Por Jorgiana Brennand | Junho 2019

Os subúrbios das grandes cidades ainda são percebidos como áreas afastadas do centro, desprovidas de beleza e de qualquer tipo de assistência. Historicamente o imaginário que se tem do subúrbio diz respeito ao desprestígio social e representa o local dos que não têm acesso à cidade. No Rio de Janeiro não é diferente. As percepções dizem respeito principalmente a lugares que apenas acompanham a linha do trem e são famosos pelo samba ou quando ocupam o noticiário policial. As narrativas reforçam o imaginário de locais violentos ou festivos por causa da música. Nada além disso.

Mas, o subúrbio do Rio é bem diferente do que aparece nesses relatos midiáticos. Trata-se de um local polissêmico, que se descortina à medida em que nos afastamos da Central do Brasil. Realmente acompanha a linha do trem, cujos vagões oferecem um espetáculo à parte devido principalmente à variedade de mercadorias comercializadas: de empadas de carne seca a capas para celulares, além das misturas gastronômicas inusitadas. É comum encontrar a caminho do subúrbio pessoas comendo, por exemplo, pizza com amendoim coberto de chocolate; balas carameladas de coco  com pastel de queijo; pão de queijo com chocolate Hershey’ssssssssss, com o “s” caprichado na fala dos ambulantes que circulam pelos vagões.

O subúrbio é responsável por ações que contribuem para o desenvolvimento não apenas da região, mas da cidade, como um todo. Um exemplo são os bairros Méier, Bonsucesso, Oswaldo Cruz e Madureira, que, devido a certa hierarquia ou atribuição de status, é reconhecida como a “capital do subúrbio”, famosa pelas manifestações artísticas e práticas esportivas no Parque Madureira.

Madureira, coração simbólico da zona norte carioca, é famosa pelo samba, pelo Jongo da Serrinha, pela feijoada da tia Surica, pelas comidas da Feira das Yabás, pela Portela, pela Império Serrano… É verdade que é praticamente impossível falar do bairro deixando de lado o samba. A simbiose entre Portela e Madureira é evidente. É difícil pensar na tia Surica e outras “tias” famosas da Portela sem relacioná-las ao bairro.

Madureira é muito mais. É resistência. É  efervescência cultural nem sempre ligada ao  samba da Portela e da Império Serrano. É exemplo de ocupações criativas do espaço público da rua, como é o caso do viaduto Negrão de Lima, uma das principais vias de acesso do bairro.

Uma evidência disso é o baile Charme, incorporado à lista de patrimônios imateriais da cidade do Rio de Janeiro desde 2013. Realizado semanalmente embaixo do viaduto, o baile mistura ritmos como hip hop, soul, rhythm and blues. Há mais de 25 anos acontece sempre no mesmo local, reunindo cerca de duas mil pessoas a cada edição.

O Baile Charme e o viaduto Negrão de Lima (Fonte: riofilmcommission.com)

O viaduto Negrão de Lima ganha destaque não apenas por causa do Baile Charme, da música e da dança. Ele é famoso também por uma infinidade de vendedores ambulantes que se espalham por quase toda a extensão do viaduto e ainda por uma feira de brechós que acontece semanalmente: a feira das brecholeiras, realizada todo sábado entre 9:00h e 15:00h, que comercializa mercadorias, a partir de R$1,00.

Mas, é muito mais. Trata-se de um dos lugares mais movimentados da cidade. Durante a semana o trânsito é pesado, o movimento de ônibus e vans é intenso e as ruas lotam. Sem falar no famoso e concorrido Mercadão de Madureira, criado em 1914 (FERNANDEZ; SANTOS, 2015), e um dos principais responsáveis pelo crescimento econômico do bairro e ainda hoje, uma referência comercial em Madureira.

Há também os camelôs que dominam as calçadas vendendo praticamente de tudo. De naftalina a antenas de TV para aparelhos que há anos não são comercializados. O camelódromo espalha-se por várias ruas e vielas, transformando-se num verdadeiro “shopping da rua”, concorridíssimo por quem circula pelo bairro. A convivência com o comércio formal é das mais harmônicas. Camelôs e vendedores conversam como velhos conhecidos. Compradores encostam e a conversa flui das mais animadas… às vezes, ninguém compra. Estão ali pelo prazer da conversa jogada fora. É o “estar junto” pelo “estar junto”, apenas pelo prazer da companhia do outro (MAFFESOLI, 2000).

O coração do subúrbio carioca é pulsante e exemplifica o conceito de cidade concreta, visual, táctil, consumida e usada no dia-a-dia (PESAVENTO, 2007). Impõe-se como parte de uma cidade verdadeira e real, bem distante da urbe ideal e enaltecida pelos cartões postais em torno do Rio de Janeiro. A cidade é muito mais do que um “rostinho bonito na multidão” e as paisagens típicas da Zona Sul (Arpoador, praia de Copacabana, Leblon), que aparecem exploradas à exaustão em obras de novelistas como Manoel Carlos.

Os encantos de Madureira pouco aparecem. Uma pena! Afinal, o Rio é a cidade da beleza e do caos que se combinam por meio de uma sobreposição de melodias e harmonias, sons e ruídos, regras e improvisações, além de uma multiplicidade de vozes e olhares. Faz parte da cidade que se comunica “com vozes diversas e todas copresentes: uma cidade narrada por um coro polifônico, no qual vários itinerários musicais ou materiais sonoros se cruzam, se encontram e se fundem” (CANEVACCI, 2004, p: 15).

Madureira e os demais bairros do subúrbio se destacam por essa polifonia e  sobreposição de melodias, que se esbarram no caos das ruas lotadas, na harmonia dos acordes que ecoam na quadra da Portela e nos batuques das panelas em dia de feijoada. Madureira é tudo isso e um pouco mais. É um lugar, como diria Arlindo Cruz, que tem samba até de manhã, uma ginga em cada andar e é cercado de luta, suor, esperança num mundo melhor e cerveja para comemorar. É um lugar cheio de mitos e seres de luz, que fica bem perto de Osvaldo Cruz, Cascadura, Vaz Lobo e Irajá.¹ É, portanto, um lugar incrível, que merece ser experienciado sob todas as formas.

 

Referências

CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da  comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 2004.

FERNANDEZ, Annelise Caetano Fraga; SANTOS, Miriam de Oliveira. Madureira, capital dos subúrbios (1940-1960): carnaval e comércio na produção de uma comunidade imaginada. In:  Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 37, p.11-31, jan/jun. 2015.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. In: Revista Brasileira de História, vol. 27, n. 53, jan/jun. 2007, p: 11-23.

 

¹ Trechos da música “Meu lugar”, composta por Arlindo Cruz, em 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TC3BhhraHgc>. Acesso: 19 jun. 2019.

Os encantos de Madureira que transcendem os batuques do samba