NETTO & MEDEIROS 2012: 56). Em tempos mais recentes, alguns críticos tem resgatado a obra de Calmon como um trabalho de “maestria” e “obra prima do cinema policial brasileiro”².

Nas décadas de 1980 e 1990, o imaginário dos esquadrões da morte continuava presente entre os meios de comunicações. Com o crescimento estatístico da violência urbana no estado do Rio de Janeiro, figuras como José Guilherme Godinho, o Sivuca, ganham proeminência midiática. Membro da Scuderie Le Cocq, foi eleito deputado estadual por dois termos (1990 e 1994) e ajudou a popularizar o slogan “Bandido bom é bandido morto”. Posteriormente nesta mesma década, o (então) deputado estadual e futuro presidente Jair Bolsonaro adotaria este mesmo dizer. De maneira concomitante, a escalada da violência urbana e o conflito entre poderes paralelos, abriu modalidade para a sofisticação das forças paramilitares através das milícias a partir dos anos 2000.

 

Referências

ALVES, Souza José Claudio. Dos barões ao extermínio: uma história de violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias: Clio, 2003.

ARAUJO, Inácio. Em horário ingrato, Eu matei Lúcio Flávio exibe maestria, in: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/12/1383490-critica-em-horario-ingrato-eu-matei-lucio-flavio-exibe-maestria.shtml>. Acesso em: 12 de junho de 2019.

CANO, Ignácio & DUARTE, Thais (org). No sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: Heinrich Boll, 2012.

DA SILVA NETO, Antônio Leão. “Lúcio Flávio: passageiro da agonia”, in: Dicionário dos filmes brasileiros. São Paulo: Futuro Mundo Gráfica, 2002.

GUERRA, Claudio & NETTO, Marcelo & MEDEIROS, Rogério. Memórias de uma guerra suja. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.

MISSE, Michel. “Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro”, in: Civitas: Revista de Ciências Sociais. Porto Alegre: PUC RS, 2008.

ORMOND, Andrea. “Biografia entrevista: Antonio Calmon”, in: <http://estranhoencontro.blogspot.com/2012/12/biografia-entrevista-antonio-calmon.html>. Acesso em: 12 de junho de 2019.

Filmes:

“O amuleto de ogum” (Nelson Pereira dos Santos, 1974).

“Crueldade mortal” (Luiz Paulino dos Santos, 1976).

“Lúcio Flávio, passageiro da agonia” (Hector Babenco, 1976).

“Eu matei Lúcio Flávio” (Antônio Calmon, 1979).

“República dos assassinos” (Miguel Faria Jr, 1979).

 

¹Ver artigo da Folha de São Paulo. Acesso em: 11 de junho de 2019.

²Ver a crítica de Inácio Araujo e a entrevista concedida por Antonio Calmon a Andrea Ormond. Acesso em: 12 de junho de 2019.

 

 

Forças paramilitares no Rio de Janeiro, mídia e o cinema nos anos 1970