Por Vânia Fortuna|Março/2019

A construção de museus monumentais, apresentada como “obras de arte” de arquitetos com fama internacional, não só se imprime no processo de musealização das cidades globalizadas como também é peça essencial à “revitalização” de espaços urbanos. Essa lógica transpareceu nos discursos do jornal O Globo a partir de 2010, ano em que o Porto Maravilha começou a se materializar na cidade e na mídia. A ênfase dada às construções do Museu de Arte do Rio (MAR) e, sobretudo, do Museu do Amanhã despontou nas regularidades discursivas do jornal. E não à toa isso aconteceu, visto que os dois museus foram iniciativas da Prefeitura do Rio de Janeiro e da Fundação Roberto Marinho, uma parceria público-privada entre a gestão urbana e o Grupo Globo.

O MAR, tratado pelos discursos como “o primeiro ícone da revitalização da zona portuária”, foi inaugurado em primeiro de março de 2013, data do aniversário da cidade, na Praça Mauá. Próximo a ele encontramos o Museu do Amanhã, inaugurado em dezenove de dezembro de 2015. Erguido no Píer da Praça Mauá, o projeto é do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, conhecido internacionalmente por assinar projetos como a Torre de Montjuic, em Barcelona, a Cidade das Artes e das Ciências, em Valência, e a Gare do Oriente, em Lisboa.

Desde 2010, a maioria das reportagens de O Globo sobre o Porto Maravilha chama atenção para o Museu do Amanhã, apontado como o principal símbolo da “revitalização” da zona portuária. Em dois de novembro de 2011, “Museu do Amanhã, candidato a cartão-postal” intitula a matéria que cobre o lançamento da obra do museu. Detalha-se o projeto arquitetônico, desenvolvido sob o conceito de sustentabilidade, e ressalta-se a singularidade das experiências interativas que propõe ao visitante, como pensar a vida do homem nos próximos cinquenta anos e o futuro do planeta.

Na cerimônia de lançamento da obra, o prefeito Eduardo Paes disse que espera que o
– O museu é a joia da coroa do projeto de revitalização do Porto. É um ícone que se constrói para o Rio e certamente entrará para o imaginário da cidade, como o Sambódromo, os Arcos da Lapa e o Cristo. (O Globo, 2 de novembro de 2011, p. 14 – grifos nossos)museu se transforme num novo marco arquitetônico do Rio. Paes comparou a estrutura ao Cristo Redentor, aos Arcos da Lapa e ao Sambódromo:

O Museu do Amanhã aparece como uma obra monumental, uma “obra de arte”, que simboliza o “futuro grandioso” da cidade. Estamos diante de mais uma característica das cidades que seguem uma padronização espacial global: a construção de museus espetaculares. Passeando pela Praça Mauá, transfigurada pelo Porto Maravilha, moradores da cidade e turistas se deparam com as mesmas âncoras arquitetônicas de outros centros históricos “revitalizados” mundo afora. Patrimônios arquitetônicos restaurados, centros culturais, aquário marinho e museus. Tal observação nos remete à clonagem das cidades em Jeudy (2005), que faz uma analogia da reprodução de Veneza em cidades turísticas internacionais com a padronização estética promovida pela política urbana neoliberal.

Ao visitar Veneza, Jeudy (2005) observa uma cidade cuja “restauração jamais cometeu qualquer traição, ela permaneceu discreta, consistindo em manter em estado razoável o que está lá, mesmo corroído pelas águas do mar” (JEUDY, 2005, p. 150). Descrever Veneza, a delicadeza do patrimônio que revela o passar do tempo, alguns moradores e suas relações com a cidade, leva o autor a confrontar tais singularidades com a reprodução de Veneza em Las Vegas, um cenário belo e asséptico montado para turistas. E lamenta: “Veneza da China, Veneza da Bélgica, Veneza de Poitou…” (JEUDY, 2005, p. 151).

Ao fazer uma análise da patrimonialização e estetização urbanas promovidas por uma gestão urbana global, Jeudy (2005) questiona a representação simbólica das cidades contemporâneas. Num primeiro momento, pontua que as diferentes possibilidades de leitura das cidades, as diferentes apropriações artísticas, se desdobram na percepção crítica da transformação das cidades em museu de si mesmas, especialmente quando concebidas sob a lógica de um modelo homogeneizador que visa investimentos e turistas internacionais. Isto aponta para um processo de museificação constante tributário à “revitalização” de zonas portuárias e centros históricos degradados.

A reportagem de O Globo enquadra simbolicamente o museu como cartão-postal. Tal enquadramento, no entanto, tende a apagar tudo aquilo que lhe soa estranho. Tomemos como exemplo a capa de O Globo em 28 de outubro de 2015. Há uma foto de meninos mergulhando, da então recém-inaugurada Praça Mauá, na Baía de Guanabara. Ao fundo, o Museu do Amanhã. A legenda da foto anuncia: “Desordem no novo cartão-postal”.

 

Da recém-reformada Praça Mauá, meninos mergulham nas águas poluídas da Baía de Guanabara. O novo cartão-postal carioca guarda velhos problemas. Flanelinhas controlam os estacionamentos no entorno, tomado por moradores de rua. Visitantes cobram mais segurança e sinalização contra riscos de acidentes. (O Globo, 28 de outubro de 2015, p. 1)

 

A reportagem é um exemplo expressivo do que o jornal compreende por cartão-postal: uma cidade ordenada pela redução dos sentidos da sua polissemia. Aborda-se o mergulho dos meninos pelo viés da preocupação com a integridade física deles, uma vez que a Baía de Guanabara é poluída e a brincadeira perigosa. Mas na medida em que essa prática do espaço faz parte de uma reportagem sobre desordem urbana, esses meninos também são apresentados como sujeitos naturais dessa desordem.

Os meninos mergulhando na Baía de Guanabara indicam que a cidade é abusada e desafia as representações que se constroem sobre ela. Tudo isso nos faz pensar sobre os vários Rios que habitam o Rio, e que tentam ser contidos por discursos legitimadores de um projeto de cidade. São Rios contrastantes obliterados pelas falas ordenadoras que constroem o imaginário de cidade maravilhosa. Discursos que se esforçam para transformar as várias cidades que coexistem em uma só, porque revelar uma cidade que está em conflito o tempo todo não serve à lógica da cidade-mercadoria.

A matéria “Como será o amanhã”, de cinco de outubro de 2014, aborda a construção do museu, imprimindo sua importância para se pensar o futuro da humanidade.

 

Os contornos da construção sustentável e de arquitetura arrojada do Museu do Amanhã, uma das âncoras culturais do projeto Porto Maravilha, já começam a aparecer quando se lança o olhar por trás das grades que cercam o canteiro de obras no Píer da Praça Mauá. […] Vizinho de beldades históricas e arquitetônicas, como o Morro da Conceição, o Mosteiro de São Bento e o Museu de Arte do Rio (MAR), e com vista privilegiada da Baía de Guanabara, o museu branco neve leva a assinatura do arquiteto Santiago Calatrava […] O Museu do Amanhã não será apenas um espaço de exposição. Por meio de audiovisuais, instalações interativas e jogos, o visitante poderá examinar o passado, entender as tendências da atualidade e simular futuros possíveis para a humanidade nos próximos 50 anos. (O Globo, 5 de outubro de 2014, p. 42 – grifos nossos)

 

A reportagem enfatiza a singularidade arquitetônica e a possibilidade que o museu traz de revisitar o passado para entender o presente e simular futuros possíveis, estimulando a cidade a reconhecê-lo como um “marco da revitalização”. Para Huyssen (2000), a noção de cidade como signo e imagem serve à valorização simbólica de espaços estéticos para o consumo cultural. Mas o lado negativo dessa política de imagem se revela na concepção da cidade como um signo fechado. A construção de uma “nova” imagem para cidades transformadas em museus se sustenta, em grande medida, no apagamento da memória desses espaços como paraísos de malandros, prostitutas e drogados.

O museu é chamado na reportagem de âncora cultural da cidade, juntamente com o Morro da Conceição, o Mosteiro de São Bento e o Museu de Arte do Rio (MAR). Em diversas reportagens, o Cais do Valongo e os prédios/galpões restaurados e transformados em centros culturais também se destacam como símbolos do Porto Maravilha. A cultura, nesse sentido, se estabelece como operador discursivo na construção da imagem de marca da cidade.

Essas problematizações dão a ver o jornalismo ocupando um papel importante na construção da imagem de marca da cidade, na medida em que observamos nas matérias analisadas o atravessamento de um discurso publicitário que corrobora a gestão urbana. O tratamento dado ao Museu do Amanhã é emblemático dessa lógica, fazendo do jornal um dos principais atores do processo de branding urbano que espetaculariza a memória, a cultura e o próprio espaço zona portuária para vender a cidade ao consumo global.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fontes: O Globo, 02/11/2011, p. 14 (à esquerda); O Globo, 28/10/2015, p. 1 (ao centro), O Globo, 05/10/2014, p. 42 (à direita).

 

Referências:

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades para um mercado global. Chapecó, SC: Argos, 2010.

 

Museu do Amanhã: cultura e cidade como espetáculos de consumo