Por Igor Lacerda  | Janeiro/2019

 

No período olímpico, foram criadas muitas memórias sobre o Rio de Janeiro: cidade global, em ascensão, revitalizada. Suas belezas naturais e sua cultura ganharam destaque, sendo valorizadas também. Em muitos momentos, essas boas lembranças ocuparam o lugar de outras, daquelas tidas como negativas e muito exploradas pelos meios de comunicação: violência, aumento da criminalidade, crise. No cinema, filmes ressaltaram “aquilo que o Rio tem de bom”. Mas também surgiram produções como Olympia, ressaltando uma outra cidade, aquela silenciada pelas ações de marketing que se propunham a atrair negócios e investimentos.

Fonte: AdoroCinema

Neste texto, trazemos uma análise do filme Olympia (2016), dirigido por Rodrigo Mac Niven. É um filme que mistura ficção e documentário, e só pode ser feito graças a um financiamento coletivo: foram 535 patrocinadores e um total de R$ 83.080, com orçamento final de R$ 103.796,25. Ele foi exibido pela primeira vez no dia da abertura dos Jogos Olímpicos (5 de agosto de 2016) fora dos espaços oficiais dos megaeventos, na Praça Marechal Floriano, na Cinelândia, região central da cidade. Ou seja, é um filme que traz ao debate um Rio silenciado pelos grandes meios de comunicação e suas produções: um Rio cinza, cheio de pó e asfalto inacabado, obras abandonadas ou em andamento. A cidade é colorida e solar também, só que olhada das regiões centrais, longe das paisagens de cartão postal, trazendo os corpos desajustados e/ou despreocupados de seus transeuntes.

Olympia começa contando a história de uma cidade rodeada por montanhas e florestas, morada dos chamados Voadores. Essa cidade se chamava Olympia. Os Alados ou Voadores eram como os humanos, só que mais ágeis. Os Pés no Chão eram aqueles que não conseguiam voar, mas eles se organizaram em poderes, partidos e instituições. Construíram muros, exércitos e mantinham a ordem. Os Pés no Chão queriam os voadores na terra, para seguirem suas leis. O confronto entre eles aumentou e aconteceu a lendária Batalha do Sol, onde muitos Alados foram capturados e mortos. Alguns conseguiram fugir para as montanhas mais altas. O grande tribunal decidiu, por lei, que todos os alados teriam suas asas cortadas. Para garantir de vez a ordem, decidiram que seria melhor cortar as asas dos recém-nascidos. Todas as formas de vida voadoras foram eliminadas. A pena, saída das asas, foi banida e logo se transformou em ameaça e crime. Aqueles que ainda preservavam suas asas se encontravam à noite para voar, mas sempre baixo, longe dos olhos do sistema.

Um dia, uma menina chamada Democracia teve uma pena roubada pelo vento da janela do banheiro. A pena cruzou a cidade e caiu na frente da catedral, o principal templo da ordem. Informada pelo sacerdo-papa, a população exigiu a condenação da jovem. Ela foi julgada na praça, e decidiu entregar sua cabeça ao invés de suas asas. E assim o tempo passou, até que a imagem da jovem decapitada virou marca do progresso. O controle e a ordem foram restaurados. A humanidade nunca mais pôde voar.

Fonte: Cinema10

No filme, Olympia é uma cidade com autoridades corruptas que vai ser sede da Olimpíada. Num clima de transformação do espaço urbano para receber o megaevento, o advogado Jean Carlos busca ajuda para denunciar crimes ambientais. O cineasta Rodrigo Mac Niven e a pesquisadora Lia ajudam o advogado na produção de um documentário. Nesse produto audiovisual, os três revelam as ilegalidades nas obras da prefeitura da cidade de Olympia. Todos os três têm uma marca nas costas, como se suas asas tivessem sido cortadas. Essa é a parte de ficção. Olympia também é um documentário. Ele apresenta depoimentos de especialistas e vítimas reais do processo de remoções da Vila Autódromo.

Sobre a Vila Autódromo: quando o Rio de Janeiro foi escolhido para sediar os Jogos Olímpicos, em 2016, o plano da Prefeitura era demolir o antigo autódromo de Jacarepaguá (Zona Oeste) para construir o Parque Olímpico – estrutura para abrigar os atletas durante o evento. O projeto tinha a intenção de realizar obras no entorno e remover completamente a Vila Autódromo, uma comunidade com moradores removidos, em uma outra época. No filme é dito que os moradores da comunidade, junto com técnicos da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criaram um Plano Popular de Urbanização como uma alternativa ao plano do governo municipal para a Vila não ser removida. Nada adiantou. Existia pouco diálogo entre a prefeitura e a população atingida pelas obras. Em Olympia, os entrevistados disseram a remoção da Vila Autódromo seria interessante para as empreiteiras, pois poderiam construir prédios residenciais para a classe média. O espaço revitalizado não seria utilizado por todas as pessoas que viviam nele antes, mas por novos moradores, por aqueles que podiam pagar mais. Seria um negócio mais lucrativo.

Fonte: A Cara do Rio

Olympia dá mais destaque ao centro da cidade. Aparecem cenas da Central do Brasil, do Píer Mauá, a Cidade Nova e as barcas de Niterói com seus trabalhadores. A Zona Sul também é mostrada, mas não tanto quanto a região central. São mostradas as obras não acabadas, enquanto uma voz em off explica que elas tiveram um alto custo, diz que o metrô não chaga até a Barra da Tijuca, como foi prometido, e as escolas estão ocupadas por alunos que desejam mais investimentos na educação.

Vemos, assim, que por mais que as narrativas governamentais e comunicacionais estivessem se esforçando para enquadrar as memórias do “Rio Olímpico”, se empenhando para silenciar temas caros a alguns grupos na tentativa fazê-los esquecer, as pessoas possuíam fortes experiências com a cidade, impossíveis de apagar ou domesticar. E essas lembranças ganharam visibilidade nas ruas e nas redes num momento de crise desse projeto que se propunha a investir numa imagem de cidade global, apta a receber megaeventos, que trazia os encantos do Rio de Janeiro à lembrança e calava seus assombros.

Olympia: a cidade onde nem todos tem um preço