Por Ana Teresa Gotardo | Março/2019

O sincretismo das linguagens sonora e imagética no audiovisual, especialmente no cinema documental, foi por muito tempo pouco explorado (SBABO, 2017), ou objeto de uma crítica cotidiana que ignorava ou até mesmo não compreendia a materialidade sonora do cinema (CARVALHO, 2007).

Nos últimos anos, no entanto, há um emergente interesse acadêmico pelo campo (MIRANDA, 2016; COSTA, 2013), especialmente no que diz respeito a estudos que contemplem a materialidade da música (e da trilha sonora, de forma mais ampla), na construção de sentidos no audiovisual, compreendendo imagem e som como elementos integrantes do mesmo valor, e não como se o som fosse apenas um acessório da imagem.

Sbabo (2017) salienta que a sincronização de sons e imagens é capaz de gerar diversos efeitos de sentidos nos espectadores, levando-os a estados passionais, e que sua compreensão no contexto do audiovisual é essencial para a análise mais completa da produção de sentidos, entendendo que não deve haver uma hegemonia da visualidade. Carvalho (2007, p.2) destaca que “a trilha sonora […] participa da articulação e da organização da narrativa cinematográfica compondo um elemento de sua montagem. E desse modo, a percepção fílmica é ‘áudio (verbo) visual’ e permite numerosas combinações entre sons e imagens visuais”. Nesse mesmo sentido, Born (2013) aborda o crescimento dos estudos do som nas ciências humanas e sociais como parte de uma “crítica à visualidade” que visa contestar a produção do conhecimento baseada na hegemonia do visual, em textos e em modelos representacionais com uma metodologia que propõe “ouvir a cultura” como forma de compreender essa cultura de forma mais profunda, e traçando elos entre som e espaço.

Embora a autora traga esse viés antropológico para seus estudos, é possível fazer uma relação entre seu trabalho e o estudo do audiovisual. Se considerarmos, como diz Born, que a música é uma forma de mediação social, do som e do espaço, “seja na perspectiva de sua capacidade de engendrar modos de ser público e privado, sua constituição de formas de subjetividade e personalidade, sua ressonância afetiva ou sua incorporação na dinâmica capitalista de mercantilização e reificação” (BORN, 2013, p.7), podemos considerar que ela também o é no audiovisual, quando atua na produção sentidos sobre essas questões.

Tal como Vila (2014), entendo que o processo de construção de identidades é discursivo, considerando que o discurso “é toda prática que carrega e confere significado” e que “as práticas musicais (e, em geral, quaisquer práticas culturais) também são consideradas discursos com capacidades identitárias precisas” (VILA, 2014, p.18). As músicas que compõem a trilha sonora de produtos audiovisuais também atuam no processo de construção de sentidos e, assim, também possuem função narrativa e discursiva, com uma particularidade importante: sua grande capacidade interpelatória, “porque ela[s] trabalha[m] com experiências emocionais intensas, experiências que são muito mais poderosas que aquelas produzidas por outros artefatos culturais” (VILA, 2014, p.22).

Na articulação desses pensamentos com a ideia de materialização das identidades pela música e desta como mediadora (BORN, 2011), é necessário observar que a música, (1) embora não tenha essência material, possui materialidade (e talvez, poderíamos dizer, se “materialize”, de certa forma, com certa intenção, nas imagens do audiovisual); e (2) a mediação da música se dá bilateralmente nas relações sujeito-objeto, na medida em que condiciona e gera subjetividades e sociabilidades humanas, mas também é construída discursivamente e nas práticas sociais.

A questão torna-se ainda mais central quando a música serve como fio condutor na narrativa (ao menos de parte dela). Músicas e imagens possuem uma relação muito estreita em Rio 50 Degrees – Carry on Carioca, exibido e reprisado pelo programa Imagine da rede britânica BBC entre maio de 2014 e setembro de 2016, antes da Copa do Mundo e após os Jogos Olímpicos. Com 1h45min de duração, o programa faz parte de uma extensa lista de documentários internacionais sobre a cidade produzidos e veiculados por redes de televisão durante o chamado “momento olímpico”, lista esta composta tanto por produtos audiovisuais os quais ratificam as narrativas oficiais quanto aqueles que as deslocam, mostrando faces outras de uma marca-cidade almejada.

Fonte: IMDB

No caso deste produto, especificamente, muitas vezes as imagens parecem ilustrar as canções, como se elas estivessem “dançando ao som da música”, como se a história estivesse sendo contada principalmente pelas canções, as quais também atuam na construção dos imaginários sobre a cidade, tendo ainda a prerrogativa de serem, em sua maioria, músicas brasileiras que narram sobre o Brasil em um documentário estrangeiro, em uma ideia de auto-representação. É o caso da sequência de abertura do programa, ao som de Rio 40 Graus, cujo título também inspira o nome do documentário (mais ao fim, é possível ouvir uma outra versão da música cujo refrão é “Rio 50 graus”). A canção é protagonista, guiando as imagens e construindo imaginários da cidade do Rio de Janeiro como “purgatório da beleza e do caos”, frase emblemática do refrão, ou como “paraíso tropical distópico”, tal como abordado pelo apresentador, em uma estética similar à do videoclipe.

Esse modelo de narrar por meio da música, tal como vemos em Rio 50 Degrees, é uma característica autoral do diretor do documentário, Julien Temple, premiado documentarista diretor de filmes como O lixo e a fúria e Joe Strummer: O futuro está para ser escrito, conhecido por sua história intimamente ligada à produção de filmes documentais sobre músicos, bandas e festivais e também por videoclipes musicais. No audiovisual aqui abordado, Temple narra a história do Rio de Janeiro através das décadas, utilizando a história da música como fio condutor. Segundo entrevista concedida ao Jornal O Globo[1], trata-se de um cineasta que “garimpa sons da cidade” e seu objetivo era apresentar a cidade como “um organismo vivo de cultura”, tendo em vista que a “cidade é um dos centros musicais do mundo”.

Temple explora a música de diversas formas no audiovisual, garantindo a ela um protagonismo por meio das diversas formas de materialização: desde o canto amador (GORBMAN, 2012) até a titulação de seu filme, incluindo ainda a presença de importantes nomes da música brasileira como entrevistados e narradores dos momentos políticos e econômicos explorados por Temple no documentário: Marcelo Yuka, Dado Villa-Lobos, Marcelo D2, Bebel Gilberto, Nelson Motta, dentre outros, trazendo ainda para a composição da narrativa diversas imagens de arquivos que constroem imaginários possíveis do carioca e da cidade. Por meio de contrastes constantes, o diretor mostra os processos de construção dos estereótipos da cidade: Bebel Gilberto, por exemplo, ratifica o imaginário da mulher sensual e praiana enquanto fala sentada sobre uma pedra no Arpoador ao som de uma bossa nova, e imagens de arquivo mostram filmes estrangeiros antigos e videoclipes atuais (o filme musical Flying Down to Rio, com Fred Astaire, e o videoclipe Beautiful, de Snoop Dogg e Pharrell Williams, são dois exemplos), enquanto Marcelo Yuka faz críticas constantes às políticas implantadas na cidade por ocasião dos megaeventos intercaladas com imagens da violência na favela, tanto policial quanto do tráfico.

O documentário Rio 50 Degrees – Carry on Carioca é material fecundo de análise para a compreensão dos deslocamentos na construção dos imaginários da marca Rio e a relação entre som e imagem no audiovisual configura-se como central na problematização, assim como a relação com as imagens de arquivo (que não constituem foco neste texto). Ele ratifica a ideia da música como fundamental na compreensão do audiovisual, no que diz respeito à sua estrutura, à sua experiência e à necessidade de valorização das sonoridades nas análises dos produtos audiovisuais, de forma a romper com a hegemonia do visual.

 

Referências:

BORN, Georgina. Introdution – music, sound and space: transformations of public and private experience. In ______ (ed.). Music, Sound and Space. Transformations on Public and Private Experience. Cambridge: Cambridge University Press, 2013

______. Music and materialization of identities. Journal of Material Culture, Sage, v. 16, n. 4, p. 376-388, 2011.

CARVALHO, Marcia. A trilha sonora do Cinema: proposta para um “ouvir” analítico. Caligrama (São Paulo. Online), [S.l.], v. 3, n. 1, apr. 2007. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/caligrama/article/view/65388/67992>. Acesso em: 28 may 2018.

COSTA, Fernando Morais da. Entrevista concedida a Jéssica Agostinho. Revista Universitária do Audiovisual (RUA), 15 fev. 2013.

MIRANDA, Suzana Reck. A clássica música das telas: O uso e a formação do tradicional estilo sinfônico. C-Legenda – Revista do Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual, [S.l.], v. 1, n. 24, p. 19-28, julho 2011. Disponível em: <http://www.ciberlegenda.uff.br/index.php/revista/article/view/368>. Acesso em: 02 jun. 2018.

SBABO, Alexrandre Provin. Os efeitos de sentido do som no cinema documental e o contrato de veridicção. Doc On-line, n. 22, setembro de 2017, pp. 85-94. Disponível em: <http://ojs.labcom-ifp.ubi.pt/index.php/doc/article/view/146/99>. Acesso em: 28 mai. 2018.

VILA, Pablo. Narrative Identities and Popular Music: Linguistic Discourses and Social Practices. In: ______ (ed.). Music and youth culture in Latin America: identity construction processes from New York to Buenos Aires. New York: Oxford University Press, 2014. p.17-80.

 

[1] Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/julien-temple-cineasta-que-garimpa-sons-da-cidade-6300792. Acesso em 23 mar.2019.

A música no audiovisual e suas narrativas musicais