Entrevistamos o jornalista Gabriel Gutierrez Mendes,atualmente professor das Faculdades Integradas Helio Alonso, doutorando em Comunicação Social na UERJ e pesquisador do CAC (Centro de Arte e Cidade) do PPGCom/UERJ. Leia abaixo a conversa que tivemos com ele sobre rap e Racionais Mc’s:

1 – O rap congrega formas artísticas de expressão vinculadas à cultura de rua e geradoras de uma consciência política. A seu ver, como se dá o processo de composição nesse gênero musical, digo como é feita a transição do sentimento para sua manifestação em versos?

A primeira coisa a ser entendida é que o rap, em sua origem dos Estado Unidos, pode-se antecipar ao momento final dos anos 70 e início dos anos 80, que é quando em geral se localiza o nascimento do gênero musical que chamamos de rap. Porém, o rap é um galho dentro de uma árvore que é muito anterior a ele, pois se remete a uma tradição afrodiaspórica de jogos verbais e de um uso muito potente da oralidade. Tendo como base uma sustentação rítmica, na qual as pessoas brincam falando, pois elas brigam, se ofendem e se gabam enquanto propagam a voz. 

Remete-se até ao Griô, um homem nômade da África Ocidental que contava histórias e notícias, carregando uma tradição oral. A ideia de moralidade que conta histórias em cima de uma rítmica é muito anterior ao rap e é muito poderosa dentro da tradição afrodiaspórica que vai popular as Américas. O rap nasce com uma paternidade tripla, nasce como consequência de um momento de lazer nas festas de quarteirão dos jamaicanos. Kool Herc, um produtor jamaicano de eventos e DJ, foi um dos pioneiros a colocar músicas para tocar em sistemas de som nas ruas; uma tradição jamaicana é colocar caixas com grave muito poderoso e fazer festas de rua. Desse modo, surgem as block parties (festas de quarteirão), na qual as pessoas se congregam e uma tradição de provocação com a voz e de mestre de cerimônia vão surgir nesse momento. Também se inspiram no jive talking, o jeito de falar dos locutores de rádio, na qual a oralidade é muito carismática, desenvolvida, sinuosa e musical. 

Pode-se entender então que o primeiro momento do rap tem esse braço de paternidade na festa e no lazer. Além disso, o rap possui um outro braço de paternidade nas destrezas técnicas dos DJs, os que mexem nos discos e vão usar os fragmentos das músicas do gênero da Soul Music, anterior à Disco Music. O rap surge, então, como uma alternativa da Disco Music. Os DJs vão roubar os ‘’breakbeat’’, ou seja, os fragmentos das músicas que não tem nada acontecendo, apenas a bateria, e compõem assim, uma formação técnica. Sendo assim, não é necessário o uso de instrumentos, tocando incessantemente a batida, a música surge e juntamente com a tradição oral se dá o rap. O rap como gênero musical nasce de uma limitação econômica, pois tudo ligado a instrumentos possuem altos preços como, por exemplo: aulas, preços dos instrumentos, contratação de banda… Logo, a produção de música e arte se dá em poucos recursos. A terceira vertente da paternidade do rap é uma iniciativa comunitária, a mesma vai tentar fazer com que a disputa nas festas, que se baseiam na música e na dança, possam ser um caminho estético de substituição da disputa violenta entre gangues. O primeiro homem a fazer isso é Afrika Bambaata, fazendo assim uma ligação com a uma tradição enorme de jogos verbais afrodiaspórica.

O processo de consciência política na composição do rap no Brasil se deu no primeiro momento do rap brasileiro, final da década de 80 e nos Estados Unidos no segundo momento,início dos anos 80.

2 – O rap tem como raiz as periferias e subúrbios, porém tem-se verificado uma crescente expansão de seu público. O estilo está sendo escutado por todas as classes, idades, atravessando capitais e chegando em cidades do interior. A que você atribui esse crescimento?

O rap agora não é uma coisa só, né? O rap no Brasil tem esse primeiro momento no final dos anos 80 que é muito incipiente ainda. No início dos anos 80, ele começa a alcançar alguma notoriedade dentro das periferias, lugares onde é feito o rap. E no final dos anos 90, ele estoura, consegue chegar no Brasil inteiro, mas ainda assim, você não consegue configurar uma indústria do rap.

Uma indústria do rap, uma cena do rap que vai, inclusive, flertar com a música pop, só vai acontecer no começo da atual década (2010), quando vão começar a surgir artistas como Criollo e Emicida. O Projota, por exemplo, é um artista com uma veia muito pop. A indústria do rap vai ter um crescimento significativo agora nessa década, fazendo com que o rap nos Estados Unidos chegue a ser a música mais ouvida no Spotify e no país como um todo, segundo mostram algumas pesquisas de mercado. Aqui não é a música mais ouvida, a música mais ouvida do Spotify é o sertanejo, mas o aplicativo chega em pouca gente no Brasil ainda, então esse número é muito enviesado.

Mas é inegável que existe um o crescimento, especialmente no Rio e em São Paulo, mas não só. O rap no Brasil, ainda tem pouca indústria por trás, são as próprias pessoas fazendo a cena: são os artistas, as pessoas que escrevem sobre a “molecada” que está produzindo em casa, as pessoas que produzem os shows e os evento etc. São essas pessoas que estão fazendo a cena acontecer e isso é muito rico, está muito vivo no Brasil. 

3 – O rap norte-americano também representa a realidade da rua em suas letras, contudo faz uso da licença poética para evocar um outro imaginário em certos versos. Mano Brown (ex-líder do Racionais Mc’s), em uma entrevista para o Roda Viva em 2007, disse que o rap brasileiro não tem essa liberdade de construir um imaginário nas letras, mas apenas de entoar o real. Com base em suas pesquisas sobre os Racionais e o rap brasileiro, como você explica essa afirmação do rapper?

Essa fala do Brown de 2007 eu acho muito pitoresca, porque o próprio Brown fala em outros momentos como o Racionais faz a crônica, crônica é essa coisa do real, de entoar o real.  Ele faz a crônica, mas ele insere poesia e eu discordo, profundamente dessa ideia de que o Racionais é puramente crônica, porque vários outros artistas fazem a crônica, entendeu?

Então, a crônica, simplesmente, não mexe com as pessoas como a música mexe. Se a crônica mexesse com as pessoas como a música mexe, vários artistas teriam o tamanho que o Racionais tem e você poderia ler uma matéria. O que a música propõe que a matéria de jornal não propõe? O que a música comunica que um artigo cientifico não comunica? O Racionais têm alguma outra coisa.  

O Racionais tem a capacidade poética de ilustrar esse cotidiano de forma metafórica, de ilustrar o cotidiano usando figuras poéticas e para ir além da ilustração do cotidiano, por exemplo: conflitos internos, conflitos subjetivos etc. Tem música dos Racionais que está falando sobre conflitos do “camarada” que está em dúvida sobre o que ele sempre foi e o que ele quer ser agora.  

Então, essa ideia do real e minha argumentação no que eu já pesquisei do Racionais vai muito no sentido do grupo ter uma proposta. O Racionais não só retrata a realidade, eles usam um retrato da realidade para fazer uma proposta. Essa proposta tem a ver com o modo através do qual você pode levar a vida de um jeito ativo, de um jeito inteligente, de um jeito forte dentro do contexto muito adverso. A história do Racionais também não dá para a gente colocar como uma coisa monolítica.

                                                                                                          Fonte: Substantivo Plural

4 – Os Racionais sempre preferiram fazer shows em periferias e lugares que, segundo o grupo, estão retratados em seus versos. A seu ver, a escolha do local também funciona como um mecanismo de contestação e reafirmação da identidade do grupo?

O Racionais tem três fases: a primeira fase é ligada a um tom muito professoral. O rap ainda é muito incipiente. A segunda fase, para mim, é a fase de ouro, que vai desde 1993 até 2010, mais ou menos, que é a fase que tem os três discos clássicos, “Raio X do Brasil”, “Sobrevivendo no inferno” e “Nada como um dia após o outro dia”, em que eles vão tocar especialmente em lugares não hegemônicos, digamos assim. 

O Racionais nunca pisou em nenhuma TV aberta até dentro desse momento. Depois, um ou outro membro do Racionais vai acabar indo na Tv Globo, mas isso já é nessa terceira fase, que é outra coisa que precisamo entender também, porque os caras já estão mais velhos um pouco, o rap já mudou, o Brasil mudou, eles mudaram, tem filhos e, em geral, empresário. É outra história, mas essa afirmação de que shows da periferia tem muito a ver com essa época assim.  

O Racionais tem um modo de produção muito específico, muito autônomo. Tinham uma gravadora pequena, depois montaram a própria gravadora. A única tv, digamos assim, maior em que eles pisaram foi a MTV, que fazia muito sucesso na classe média juvenil, mas que em termos de Brasil falava muito pouco com as pessoas e eles iam lá e iam também na Tv Cultura de São Paulo que é a tv pública, né? E isso até fala da capacidade deles de alcançar muita gente e serem muito notados tanto na crítica, quanto no público sem pisar nos espaços tradicionais da indústria cultural.

5 – A partir do conceito de indústria cultural, elaborado pela Escola de Frankfurt, como o grupo Racionais Mc’s se encaixam nessa reflexão, uma vez que não se apresentam em grandes canais e são donos de suas próprias produtoras?

Eu acho que essa discussão sobre a indústria cultural é interessante. O Racionais nunca quis alimentar essas grandes empresas e eu acho razoável, porque essas grandes empresas, de alguma forma, impedem uma apresentação de uma contradição social de uma forma mais furiosa, de uma forma mais rasgada. Quando as contradições aparecem dentro da indústria cultural elas são de uma forma muito atenuadas, de uma forma adocicada, de uma forma já esvaziada e o Racionais tem um impacto de tentar intuitivamente desmontar uma ideia de convívio pacífico entre os brasileiros que só faz sentido nessa imagem caricatural de Brasil. 

Porque se você conhece um pouco do Brasil, você sabe que a última coisa que tem aqui é paz e convívio harmônico. Harmônico para quem, né? Paz para quem? Tanto que o disco chama “Sobrevivendo no Inferno”, disco icônico. Para a maioria dos brasileiros o Brasil é um lugar infernal, com a taxa de homicídio semelhante às taxas de guerra. Então, assim, é bem inusitada essa ideia de um Brasil cor de rosa.  

6 – Por que os Racionais são um caso especial dentro do cenário do rap nacional, mais especificamente dos anos 80 e 90, no que se refere à sua importância para a música negra?

O Racionais é o principal nome da música afrodiaspórica brasileira desde os anos 80. Eles são seguidores de Tim Maia, seguidores de Jorge Ben, paternidade direta desses dois. Além disso, é uma música moderna, uma música urbana, e se a gente for, de alguma forma, dialogar com uma tradição do samba, que é uma música urbana, mas que remete a uma tradição do século XX, Racionais é uma música do final do século XX e do século XXI. Remete-se às grandes metrópoles, consequência direta da existência das cidades grandes, de um certo capitalismo que desindustrializa São Paulo, nos anos 90, e gera desemprego. De um capitalismo que vai se financeirizar e vai produzir um setor de serviço muito intenso e vai esvaziar os empregos industriais. Então, o Racionais emerge nesse contexto, e é o principal nome por causa da capacidade poética e musical deles, que pesquisam música, quer dizer, não escutam só rap, eles se relacionam inclusive com o samba, com essa MPB mais negra do Gil, do Jorge Ben, do Djavan e com uma tradição de Black Music brasileira  de Cassiano, Carlos da Fé e Banda Black Hill.  

Eles são uma consequência direta de uma tradição que vai bater no pagode também, que vai bater no Fundo de Quintal, em Leci Brandão, mas que é fundamentalmente mais moderna e mais contemporânea. 

7 – O rap é um instrumento de comunicação das periferias, que por meio de linguagem e código oferece alternativas para construção de uma consciência cidadã. A seu ver, como o rap se adapta ao cenário atual, no qual o exercício da cidadania se dá também por meio do que lemos e vemos na internet?

Eu acho que a rap mensagem, que é como a galera do rap chama esse rap mais politizado, continua viva, mas, como a cena está se expandindo, se diversificando, se complexificando, a gente tá vendo cada vez mais outros discursos aparecerem. Essa ideia de consciência cidadã, é uma ideia complexa porque o rap dá um sentido de comunidade, mas a galera do rap tá um pouco além disso. Hoje em dia, como na fala do Brown nas últimas eleições, parece que essa ideia de rap politizado, de um rap com sentido comunitário, de fraternidade, de aquisição e de consciência está um pouco em crise. Nós estamos vendo a galera do rap aderindo a outras ideologias, outras formas de vida. Existe um rap muito grande, que é só “gastação”, que são os caras que sabem fazer rima, que sabem trabalhar bem artesanalmente a lírica, mas que não estão falando sobre isso.  

Eu descolaria muito, porque acho que essa coisa tá muito colada no senso comum, de que o rap é consciência cidadã, e os Racionais tem muito a ver com isso, mas não só a ver com isso, tem várias outras coisas ali. Você tem uma vertente dentro do rap brasileiro que tem essa inclinação, que vai pegar aí Emicida, Black Alien, Rincon Sapiência, mas que vão falar de várias outras coisas também. Essa ideia de que o rap é aula de política, aula de história, encontro de centro comunitário e ONG, é uma coisa que a galera não curte muito, já teve o seu papel, o rap já foi política pública em escola, várias vezes, ainda é, de tentar colocar a molecada pra se inteirar culturalmente, ensinar e fazer a galera se ver.  

O rap é uma forma de pensamento complexo, ganhou Grammy esse ano nos Estados unidos, entrou pra lista de livros que você tem que ler pra fazer o vestibular da Unicamp, então o rap é pensamento complexo quando ele quer ser, ele não é sempre isso. Ele é uma forma de pensamento que é musical, remete a uma tradição afro, de oralidade rítmica que produz um discurso que esta fora do discurso do cânone ocidental, que acha que só a universidade produz pensamento consistente, o rap fala sobre alguma coisa que tá no cotidiano, na rua, é o pensamento da rua, é uma outra tradição sociológica. Portanto, acho que esse pensamento não necessariamente é sobre cidadania, às vezes ele é literatura, às vezes ele é contação de história, às vezes ele é ensinamento, pedagogia, mas não necessariamente está colado nessa ideia de consciência cidadã. 

Fonte: Carta Educação

8 – Os Racionais, assim como outros grupos de rap, aborda a cidade em espécies de crônicas cotidianas. Na música “Vida Loka II”, o grupo paulista tem como foco criticar sua própria cidade, São Paulo. O verso “Em SP Deus é uma nota de 100” é, no entanto, cantado por fãs de diferentes cidades do Brasil. Na sua opinião, por que a crítica social contida nessa letra (e em outras do grupo) ressoa tanto em outros locais, para os quais ela não foi originalmente pensada? 

Os Racionais tem um ligação muito forte com São Paulo e, na verdade, lá é o centro do capitalismo brasileiro, pois têm características de uma transformação do capitalismo que acontece nos anos 90, que vai explodir com financeirização e indústria de serviços. Então, tem uma relação muito forte entre Racionais e São Paulo mas, em geral, entre o rap e a cidade.  

O rap é muito urbano, nasce muito de uma classe trabalhadora empobrecida, precária, que não consegue entrar no mercado de trabalho formal nem consegue estar exatamente no mercado de consumo e que usa o rap no planeta inteiro pra falar de si, não necessariamente pra fazer música política, mas pra falar de si. O rap é um instrumento acessível, um instrumento barato, você pega dois moleques na rua, um faz o ritmo e o outro canta e é um saber intuitivo, o que tem muito a ver com os guetos das cidades, com o espaço urbano, com o espaço comum, como quando você está na praça fazendo um som e juntam 3 ou 4 cabeças, a galera fazendo o slam, que é um filho mais novo do rap, mais novo e mais anterior, porque essa tradição de oralidade é ancestral.  

Além de ter uma coisa dos sons da cidade, o rap usa muito o som da cidade, a sirene, a TV, o repórter, o tiro, galera gritando, o barulho do carro; o rap tem uma característica muito urbana. 

9 – Por fim, qual você acredita que seja o papel do rap em um cenário político que se desenha tão acirrado e que tem despertado tantas animosidades nas redes sociais e mesmo no espaço público da cidade?

Vimos agora, nessa eleição, o posicionamento dos artistas de rap e, inclusive, uma cisão dentro do próprio movimento, porque você tem fãs do rap que estão muito distantes daquilo que vários ícones do rap achariam que deve ser a mensagem do rap. No rap, esse debate está forte e às vezes uma galera do rap está conservadora, porque o rap não é uma coisa só, ele é complexo.  

Partindo disso, tiveram episódios interessantes. O Brown e o Emicida falam que teve uma cisão, porque esse público não é mais o público que era, você expande o público, o público se complexifica, vira várias coisas, assim como o gênero é várias coisas, eles nunca são uma coisa só. O rap não é uma coisa só e o seu público também não. Essa eleição mostrou o cenário político contemporâneo no Brasil, desde 2016 está mostrando, que são vários “brasis”, são pessoas que pensam completamente diferente sobre o que é a realidade e a gente vai ter que descobrir um jeito de fazer esse convívio acontecer porque as vezes as pessoas têm éticas e estéticas que são abismos entre si . 

No caso do rap está acontecendo isso, a galera curtindo o rap e o rap está ralando “Cara, o que eu escrevo é exatamente contra o que essa galera que tá me ouvindo tá acreditando politicamente”. A “Manipulation of funk”, que é a ideia de que às vezes o ritmo é tão incrível que você dança e curte o som sem estar ligado com o que está sendo tocado, diz muito sobre isso, e é o que pode estar acontecendo com o rap, às vezes a forma fascina o público, mas isso não tem a ver com o que está sendo dito na mensagem.

Entrevista com Gabriel Gutierrez Mendes – Racionais Mc’s e o rap