Por Rafael Nacif  | Janeiro/2019

“A pele que habito” é uma história de sexo, paixão e vingança que se desenvolve a partir do suposto estupro sofrido pela filha do cirurgião Robert Ledgard por Vicente. Para vingar-se de Vicente, o cirurgião Robert encarcera Vicente e aplica sobre ele várias cirurgias plásticas que transgenitalizam o personagem, transformando-o em Vera, por quem se apaixona. Este pequeno texto é o excerto de um artigo, resultado de uma pesquisa em andamento sobre a representação da marginalidade no cinema de Almodóvar, no âmbito do Doutorado em Comunicação do PPGCOM da FCS/UERJ. Seu objetivo é analisar “A pele que habito”, do diretor espanhol, com base no conceito de corpos dóceis, de Foucault (1987).

A submissão do corpo é de fato um dos mais eficientes instrumentos de controle social. Observar como o diretor espanhol se utiliza de uma metalinguagem crítica, recorrendo à mitologia de Hollywood, especialmente à estrutura clássica de uma história de amor, e subverte-a, é uma maneira de identificar a persistência de uma “contracultura” global de resistência às representações estigmatizadas de certas minorias.

Fonte: Livraria Cultura

Lançado em 2011, “A pele que habito” tem roteiro baseado no romance Mygale (1995) (publicado posteriormente sob o título Tarántula (2005), de autoria do escritor francês Thierry Jonquet. Trata-se de uma refilmagem de “Les yeux sans visage” de Georges Franjus. Foi o décimo oitavo longa- metragem concebido e dirigido por Pedro Almodóvar, renomado diretor espanhol cuja obra teve início anos antes com “Film político”, lançado em 1974. Reconhecido como um dos mais criativos e polêmicos diretores cinematográficos contemporâneos, Almodóvar apresenta aos espectadores de cinema uma obra baseada fortemente na representação dos desvios humanos. A quase totalidade de seus personagens apresenta algum traço comportamental desviante, dentro do conceito da Sociologia do Desvio, importante segmento desta área de conhecimento, cujos principais autores de referência são Becker, Goffman e Elias. Este aspecto atravessa toda a filmografia do diretor e constitui realmente um tema de seu interesse.

“A pele que habito”, protagonizado por Elena Anaya e Antonio Banderas, conta a história de Robert Ledgard, um famoso cirurgião plástico, que perde a esposa numa tragédia misteriosa. Após tomar conhecimento da tentativa de estupro de Vicente contra sua filha, o cirurgião planeja uma vingança, encarcerando Vicente e o transgenitalizando para transformar em objeto de desejo sexual particular.

Ao dissertar sobre a história das prisões em “Vigiar e punir”, Foucault dedica uma parte do livro à análise das disciplinas. O filósofo cria, então, o conceito de corpos dóceis, partindo do conceito de “homem máquina” de La Mettrie e passando pelo desenvolvimento das técnicas que permitem o controle minucioso do corpo a partir do séc. XVII. Foucault refere-se, inicialmente, ao corpo do soldado como síntese da noção de corpo dócil; as marchas, as manobras, o porte do soldado, compõem uma retórica corporal da honra. Na segunda metade do séc. XVIII, há uma mudança: o soldado torna-se algo que se pode fabricar a partir de uma coerção calculada que molda hábitos autômatos. Para Foucault, “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado ou aperfeiçoado”. O corpo de Vicente demonstra, em “A pele que habito”, uma retórica corporal do desejo, e aí está a sua docilidade, já que a perfeição de suas formas e o seu cultivo demonstram a sujeição a uma ordem de utilidade do corpo sexual para o prazer (hedonismo). O corpo de Vicente aparece na tela como um corpo de um ciborgue transexual, mas sabemos que ele não é senão resultado de um grande esforço de Elena Anaya e da fotografia genial de José Luis Alcaine. O corpo de Vicente transgenitalizado em Vera é uma composição de Almodóvar e de Elena. Seus gestos, sua forma de andar, sua sensualidade, todo e cada movimento é intencional, é dirigido. O corpo de Vicente docilizou-se no corpo de Vera. O corpo de Vera, encarcerado pelo cirurgião Robert, que chega a transar com ele/ela, é um corpo-metáfora. Poderia ser interpretado, num primeiro momento, como um símbolo do tradicional poder do homem de criar e fantasiar sobre as formas femininas nas relações amorosas e sexuais.

Fonte: O Globo

A cultura brasileira está repleta de representantes da transexualidade, a começar pelos travestis que participaram do filme “Divinas Divas” (2017) de Leandra Leal, que mostram como foi o processo de luta para alcançarem reconhecimento como artistas. Nos anos 80, ficou muito famosa Roberta Close, a primeira transexual brasileira a ser representada por órgãos de imprensa como representante do segmento T da sigla LGBTT. Rogéria, travesti falecido recentemente, era um homem que tomava hormônios para assumir uma identidade de gênero oposta à sua identidade genética, a do homem Astolfo Rogério Barroso Pinto. Rogéria se auto-proclamava a travesti da família brasileira e não passou pela cirurgia de transgenitalização. No YouTube, um transexual chamado Amanda, ou Mandy Candy, possui mais de 700.000 inscritos em seu canal de vídeos onde mostra sua vida cotidiana na Coréia do Sul.A transgenitalização é uma prática cirúrgica complexa que inverte o papel sexual desempenhado por uma pessoa e pretende alinhar o sexo psicológico ao sexo biológico, que são produções culturais completamente distintas. Homens podem se transformar em mulheres, e, menos comumente, mulheres podem se transformar em homens. Foi o que aconteceu com a filha da rainha do bumbum Gretchen, Tammy Gretchen, uma linda mulher que se descobriu atraída pelo mesmo sexo e decidiu retirar os seios e tomar hormônios para assumir uma identidade masculina. Os homossexuais não necessariamente são transexuais.

A transgenitalização transforma um pênis em vagina ou vice-versa, com o intuito de alinhar o sexo biológico ao sexo psicológico do indivíduo. Uma transexual de grande expressão na cultura brasileira contemporânea é a modelo Lea T. filha de um jogador de futebol. A novela “A força do querer” da Rede Globo de Televisão tratou do tema.

O ciborgue transexual mostrado por Almodóvar em “A pele que habito” ajuda a desconstruir preconceitos e estigmas associados à transexualidade. O cirurgião Robert Ledgard constrói a partir do corpo masculino de Vicente, a mulher perfeita para seu deleite sexual, Vera, que, ao fim do filme se liberta do cárcere na mansão do cirurgião e volta a encontrar a família apresentando-se como mulher.

Considerando todas essas questões que motivam a prática da transgenitalização, podemos analisar que, em “A pele que habito”, embora, inicialmente, o cirurgião Robert utilize as intervenções cirúrgicas para se vingar de Vicente e puní-lo por um possível estupro, a cirurgia assume o caráter de uma robotização do corpo de Vicente, de sua docilização frankensteiniana em Vera, que viria a substituir a falecida esposa do cirurgião. Com o desenrolar da história, aquele ritual de transgenitalização ganha fortes contornos eróticos, à primeira vista, e metafóricos numa análise um pouco mais atenta. A transgenitalização nosremete a vários aspectos, então, sendo eles:

  1. docilização do corpo de Vicente;
  2. jogo de poder entre homem e mulher;
  3. jogo erótico entre criador e criatura;
  4. o cuidado na transgenitalização, por meio do uso de técnicas corporais (Mauss) específicas que docilizam (Foucault) o corpo de Vicente no corpo de Vera (Elena Anaya).
  5. o ato de transgenitalização como um ato de amor.
Fonte: Universo dos Leitores

Podemos inferir que em “A pele que habito”, Almodóvar objetiva na transgenitalização de Vicente demonstrar a fluidez existente entre as diferentes identidades de gênero e como o ser humano dispõe de ferramentas e técnicas para alterar essas identidades biologicamente dadas a partir da identificação da genitália de um recém-nascido, que o inscreve no domínio masculino ou feminino para o resto da vida. Robert Ledgard domina o processo de criação de um espaço de intergeneridade.

Em “Viagem às fronteiras da carne: perspectivas e imaginários da cultura eletrônica”, Claudia Petraglione e Vicenzo Susca, em “A construção social das emoções”, de Denise Siqueira (org.), desenvolvem uma narrativa que explica a popularização das chamadas bonecas do amor, verdadeiros objetos que substituem as mulheres reais em culturas tão distintas no mundo, principalmente no Japão, demonstrando como o ser humano é capaz de inventar soluções eróticas para seus conflitos a partir da docilização dos corpos e do uso de técnicas corporais como a transgenitalização. Em “A pele que habito”, Almodóvar apresenta uma história de amor “pervertida” pelo desejo homossexual sublimado do cirurgião Robert Ledgard que se apaixona por Vicente transgenitalizado em Vera. Para tanto, Robert utiliza-se de um mecanismo nada natural no processo de sedução: mantém Vicente preso em sua mansão, como Ricky faz com Marina em “Ata-me”, de 1990, mantendo o ciborgue sexual disponível para a satisfação de seus próprios prazeres. Assim como Ricky (Antonio Banderas) faz em “Ata-me” com Marina (Victoria Abril), Robert Ledgard dociliza o corpo de Vicente, que se transfigura ao fim da história, em Vera, que acaba por assassinar seu criador e fugir do cativeiro. O corpo dócil de Vicente/Vera, a mulher-objeto de desejo de Robert, se transforma num robô intersexual que é manipulado cientificamente pelo cirurgião Robert. O corpo dócil de Vicente/Vera liberta-se da vingança de Robert e sai à luz do sol para reencontrar a família como Vera.

“A pele que habito”: a transgenitalização como técnica corporal da vingança em Pedro Almodóvar