No boletim do mês de outubro, entrevistamos Viviane Fernandes, doutoranda de Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ), cuja pesquisa aborda a temática do consumo e da educação financeira. Na conversa que teve conosco, Viviane nos contou um pouco sobre o desenvolvimento de sua pesquisa de doutorado e suas impressões sobre a tragédia no Museu Nacional. Confira abaixo a entrevista:

 

Uma rápida olhada em sua trajetória desde a graduação até o doutorado nos deixa ver uma pesquisadora muito interessada nas questões do consumo. Como surgiu seu interesse na área do consumo e como você acredita que o consumo está ligado a comunicação?

Desde o início de minha trajetória acadêmica, minhas escolhas foram me conectando aos estudos sobre consumo. Ao entrar na UERJ, ainda na segunda semana de aula, fui acolhida pelo LPO (Laboratório de Pesquisa Mercadológica e de Opinião Pública), primeiro como voluntária e depois como estagiária, ali tive o primeiro contato com as pesquisas sobre consumo e comportamento do consumidor. Quando terminei a graduação, continuei nessa área. Ao trabalhar em departamentos de comunicação e marketing de diferentes empresas, tive a oportunidade de observar como estas instituições utilizavam as pesquisas de consumo para aprimorar suas estratégias de venda, atrair clientes e desenvolver produtos. No entanto, com o passar do tempo, sentia que não era ali meu lugar. Meu interesse pelas pesquisas era, prioritariamente, um interesse pelas pessoas.  Foi quando decidi voltar para à Universidade e iniciar uma nova trajetória.

Para mim, a associação entre consumo e comunicação sempre esteve muito clara. Compreendo o consumo não apenas como um fenômeno cultural e simbólico, mas também como linguagem. Como coloca Mary Douglas e Baron Isherwood, os bens de consumo são usados socialmente e funcionam como “cercas e pontes”. Através do consumo estamos, constantemente, afirmando ou rejeitando ideias e valores.

 

Durante o seu Mestrado, você abordou o assunto os usos de cartão de crédito por jovens universitários. O que essa pesquisa representou dentro de sua trajetória acadêmica e quais conclusões sobre o consumo e relação estudante-cartão de crédito você chegou?

Apesar de me dedicar à área do consumo, considero que minhas pesquisas sempre tiveram como foco as práticas financeiras das pessoas. O estudo desenvolvido durante o mestrado propunha conhecer as formas de organização financeira dos jovens, interessava-me investigar os usos e sentidos atribuídos por esses ao dinheiro e ao crédito.

Na época, foi uma ação de marketing praticada pelos bancos dentro das universidades que me despertou curiosidade. A cada novo semestre, bastava cruzar os portões das instituições de ensino para perceber a frequência com que os novos estudantes eram abordados por promotores de vendas. Ali, além de brindes, era oferecida a oportunidade de uma conta universitária: cheque especial; tarifas mais baixas; limite de crédito pré-aprovado (e sem comprovação de renda); talão de cheques e cartão de crédito: um pacote completo de serviços financeiros para aqueles que abrissem uma conta no banco. A rotina se repetia ao longo dos meses e os bancos se revezavam.

Num período de políticas públicas que incentivavam o consumo como meio de estimular a economia e colocavam em vigência iniciativas de “inclusão financeira”, dediquei-me a conhecer como esses jovens passavam a acessar e usar o crédito.

Nessa pesquisa foi bastante interessante reconhecer o papel dos familiares, em especial, das mães, nos processos de pedagogia financeira. Além do exemplo que vem de casa, os jovens aprendem com a prática – num processo de tentativa e erro – ao acessarem novos produtos financeiros vão construindo regras, elaborando formas de controle e distinguindo os usos que fazem do dinheiro e dos demais meios de pagamento.

Fonte: Isto É

Na sua opinião, os jovens de hoje estão mais ou menos responsáveis no controle do próprio dinheiro?

A partir da pesquisa não teria condições de responder essa pergunta. Primeiro porque teria que partir de uma definição sobre o que seria o “uso responsável” e elencar modelos de controle do dinheiro considerados mais acertados em detrimento de outros vistos como mais arriscados, ou menos eficientes. Além disso, não realizei um estudo comparativo entre diferentes gerações de jovens, examinando as variações nos usos em uma escala temporal. O que posso acrescentar é que, constantemente, somos apresentados a novos produtos financeiros. Se expandirmos as noções de dinheiro – para além das cédulas de papel – e observamos a múltiplas formas de fazer transações (dos cartões às milhas, e  ao bitcoin), temos que dar conta de uma série tecnologias, regras e modos de usos – que variam de um meio de pagamento para outro. Temos gramáticas novas a aprender, acho que posso colocar assim.

 

Você escreveu recentemente uma resenha sobre o livro Money from nothing. Nesse texto, você discorre sobre a relação direta entre crédito e dívida. Conte-nos um pouco sobre o livro resenhado e sobre essa vinculação entre crédito e dívida, tão central na dinâmica de nossas finanças diárias?

O livro da Deborah James é fruto de uma longa pesquisa empreendida pela autora na África do Sul. Interessada no endividamento das pessoas e famílias, James explora fenômenos como crescimento da classe média; dinâmicas do mercado imobiliário; a relação entre religião e dinheiro e os programas de educação financeira. O primeiro ponto de sua pesquisa que me chamou atenção foram as similaridades entre a África do Sul e o Brasil no que tange ao modo como a bancarização da população foi planejada e os efeitos da rápida expansão do crédito.

Crédito e dívida estão inter-relacionados, no entanto, é comum haver uma segmentação moral de que o crédito é bom e a dívida é ruim. Essa classificação se dá principalmente por que o crédito estaria relacionado à produção, ao poder e a benefícios, já a dívida seria associada ao dispêndio, à fraqueza e à armadilha. Pesquisas como a de Deborah James apresentam uma superação desta visão dicotômica e limitada. Ao nos aprofundarmos sobre o fenômeno da expansão do crédito e consequentemente da ampliação das dívidas podemos examinar as ambiguidades entre credores e devedores, entender as práticas financeiras das pessoas e reconhecer um conjunto de expectativas e obrigações que as movem.

Somos constantemente pressionados para satisfazer às expectativas relacionadas aos compromissos dos relacionamentos que estabelecemos, é esperado que nos esforcemos para desempenhar com êxito o papel de mãe ou pai – mas também de tio(a), irmão(ã), avô(ó). Em muitos desses casos, as pessoas precisam recorrer a um dinheiro futuro para cumprir expectativas presentes; ou, de modo disciplinado, fazem investimentos e reservam recursos para, adiante, estarem preparadas para cumprir as obrigações previstas. Nesses empreendimentos, os instrumentos econômicos, formais e informais, tradicionais e contemporâneos se misturam. Privilegia-se um ou outro, ou são combinados vários, de acordo com as oportunidades e estratégias adotadas. Assim, ultrapassar as barreiras colocadas pelas moralidades e reconhecer os motivos íntimos ou menos explícitos que levam os indivíduos ao endividamento podem oferecer novas perspectivas para as avaliações apressadas ou superficiais de que consumimos demais ou de que agimos de maneira irresponsável com relação ao dinheiro.

Fonte: Amazon

Até recentemente, você desenvolvia a pesquisa intitulada “Aprendendo a cuidar do dinheiro: uma etnografia de iniciativas de educação financeira”. Como surge a vontade de enveredar pela pesquisa etnográfica e por continuar a trabalhar com questões ligadas à economia e ao consumo? Como se desenvolveu essa investigação e quais foram os achados mais relevantes que ela trouxe?

Cada vez mais interessada por questões econômicas, acompanho, desde o fim do mestrado, o lançamento e desenvolvimento de uma política pública que visa ampliar a educação financeira das pessoas. Assim, ao longo do doutorado, acompanhei o trabalho de diferentes especialistas que estão envolvidos na execução desta política. Passei a investigar a emergência de um conjunto de saberes, técnicas e orientações financeiras transmitido às pessoas com o intuito de que estas estejam “melhores capacitadas” para organizar suas economias cotidianas e tomar decisões econômicas.

Ao acompanhar atividades de orientação ao consumidor sobre os usos do dinheiro (e do crédito), deparei-me com o fenômeno do superendividamento das pessoas, que passou a ser um dos principais temas abordados na tese. Busco conhecer como o processo do endividamento vem ocorrendo e como as iniciativas de educação financeira passaram a ser vistas como uma forma de evitar o excesso de dívidas das famílias. Ao participar de reuniões, treinamentos e palestras relacionados ao tema da educação financeira, busco conhecer como especialistas atuam na transmissão de uma pedagogia econômica, que versa sobre modos de gestão do dinheiro, mas também sobre estilos de vida e condutas pessoais e familiares. Essa pesquisa está em fase final e, muito em breve, poderei dar mais detalhe sobre este estudo.

 

No cenário atual de crise econômica, a dualidade crédito/dívida torna-se ainda mais relevante. Diante disso, como você avalia que o ambiente de crise tem interferido no consumo do brasileiro médio? Principalmente nesses momentos de aperto, você acredita que a educação financeira pode cumprir um papel importante na vida de todos nós?

Sim, apesar do fenômeno do endividamento não ser fruto da recente crise financeira, um período de retração econômica faz com que os efeitos deste fenômeno tenham ainda mais visibilidade. Digo isso pois grande parte do meu trabalho de campo se desenvolveu na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, especificamente, no Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon). E, desde 2005, o Nudecon já atua na orientação de pessoas que procuram ajuda jurídica para resolver situações classificadas de superendividamento. Ou seja, antes mesmo da crise já havia a necessidade de um atendimento especializado em casos de endividamento excessivo. Hoje, a situação se agrava, sem sombra de dúvida, e principalmente no Rio, com todos os problemas enfrentados pelos servidores (ativos, inativos e pensionistas) do Estado.

Diante deste cenário “de aperto” como vocês colocaram, não posso tirar o mérito das iniciativas de educação financeira como formas de prevenir determinados problemas, ou de auxiliar aqueles que precisam de técnicas de gerenciamento de recursos. Mas o que parece evidente é que as vidas financeiras das pessoas estão sujeitas a diversos eventos que às colocam em situações de vulnerabilidade, eventos esses que vão desde decisões políticas a problemas de saúde, e que envolvem, principalmente, os modos como são estabelecidas as relações entre as pessoas e as instituições financeiras. Infelizmente, o modo de operação de certos produtos financeiros pode ser mais prejudicial do que determinados comportamentos vistos como imprudentes.

 

Você publicou na revista Comunicação, mídia e consumo o artigo “A construção da confiança em experiências de hospitalidade mediadas pela internet: os casos do Airbnb e do Couchsurfing”. A partir desse artigo, como você interpreta a relação de confiança construída entre o hóspede/cliente e o anfitrião a partir desses aplicativos?

Isso. Esse artigo surgiu de uma série de ideias que eu, Ramon Bezerra e o Fernando Gonçalves fomos acumulando a partir de encontros esporádicos que realizávamos para falar de nossas pesquisas. O Ramon, na época, estava estudando experiências de consumo que envolviam compartilhamentos. No caso do o Airbnb e o Couchsurfing, ele se interessava pelo compartilhamento de casas e experiências de hospitalidade. Ao acompanhar a pesquisa, eu estava super empolgada em entender as relações de troca vigentes nestas plataformas – que podem ou não envolver dinheiro – mas que se baseiam, essencialmente, na reputação – nestes casos, interpretados como confiança, ou crédito. Para mim foi bastante interessante escrever este artigo em conjunto, justamente para pensar como se constroem medidas de confiança e examinar como estas são utilizadas em experiências de consumo.

Fonte: Airbnb.

Você cursou doutorado no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ), localizado na Quinta da Boa Vista. Egressa de um curso de Comunicação Social, como foi se adaptar a uma área de conhecimento estranha à sua formação e ao um novo ambiente acadêmico?

Toda transição exige muita dedicação. Depois de 6 anos na comunicação, envolvida e já familiarizada com as principais discussões da área, foi realmente bastante desafiador dedicar-me a temas totalmente estranhos – a sensação é de começar de novo, apesar de já estar no doutorado. Mas, de fato, a antropologia e comunicação possuem muitos pontos de contato. Além disso, na época do mestrado, já “namorando” a antropologia, tive o total apoio do professor Ricardo Freitas para trazer leituras e discussões importantes no campo da antropologia para a dissertação. E, no doutorado, meu atual orientador, o professor Federico Neiburg, também foi bastante generoso e paciente ao me auxiliar nestes primeiros passos em uma área nova.

 

Enquanto aluna, como você se sentiu ao receber a notícia e ver as imagens do Museu Nacional em chamas? Passadas algumas semanas, qual a sua análise dos efeitos que essa tragédia terá sobre os estudantes, que tinham no Museu um espaço de aulas, pesquisas e convivência?

É realmente muito, muito triste. No dia seguinte ao incêndio, ao encontrar os alunos, os professores, os funcionários com quem dividíamos nossas rotinas a sensação não era diferente de um velório. A ausência do Museu dói, e chega a falta o ar quando imagino tudo o que perdemos. Mas, temos trabalhado de forma conjunta, e recebemos muitas manifestações de solidariedade. Na verdade, há pouco espaço para sofrimento, muitas vidas estão ligadas ao Museu e esta instituição tem uma importância enorme não apenas para a comunidade científica, mas também para toda população. O que nos entristece é perceber que em um momento terrível de perda e vulnerabilidade ainda tenhamos que nos defender dos ataques à Universidade Pública, uma experiência que a UERJ, infelizmente, também conhece. Então, o que posso dizer? Somos mais fortes do que imaginamos, vamos seguir em frente e reconstruir um novo lugar, como estamos repetindo: “do luto à luta”.

Foto: Angelo A Duarte
Entrevista com Viviane Fernandes – Consumo, cartão de crédito e Museu Nacional