Por Rafael Nacif | Maio/2019

 

A dialética do esclarecimento

O livro “Dialética do esclarecimento”, de Adorno e Horkheimer, é parte de um projeto de crítica da racionalidade tecnocrática empreendido pelos integrantes da Escola de Frankfurt. Esses pensadores, incluindo Benjamin, Marcuse e Habermas, pretendiam fazer uma crítica da razão instrumental, herdeira do positivismo, característica das sociedades industriais modernas, e recuperar o projeto emancipatório da racionalidade iluminista, extrapolando a abrangência dela para outros fins que não o desenvolvimento técnico-científico a serviço da dominação. Produzido durante a Segunda Guerra Mundial, o livro faz uma crítica contundente das principais questões da época: o nazismo, a ascensão do stalinismo e a face totalitária do capitalismo monopolista, experimentada pelos autores no exílio americano. A linha mestra da análise desses fatos históricos aponta para a necessidade de descobrir “porque a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”.

A necessidade do homem de compreender e transformar o mundo e a si mesmo, sua busca pelo esclarecimento que “tem perseguido sempre livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores” e que dá origem a cultura, encontrou no processo histórico uma transição macroscópica da mitologia à ciência, o desencantamento do mundo. O crer mágico foi sendo “substituído” gradativamente pelo constatar científico, tendo sido o Iluminismo o marco principal dessa transição. A dialética do esclarecimento consiste no desvirtuamento do projeto iluminista pelo engolfamento da razão no modo de produção industrial. Esse modo de produção (a alienação e reificação características dele) tem sua lógica interna derivada para outros domínios do conhecimento humano afora a economia, tornando-se uma lógica cultural, cuja razão correspondente é a radicalização do positivismo. O constatar científico degenera-se em crença como a mitologia que ele busca refutar. A dialética do esclarecimento aí está, a razão que foge do mito recai nele por promover sobre si a crença legitimamente mitológica; ela surge da transição, como meios de alcançar o progresso, da racionalidade científica para o conjunto de técnicas que ela originou. Na perseguição do progresso, no afastamento da natureza e de si mesmo, o homem é dominado pelo deslocamento de atribuições de sua racionalidade para a técnica que ela estruturou.

Os autores recorrem a uma abordagem interdisciplinar para reconstituir esse mecanismo. Referem-se ao episódio em que Ulisses resiste ao canto das sereias. Para atingir tal objetivo, ele tapa os ouvidos dos remadores com cera e obriga-os a remar com toda a força, enquanto ele fica amarrado ao mastro. Ao travar contato com o canto (fruição estética), Ulisses implora para que o desatem, mas de nada adiantam seus protestos, posto que seus companheiros não podem ouvi-lo. “Da mesma forma, a dominação da natureza por intermédio dos homens-senhores pressupõe que o homem degrade o próprio homem a mero objeto da natureza”. Para progredir na viagem, os remadores se sacrificam em benefício de Ulisses, que conhece a natureza do canto, e anseia por libertar-se, por findar a repressão que sua astúcia lhe impingiu. No entanto, não pode fazê-lo. O progresso da civilização, a afirmação da identidade do homem na dominação da natureza incorre na castração dele mesmo e do outro. Os trabalhadores remam, os detentores dos meios de produção subsistem dessa exploração. “Ao tampar o ouvido de seus marinheiros, ao obrigá-los a servir a sua própria “renúncia ao prazer”, ele identifica o sucesso da empreitada racional comum à lei capitalista de dominação.”. O esclarecimento que prometeu a emancipação social trai a sua finalidade.

A teoria crítica encontra no terreno estético a sua prova real: a arte representa concretamente o fenômeno de ambivalência da cultura, ao mesmo tempo reflexo da barbárie que atua na civilização (em virtude do princípio da autoridade) e “promessa de felicidade”, ou transcendência sobre a autoridade. A Indústria Cultural é destacada como mecanismo de neutralização dessa potência subversiva da arte, contaminando-a com a lógica quantitativa do modo de produção industrial, da instrumentalização da racionalidade na dominação da natureza.

“A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode perceber mais outra coisa senão as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho. O pretenso conteúdo não passa de uma fachada desbotada; o que fica gravado é a seqüência automatizada de operações padronizadas. Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio. Eis aí a doença incurável de toda diversão. O prazer acaba por se congelar no aborrecimento, porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de se mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais. O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática — que desmorona na medida em que exige o pensamento — mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada.” Há uma fusão entre cultura e entretenimento, que desabilita a reflexão crítica. A massificação tecnifica a percepção estética, no sentido de reduzí-la a um processo de reconhecimento de padrões industrializados de plasticidade lato sensu. Esse é o modo de operação da Indústria Cultural em linhas gerais.

A Sociedade do Espetáculo

Publicado pela primeira vez em 1967, A sociedade do espetáculo contém uma das principais heranças da Internacional Situacionista (IS), pequena organização formada por sociólogos, artistas de vanguarda e intelectuais de esquerda egressos do desmantelamento do movimento surrealista parisiense e de outras mobilizações artísticas entre 1957 e 1972. A principal conexão do grupo aos fundadores da arte moderna reside no combate a categorização da arte e da cultura como atividades separadas, incorporando-as ao cotidiano. Através de uma publicação que repetia a alcunha do grupo e da criação de novos meios de agitação (quadrinhos, planejamento de escândalos), os situacionistas souberam interpretar os novos conflitos na sociedade da abundância. Uma das práticas instituídas por eles consistia no détournement, uma espécie de estratégia de inversão da lógica estabelecida, da lógica do espetáculo e das relações que ele cria. Por meio desta técnica, os balões de texto dos quadrinhos eram substituídos por slogans revolucionários; inscrições utópicas e aparentemente nonsense; além da alteração de anúncios publicitários. Inspirados pelo jornal libertário Socialisme ou Barbarie e influenciados pelos dadaístas e letristas, os membros da IS redescobriram a história do movimento anarquista, sem, no entanto, terem seguido dogmaticamente seus preceitos. A sociedade do espetáculo foi cultuado pela ala mais extremista do Maio de 68 em Paris; hoje é um clássico da teoria crítica.

Guy Debord, filósofo, agitador social, diretor de cinema e autor do livro, se dizia um doutor em nada. Não tinha formação acadêmica e, mesmo assim, conseguiu dar visibilidade ao seu trabalho. Figura altamente polêmica, foi responsabilizado pelo esvaziamento do situacionismo. Logo depois, foi considerado suspeito do assassinato de seu editor e amigo Gérard Lebovici. Suicidou-se em dezembro de 1994, aos 62 anos. A partir de então, a imprensa francesa, que havia ignorado sua importância, transformou-o em celebridade.

A teoria do espetáculo fundamenta uma crítica das manifestações políticas e sociais dos modos de produção da modernidade. Um dos grandes méritos de Debord, nesse sentido, foi antecipar, em 25 anos, a dissolução do socialismo soviético, denunciando-o como uma expressão inferior da sociedade de consumo. O espetáculo, para Debord, é a visão de mundo que acarreta a primazia do simulacro sobre a realidade. O tema não pode ser considerado dos mais originais, e remonta ao mundo das ideias de Platão, além de estar referido nos trabalhos de Pascal, La Rochefoucauld e La Bruyère, no século 17, tendo seu grande modelo nas cortes reais, em que o rei se exibia à sociedade como um astro sedutor. Outras referências explícitas nos conduzem ao Feuerbach de A essência do cristianismo. O espetáculo, ao contrário do que se pode imaginar à primeira vista, não se reporta simplesmente a uma questão de escala ou ao poder da mídia na determinação das relações sociais; ele mesmo é o caráter assumido por essas relações nas sociedades industriais modernas. O espetáculo é a imagem que toma conta da realidade a ponto de se constituir como tal. O discurso sobre o real, sua representação tem prioridade sobre o vivido. Segundo Debord, “o espetáculo é uma relação social entre pessoas, mediada por imagens (Debord, 1997, p.14)…é uma visão de mundo que se objetivou (Debord, 1997, p. 14)…fabricação concreta da alienação (Debord, 1997, p. 24)…é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem (Debord, 1997, p. 25)…representação ilusória do não vivido” (Debord, 1997, p. 121). O mito da caverna de Platão é um bom exemplo de repercussão da lógica espetacular na vida humana, embora as motivações de Debord guardem diferenças daquelas que inspiraram o filósofo grego. Assim também pode-se dizer da catarse característica do drama trágico grego descrita por Aristóteles na Poética. As referências a esses filósofos têm sua propriedade verificada quanto a convergência dessas teorias na interpretação da oposição realidade X aparência, e da conseqüente evolução desse conflito primordial para a oposição experiência X purgação, respectivamente. Quanto a este último binômio, faz-se necessário destacar o conceito de potência para Nietzsche. A tomada de atitude, a vivência, a exteriorização da potência, a adoção da práxis revolucionária marxista é desprezada em benefício da representação, da catarse, da aparência. Esse é o aspecto do espetáculo denominado separação consumada. A separação consumada é a obnubilação da consciência humana em relação a noção de condição humana, é a renúncia a potência de Nietzsche através da catarse que a imagem espetacular provoca. É a separação do homem de si mesmo e do outro, seguindo a racionalidade técnica constituinte da (in)consciência moderna, especializada, burocratizante e taxionômica. A separação consumada seria a radicalização da alienação marxista. O divórcio do homem de sua condição de produtor de sua História e de si mesmo.

Reconstituindo a explanação do autor, o modelo econômico das sociedades industriais modernas, que tem na burguesia a classe dominante, criou paradigmas específicos que dominaram outras áreas do conhecimento humano. O homem deu tanta prioridade aos princípios econômicos criados por ele que estes passaram a determinar todos os outros princípios consideráveis. Na ânsia de se legitimar como ser racional, qualificação que lhe confere o domínio da natureza, na sua ânsia de sobreviver a ela e dominá-la como legitimação dessa diferenciação, objetivou a si próprio. O modo de produção industrial prescindiu da objetivação do trabalho humano, atribuindo-lhe um valor de troca. Houve a conversão da qualificação em quantificação, propositalmente desproporcional (mais-valia) em benefício da acumulação, pedra fundamental da lógica mercantil. A qualidade, esfera humana, degenerada em quantidade, esfera material, equipara o indivíduo a mercadoria. Esta pode ser distinguida quanto a seu valor de uso, que está relacionada a aplicação instrumental de um objeto, refere-se a seu aspecto qualitativo, e quanto a seu valor de troca, que é a soma de unidades monetárias necessárias para sua aquisição, refere-se a quantidade. A sociedade do espetáculo é a sociedade da mediação imagética, é a sociedade da preponderância da quantidade sobre a qualidade. O valor de troca é favorecido em detrimento do valor de uso. O incremento do valor de troca está intimamente relacionado com o conceito de fetichismo da mercadoria (Marx), que representa a contrapartida da objetivação do homem, diametralmente compensada pela personificação das mercadorias. A mercadoria como espetáculo, o fetichismo da mercadoria é produto da transição da fase de acumulação do capitalismo para a fase de abundância, na qual ao proletariado é estendida a socialização pelo consumo. O crescente volume de excedentes exigiu a expansão do mercado consumidor. Nesse ponto do livro, Debord reconstitui a história da civilização como a história dos meios de produção, desde a economia de subsistência até o industrialismo do pós-guerra (materialismo histórico marxista).

Componente de todo esse processo, é a noção de tempo espetacular. Segundo o próprio Debord, o tempo espetacular seria a “abstração do tempo irreversível” (Debord, 1997, p. 103). Admitindo a noção de progresso explícita nessa concepção, o tempo espetacular é a institucionalização da perda de tempo, considerando a renúncia à experiência da realidade (separação consumada) no decorrer dessa variável. O homem moderno vive em função do tempo que perdeu, da percepção do tarde demais, da incapacidade de distanciamento crítico em relação a contemporaneidade. A privação que o espetáculo lhe impõe na experimentação do mundo e de si mesmo, pela reificação que permeia as relações humanas, culmina na angustiante e tautológica exclamação “Tarde demais!”. O tempo espetacular é, portanto, a dominação do passado sobre o presente. A inversão entre sujeito e predicado funciona como uma estratégia de confirmação do destino, da sina. As circunstâncias da vida, como no mito e nas tradições mágicas e religiosas, determinam a repercussão do homem sobre o mundo.

O autor não avança além disso na análise de sua obra, isto é, não faz uma crítica de suas teses originais, apenas cita eventos recentes que as confirmam. Entretanto, vários intelectuais têm ressalvas a fazer sobre suas concepções. Partindo do programa da IS, diz-se que embora houvesse por parte dos situacionistas uma recusa de discípulos e lideranças, os integrantes do movimento se mantiveram como um grupo de vanguarda elitista que lidava com as divergências internas pela exclusão de minorias dissonantes. Essa ingerência pode ser parcialmente compreendida pela preocupação extrema com a coerência entre teoria e prática. Outra crítica considera que os situacionistas tomaram um boom econômico temporário do pós-guerra na França como um padrão permanente nas sociedades capitalistas. Segundo Peter Marshall, “a crença do grupo na abundância econômica parece agora severamente otimista; não somente a subprodução como também o subconsumo persistem nas sociedades industriais avançadas.” Blissett chama Debord de Cassandra, referindo-se ao mérito de ter previsto a derrocada do socialismo no Leste Europeu. Quanto aos Conselhos de Proletários defendidos como forma de organização mais eficaz contra o espetáculo, Blissett acusa Debord e seus correligionários de nunca terem efetivado tal proposta, criando uma poética fossilizada do rancor. No artigo Karl Marx da era Beatles, escrito por Marcelo Rezende e publicado no Caderno Mais! da Folha de São Paulo (17/08/97) Finkielkraut declara sua opinião de que há algo de paranóico no pensamento de Debord, como se ele acreditasse numa grande conspiração contra a vida. O sociólogo francês Bruno Latour tem severas reservas aos partidários das teses debordianas. Ele questiona: “Aqueles que tecem louvores tão tardios a ele não explicam o que poderia se opor à sociedade do espetáculo, nem de que outra sociedade ela teria esvaziado o conteúdo. Trata-se de sociedades do passado, nas quais se vivia, simplesmente, existências plenas e autênticas, sem nenhuma manipulação ou representação?”. Indaga também se “sua campanha contra a degenerescência não oculta o velho ódio às massas (entendidas muito erroneamente, como multidões semelhantes a rebanhos), e se, nas queixas lancinantes que fazem da industrialização, da uniformização e da vulgaridade, não é, pelo contrário, a multiplicidade de vozes incontroláveis que mais os choca (…) Como as pessoas da mídia gostariam de possuir todo o poder maligno que lhes é atribuído por seus críticos!”. Aqui, cabe lembrar os apocalípticos e integrados.

 

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Esclarecimento, sociedade do espetáculo e indústrias criativas (parte 1)