Por Tetê Mattos | Novembro/2018

Fonte: ResearchGate

 Em “Fostering art, adding value, cultivating taste” [Promovendo a arte, agregando valor, cultivando o gosto], Marijke De Valck parte da abordagem sociológica baseada nos conceitos de “campo”, “capital” e “habitus” do sociólogo francês Pierre Bourdieu para elucidar as estruturas e princípios que fundamentam a existência de um circuito de festivais de cinema. O ensaio é norteado pela pergunta: o que diferencia a exibição de filmes nos festivais de cinema da exibição de filmes em salas de cinema comercial?

De forma bastante sintética, podemos observar que, no que tange ao campo, a exibição dos filmes em festivais de cinema se baseia na ênfase no caráter artístico/estético da obra. A autonomia que caracteriza esses eventos em relação à exibição comercial (preocupada com a rentabilidade do produto cultural impulsionado pelas receitas de bilheteria) faz os festivais incorporarem normas artísticas e princípios de avaliação como seu principal modelo. A programação dos festivais de cinema se apoia em princípios da história do cinema e na qualidade estética dos filmes. De Valck observa:

O principal capital nestes nichos é o simbólico: prestígio, honra e reconhecimento. (…) Devido a tal ênfase em critérios de seleção festivais de cinema são capazes de oferecer o que é chamado de legitimação cultural; seleção para um festival traz reconhecimento cultural para o filme e seus criadores porque serve como marca de qualidade (DE VALCK, 2016, p.105)[2].

Assim, os filmes exibidos num festival de cinema são incorporados num rico contexto discursivo que promove o filme: o espaço na programação do festival (mostra competitiva, mostra homenagem, mostra retrospectiva, entre outras), a presença dos diretores e equipe para apresentar o filme e debatê-lo, a produção escrita sobre o filme (textos no catálogo, crítica especializada, entrevistas), a presença da imprensa  credenciada e especialmente a concessão de prêmios. De Valck aponta:

Prêmio ou condecoração é a forma mais tangível de capital simbólico. Além disso, competições e suas premiações têm valor de notícias necessárias para atrair os críticos de cinema que vão escrever matérias, resenhas, críticas sobre a programação do festival de uma posição de autoridade e qualificada que podem amplificar a legitimação cultural que é oferecida pela seleção do festival (DE VALCK, 2016, p.106)[3].

Quando surge o Festival do Rio, em 1999, ele herda do Rio Cine Festival a premiação somente para filmes de curta-metragem. Os agraciados recebiam o Troféu Festival do Rio escolhidos por um júri formado pela direção do evento. Em 2000, com a entrada da BR Distribuidora como patrocinadora, a premiação passou a ser feita por meio do voto de público. Os filmes premiados recebiam as quantias atrativas de 200 mil reais para ficção e 100 mil reais para documentário, e esses valores deveriam ser usados no lançamento dos filmes nas salas de exibição comercial. O elevado prêmio em dinheiro[4] contribuiu para que o Festival, já na sua segunda edição, se consolidasse como um prestigioso evento na hierarquia do circuito de festivais brasileiros.

Até 2000, o Troféu Festival do Rio era um artefato em forma da marca-óculos do evento, criado pelo renomado designer Jair de Souza, que também criou a famosa marca do Festival do Rio.

     

Troféu Festival do Rio 2000. Fotos por Liliana Sulzbach.

 

Jair de Souza explica o conceito de sua criação:

O óculos era um Troféu que era espelhado por fora. Você se via nele. A pessoa que está dentro dele não vê nada. Quem vê é quem olha pra você. Quando você põe o óculos, ele tá mostrando uma paisagem.[5].

Interessante observar que o conceito conferido ao primeiro troféu por Jair de Souza sugere uma configuração subjetiva da cidade do Rio de Janeiro. O marca-óculos, a nosso ver, além de mais fascinante, é mais representativa da pluralidade das obras exibidas no Festival do Rio.

Em 2001, é criado o novo troféu, que seria batizado somente em 2006 como Troféu Redentor – nele figura a imagem da estátua do Cristo Redentor sobre o Morro do Corcovado feita de película cinematográfica. As dimensões físicas do Troféu e o dourado brilhante da escultura conferem valor de luxo ao objeto.

Troféu Redentor do Festival do Rio. Foto: Tetê Mattos

Como vimos em De Valck, o artefato troféu expressa valores simbólicos como reconhecimento, prestígio e honra de forma tangível. Tal capital simbólico está relacionado ao prestígio do evento que concede a láurea e à sua posição no circuito dos festivais. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de peças discursivas que expressam significações sobre a identidade do festival. O Troféu Redentor é repleto de simbologias. Os dois ícones nele representados, a película cinematográfica e o Cristo Redentor, são imagens clichês que fundem a representação do cinema e a da cidade em uma única imagem. O Rio de Janeiro é a cidade da paisagem natural da Zona Sul representada por um dos seus ícones incontestes: o Cristo Redentor. E seria a película cinematográfica a melhor maneira de representar o cinema diante de tantas transformações tecnológicas, tanto no âmbito da exibição quanto no da produção? A película cinematográfica, hoje restrita ao espaço das cinematecas e arquivos fílmicos, não seria uma melhor representação de uma cultura da memória, se olharmos o troféu na contemporaneidade?

Agradecimentos a cineasta Liliana Sulzbach pela cessão das imagens e a Jair de Souza pela entrevista concedida.

 

Referências 

DE VALCK, Marijke. “Fostering art, adding value, cultivating taste: film festivals as sites of cultural legitimization”. In: DE VALCK, Marijke, KREDELL, Brendan & LOIST, Skadi. Film Festival – History, theory, method, practice. London and New York: Routledge, 2016.

BOURDIEU, A distinção – Crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2011.

______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand do Brasil, 1989.

Notas de fim

[1] Professora do curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense; doutora em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: tetemattos13@gmail.com

[2] Texto original: “The main capital in these niches is symbolic: prestige, honor, and recognition. (…) Because of such emphasis in selection criteria, film festivals are able to offer what is called cultural legitimization: selection by a festival brings cultural recognition to the film and its makers, because it serves as hallmark of quality” (DE VALCK, 2016, p.105).

[3]Texto original: “A prize or award is the most tangible form of symbolic capital. Moreover, competitions and their prizes have the necessary news value to attract film critics, who will write and report on the festival’s program from an expert position that can amplify the cultural legitimization that is already offered by festival selection” (DE VALCK, 2016, p. 106).

[4] No circuito nacional, o único evento que conferia prêmios significativos em dinheiro era o Festival de Brasília de Cinema Brasileiro. O prestigiado Troféu Candango e o valor em dinheiro eram entregues a diversas categorias artísticas e técnicas. O tradicional Festival de Cinema de Gramado, com reconhecido prestígio cultural, concedia aos filmes premiados somente o Troféu Kikito. A premiação em dinheiro no Festival do Rio reorganizou a hierarquia do circuito de festivais.

[5] SOUZA, Jair de. Entrevista concedida a Maria Teresa Mattos de Moraes. Rio de Janeiro, 15 dez. 2017.

Os troféus do Festival do Rio: discursos e simbologia