Este texto é a continuação de outro postado anteriormente. Veja aqui.

Por Rafael Nacif | Maio/2019

 

A Indústria Cultural e a Sociedade do Espetáculo

A partir das análises anteriores, partir-se-á, agora, para o entrecruzamento dessas teorias que constituíram um relevante manancial de debates acadêmicos, por meio dos quais pode-se dizer que foram formulados os paradigmas da pós-modernidade. Muito mais do que averiguar se tais teses caducaram frente ao avanço da história, há que se reconhecer que sua compreensão é indispensável na construção de qualquer hipótese relativa à ambiência política da cultura. Se o tempo da indústria cultural ainda vige, se ele se espetacularizou, ou, finalmente, tende para a virtualização, são questões que não se pretende responder prontamente neste artigo. É fato que se passaram mais de sessenta anos desde que Adorno e Horkheimer publicaram seus estudos, e um pouco menos de tempo desde que White, Rosenberg e Eco realizaram revisões críticas notáveis desses postulados, e que, igualmente, pouco mais de cinquenta anos transcorreram desde que Debord denunciou o espetáculo, tendo sido, talvez, menos prestigiado que seus colegas frankfurtianos. Em relação ao tempo histórico, quatro ou cinco décadas podem se tornar insignificantes. No entanto, é sabido que o tempo, no século XX, evoluiu de maneira nunca antes observada na história da civilização. O tempo como convenção, certamente, sofreu drásticas alterações desde 1900, numa velocidade inédita, abstendo-nos do julgamento de valor.

“Dialética do esclarecimento” contendo a teoria da Indústria Cultural foi publicado tendo como principal motivação os totalitarismos (nazista, capitalista e comunista) que geraram a segunda grande guerra. “A sociedade do espetáculo” também se refere aos regimes totalitários, e os trata como uma expressão concentrada da lógica espetacular, reservando ao capitalismo a sua face difusa. O totalitarismo é um fato histórico comum a ambas teorias. Num espectro mais abrangente, a segunda grande guerra pode ser considerada a fonte histórica comum a frankfurtianos e a Debord, posto que maio de 68, cujos extremistas se inspiraram na sociedade do espetáculo, não pode ser desvinculado da guerra fria, decorrente da bipartição do mundo em áreas de influência após o término do referido conflito mundial. Tanto Adorno e Horkheimer quanto Debord fazem uma crítica da lógica industrial da modernidade (do capitalismo e do comunismo) e denunciam todo o prejuízo advindo desta prática hegemônica. O materialismo histórico marxista é, portanto, o fundamento filosófico comum às teses da indústria cultural e do espetáculo.

A dialética do esclarecimento é uma causa direta da espetacularização do mundo. A degenerescência da racionalidade em técnica de objetivação da natureza e do próprio homem é a expressão de uma renúncia newtoniana da realidade. A abstinência da produção artesanal, a transição da manufatura para a maquinofatura, a eliminação do contato direto do homem com o produto de seu trabalho faz do apetrecho tecnológico a vedete da realização do mundo; o homem atribui um caráter mágico a modificação da realidade proporcionada pela tecnologia que seu pensamento lhe possibilitou desenvolver. A partir da descoberta do fogo, tão bem retratada em “2001: uma odisséia no espaço”, os anteparos entre o homem e suas ações, compreendidas em lato sensu, tem sido cada vez mais incrementados. O homem é ação. A renúncia à ação, logo, à vida, vem sendo cada vez mais sofisticada por tais anteparos. A ação é que passa o tempo. Quando a interferência do homem no mundo real é reduzida a um apertar de botões, quando a sua ação sobre o mundo é reduzida a esse extremo, ele introjeta a repetição desse mesmo gesto como um aprisionamento no tempo, posto que suas três dimensões tendem a ser comprimidas tautologicamente. A saturação desse processo é a morte em vida, a loucura, o entorpecimento. A magia enxergada nos fenômenos da natureza, aquela que o homem pensa ter dominado pelo conhecimento científico, é reeditada na crença patética em invenções-mercadorias. A tecnologia reencanta o mundo. O fascínio burguês pelo consumo de mercadorias com tecnologia avançada é a expressão desse aspecto. Por exemplo, a aquisição de um novo modelo de automóvel que atinge uma velocidade altíssima no menor intervalo de tempo possível, mesmo que ela seja feita por um habitante de uma grande metrópole, cuja legislação, ou congestionamentos, determinam uma velocidade limite bem inferior no perímetro urbano, é signo de status social, implícita aí a detenção das regras do jogo de transgressão das leis pela elite que consome tal produto. A utilidade do avanço tecnológico é completamente ociosa, residindo aí a sua espetacularização. Pode-se dizer o mesmo da família de classe média que acaba de adquirir um forno de microondas e disputa a tapas a leitura do manual de operação do aparelho para ver se consumar diante de si mesmos o mágico preparo de pipoca em poucos minutos, o que se fazia com o girar de uma manivela de alumínio. O tempo e o esforço poupados, a vida que se morreu, são prontamente absorvidos pelo incremento da indústria do lazer e do turismo.

A indústria cultural espetaculariza a arte. O significado que a arte atribui a vida, ao tempo e esforço poupados, é neutralizado por sua industrialização. A redução do significado de uma obra de arte e de sua repercussão na vida a um fetiche intelectualóide, a primazia da imagem da obra sobre a interferência que ela efetua ativamente na realidade, desarticulam todo seu aspecto marginal. Uma evidência seria a sistematização da novidade moderna como uma tradição, o que ela combateu de maneira tão veemente. Se admitirmos a cultura como meio de análise e produção de significados (Geertz, 1978), podemos dizer que sua industrialização incorre na fissão esquizofrênica entre meio de produção do significante, antes, a artesania, agora, a maquinaria, e meio de produção do significado, antes, a razão humana, agora, a racionalidade técnica. O apertar de botões, a repetição radical desse gesto que determina a morte em vida, é metaforizado nos produtos da indústria cultural. O happy end é seu mais óbvio exemplo. A fruição estética que poderia oferecer ao homem a transcendência do espetáculo, recai nele ao se tornar objeto de especulação industrial. O que poderia oferecer ao homem uma alternativa à lógica de produção e consumo, de circulação de mercadorias sucumbiu ao sistema na forma de entretenimento. Toda a vida abandonada na repetição, a vida que se morre na expectativa de vivê-la mais a frente, não poderá ser recuperada nem mesmo fora do trabalho, posto que a diversão que se oferece também repete, também é vida que se morre. Aqui se pode relembrar a catarse aristotélica. O final feliz que se espera para a própria vida é consumado nos produtos da indústria cultural. O espectador se satisfaz, isto é, ele morre em benefício da qualificação da ilusão como realidade.

É fato que a sociedade do espetáculo se institucionalizou através da indústria cultural. A tecnologia em si não é objeto de crítica, nem mesmo se deseja endossar qualquer espécie de escalonamento étnico por nenhum julgamento de valor, posto que a semiologia operacionalizou a relativização nos estudos antropológicos. O uso que se faz dos avanços tecnológicos, o estímulo a sofisticação do consumo é que se questiona. A crítica que se busca fazer aqui está diretamente relacionada a caracterização do espetáculo e da indústria cultural como fatos sociais. O possível maniqueísmo não poderia ser mais adequado na revisão de uma realidade cujo princípio de vivência é determinado pelo automatismo das relações sociais, bem como um incipiente determinismo econômico.

Quanto a vigência da indústria cultural e do espetáculo, talvez algumas adaptações sejam necessárias. Uma delas foi feita pelo próprio Debord nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo, quando efetivou a atualização do pressuposto que determinava dois tipos de espetáculo, o difuso e o concentrado, cada qual cabível as duas orientações econômicas conflitantes, o capitalismo e o socialismo, destacando como determinante da ordem global o imperativo do espetáculo integrado. Enfim, a desrealização do mundo, ao contrário de seu movimento oposto, não deixa opções de relativização. O real pode ser ele mesmo e seu contrário, porém o irreal não pode ser nada além de si mesmo. A existência do homem carece de sentido quando sua projeção atinge uma tal perfeição que passa a ser preferida ao original. O original que só pode surgir da experimentação. A ordem econômica que ocupa o mundo não poderia ter qualquer rival na exemplificação do que foi discutido anteriormente. A cantilena lancinante dos grandes meios de comunicação que naturalizam a realidade tende a transformar o homem em espectador de sua própria vida. É então que a letargia se disfarça de hiperatividade, a vulgarização se enfeita de exclusividade, o tempo se descola do espaço, a vida se degenera em ficção.

 

Algumas visões contemporâneas sobre as indústrias culturais, segundo Pratt

            Para Andrew Pratt, da London School of Economics (LSE), a geografia das indústrias culturais vem ganhando importância a partir dos anos 80 e do desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação e informação. O autor considera as indústrias culturais como sendo filmes, televisão, indústria editorial, música, novas mídias, jogos de computador e animação, publicidade, artes visuais, arquitetura, design, artes performáticas, bibliotecas e museus. Seu objetivo é mapear como a produção cultural é organizada e localizada. Ele desenvolve uma visão geográfico-econômica do campo. Para Pratt, as indústrias culturais são invisíveis ao processo de coleta de dados por serem uma área de estudo recente, em seu artigo de 2007, quase meio século após as teorizações de Adorno e Horkheimer e Debord.

Para o autor, as indústrias culturais são comumente associadas ao consumo e não à análise de sua produção. Há uma ênfase no uso de tecnologia no processo de mudança econômica. As tecnologias não apenas aumentam a eficiência das mídias existentes, mas produzem novas atividades. Ele dá como exemplo o download de música. Antes, a indústria da música organizava a seleção, gravação e distribuição do trabalho do artista, que era remunerado com royalties. Com o advento da tecnologia digital, os artistas podem prescindir das gravadoras e lidar diretamente com os consumidores. Também se pode prescindir do pagamento pelas músicas por meio do download pirata de arquivos em formato mp3. Pratt observa que a indústria de games fatura mais que a antes predominante indústria cinematográfica. Para o autor, as indústrias culturais são dominadas por um pequeno conjunto de cidades no mundo.

Como identificamos anteriormente, o termo indústria cultural é cunhado por Adorno e Horkheimer; para eles, a cultura e o significado desempenhavam um papel essencial no esclarecimento como força emancipatória. As indústrias culturais, segundo Adorno e Horkheimer, removiam esse potencial emancipatório. Nos anos 80, escritores franceses, como Miège, começam a discutir as indústrias culturais. Eles as pluralizavam, contra Adorno e Horkheimer, vendo-as como diversas e diferentes umas das outras. As discussões políticas sobre as indústrias culturais podem ser atribuídas ao trabalho da UNESCO sobre desigualdades comunicacionais.

Em Pratt, inspirados por Miège, Garnham foi influente na adaptação das noções de indústrias culturais para a concepção de políticas culturais em Londres. Aqui, as indústrias culturais foram usadas como meio de mobilização da juventude, e na contribuição para a criação de novos empregos nas cidades desindustrializadas. Em 1997, as indústrias culturais ganharam status de política nacional. Elas foram renomeadas como indústrias criativas, desta forma ligando-as à economia do conhecimento.

Os produtores responderam a uma diminuição no consumo estimulando a compra de diferentes produtos derivados do produto original. Outros autores, segundo Pratt, argumentam que a cultura tem se tornado, cada vez mais, um veículo de transação econômica. Desta maneira, valores culturais são usurpados por valores econômicos, o que para Adorno e Horkheimer, assim como para Debord, significava a perda da aura da obra de arte, para os primeiros, e a primazia do valor de troca sobre o valor de uso, para este último. Nesta interpretação, a produção cultural não é apenas um ofício ou artesania, mas se transformou numa atividade industrial cujo mercado é dominado pelo valor monetário, ou vendas, mais do que o valor intrínseco das obras.

Um exemplo disso, em Pratt, é o processo pelo qual o consumo de música, filmes ou livros é estruturado por rankings (charts) que são divulgados por jornais diários e programas de TV. Na teoria da Escola de Frankfurt, priorizava-se a aura da obra de arte e de cultura. Para os frankfurtianos, a produção massiva levava a um empobrecimento do processo de consumo.

Essa visão, segundo Pratt, levou os governos a subsidiarem a alta cultura, como no caso brasileiro da Lei Rouanet (8.313/91), enquanto a baixa cultura vende-se por si só, sem apoio institucional, pois é viável comercialmente.

Recentemente, as indústrias culturais geraram um debate sobre criatividade. As economias do conhecimento aumentam a produtividade em países desenvolvidos. Nações com alto investimento educacional possuem vantagens competitivas na economia do conhecimento (oposta ao trabalho manual). Para Pratt, as indústrias do conhecimento oferecem novas formas de inovar e criar novos produtos. Entretanto, há que se considerar que todas as indústrias são criativas. A culturalização da produção fez com que muitos concebessem a cultura como um incremento do produto. Pratt identifica, 30 anos depois de Debord, que a cultura é a nova base da economia. As cidades têm usado as atividades culturais para sustentar centros comerciais, parques temáticos e museus. O autor destaca que a cultura vem sendo usada para melhorar a vida das comunidades periféricas, como identifica também George Yúdice em sua tese de Doutoramento intitulada “A conveniência da cultura – usos da cultura na era global” (UFMG, 2004). Os políticos buscam estimular o turismo cultural. Pratt identifica que os clientes desses produtos são geralmente ricos. O autor cita a máxima “ask not what you can do for culture, but what culture can do for you”, isto é, não se pergunte o que você pode fazer pela cultura, mas sim o que a cultura pode fazer por você.

 

Considerações finais

 

            A implementação de corredores culturais como o do Centro do Rio de Janeiro que envolve o Paço Imperial, o Centro Cultural dos Correios, a Casa França-Brasil, e o melhor centro cultural da América Latina, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB/RJ), onde o autor deste artigo trabalhou por duas vezes, demonstram as teses elencadas por Pratt e que atualizam os debates sobre a importância das indústrias criativas no regime da nova economia do conhecimento.

A realização de megaeventos, conforme estudos do Prof. Ricardo Ferreira Freitas, como os jogos Pan-Americanos, a Copa da Confederações, a Jornada Mundial da Juventude, a Copa do Mundo de 2014 e os jogos olímpicos de 2016 do Rio de Janeiro, ajudaram a internacionalizar a centralidade do Rio de Janeiro como pólo emissor de tendências, produtos e fluxos de capital ligados a emergência de novos negócios e ao reordenamento da metrópole segundo padrões internacionais globais.

Cabe questionar se esses eventos foram suficientes para remodelar a paisagem urbana do Rio, que continua conflagrada pela violência urbana originada pelo narcotráfico e pelo abandono das comunidades periféricas. A inclusão do Rio no panorama internacional de eventos globais não foi suficiente para superar as contradições de uma sociedade extremamente marcada pela primazia do valor de troca sobre o valor de uso, ou espetacularização, conforme identificou Debord em 1967, e de uma perda da aura das obras de arte que abandonam seu potencial de promover autonomia e emancipação porque passam a seguir uma lógica de produção industrial, como identificaram Adorno e Horkheimer em “A dialética do esclarecimento”. Prova disso, é a falência do projeto de reconfiguração urbana do Rio de Janeiro, por meio dos investimentos em megaeventos artístico-culturais, bem como as falhas na implementação das UPPs que se tornaram mais um artifício eleitoral do que um ponto de virada para as comunidades atendidas pelo programa. E, finalmente, com o golpe de 2016 que caçou o mandato legítimo da presidenta Dilma Roussef, ficamos à deriva no processo de consolidação das conquistas populares dos programas de governo do Partido do Trabalhadores que se espetacularizaram.

 

REFERÊNCIAS:

ADORNO, T., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

ALMEIDA, Jorge. A promessa de libertação in Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 24/08/97, p. 4.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 2ª ed. rev. atual. — São Paulo: Moderna, 1993.

ASSOUN, Paul-Laurent. A Escola de Frankfurt. São Paulo, Ática, 1991.

BOTTOMORE, Tom. The Frankfurt School. Nova Iorque, Routledge, 1989.

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

JAPPE, Anselm. A arte de desmascarar. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 17/08/97, p. 5.

KURZ, Robert. Até a última gota in Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 24/08/97, p. 5.

LATOUR, Bruno. O coro de queixosos. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 17/08/97, p. 7.

PRATT, Andrew. An economic geography of the cultural industries. Londres, LSE Research Online, 2007.

RANCIÉRE, Jacques. A ferida perene in Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 24/08/97, p. 7.

RIBEIRO, Renato Janine. Feitiçarias do capital. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 17/08/97, p. 6.

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