Por Igor Lacerda | Outubro/2018

 

Alguém devia ter caluniado Josef K., visto que uma manhã o prenderam, embora ele não tivesse feito qualquer mal (…) Qual é o sentido desta grande organização? Não é outro senão o de prender pessoas inocentes e de contra elas instruir um processo absurdo e, na maior parte das vezes, como no meu caso, improfícuo… (O Processo – Franz Kafka)

 

 

Fonte: Amazon.

O Processo, livro de Fanz Kafka, conta a história de Josef K. – um homem bem-sucedido, honesto, que trabalhava em um banco. Um dia, sem esperar, homens bateram em sua porta e o convocaram para se apresentar à justiça. Josef, esse ser tão correto, participaria de um processo. Seria julgado por atos criminosos, mas o problema era: ele não se  lembrava dessas delinquências. No decorrer do livro, tenta descobrir quais tinham sido seus erros, ao mesmo tempo em que é obrigado a se defender.

Em um momento, acha que os advogados não estão sendo sinceros, decidindo fazer a própria defesa. Então, como estratégia, durante os julgamentos, resolve narrar a própria vida: expôs suas características positivas e negativas, seus erros e acertos. Josef K. expôs toda a sua vida aos inquisidores, dando satisfações àqueles personagens poderosos que tinham a possibilidade de mudar sua trajetória.

Josef K. estava sendo tratado como criminoso, apesar de não ter praticado um crime. O romance de Kafka lembra as violações de direitos humanos fundamentais em favelas e periferias, quando os pobres são tratados como delinquentes, mesmo quando não cometem delitos. Casos semelhantes ao do protagonista do livro de Kafka têm acontecido hoje, no Rio de Janeiro, principalmente nos espaços populares.

As políticas de segurança pública dão atenção especial às favelas e aos subúrbios por entendê-los como ambientes de crimes, ignorando algumas vezes, que a criminalidade também está presente nos bairros mais abastados. No morro, as pessoas vivem sob medidas de exceção, e seus direitos podem ser suspensos para que o problema da criminalidade na cidade seja solucionado (AGAMBEN, 2004). No asfalto, essas ações não ocorrem da mesma maneira, pois os direitos normalmente são preservados.

Posso citar pelo menos dois episódios – e essa lista poderia aumentar – que evidenciam que as políticas de segurança tratam os pobres como criminosos. Esses exemplos ocorreram nas ações do Exército, em favelas, durante a intervenção militar no Rio de Janeiro. No entanto, vale destacar: essas condutas podem ter sido tomadas por outros projetos de segurança pública, afinal, essa forma de atuar não surgiu agora.

Fonte: Nosso Jornal BM

Primeiro exemplo: a gestão da intervenção preparou mandados coletivos de busca e apreensão para favelas inteiras. Esses mandados autorizariam os policiais e os militares a entrarem e investigarem qualquer casa, mesmo não tendo provas de que seus moradores e frequentadores estivessem envolvidos em algum crime. Este é o exemplo de uma tentativa de suspender garantias individuais, entre essas garantias está o direito à inviolabilidade domiciliar.

Segundo exemplo: Os militares fotografaram moradores com seus documentos de identificação. As pessoas estavam circulando pela favela e, de repente, eram abordadas e obrigadas a realizarem esse fichamento. Essas informações seriam enviadas à Polícia Civil. Essa ação foi uma afronta ao direito de ir e vir das pessoas. A abordagem pessoal por parte dos agentes deveria ser realizada apenas se existissem razões concretas. Assim, moradores de favela passam a ser considerados criminosos em potencial, reforçando estereótipos que os acompanham há tanto tempo.

Vera Malaguti (2015) explica que as políticas de segurança pública do neoliberalismo tendem a punir os pobres, os condenados da cidade e as prisões da miséria. A pobreza é criminalizada porque a favela é entendida como um abrigo do mal e seus habitantes como inimigos que precisam ser contidos, pois são aqueles que levam o caos à cidade. Essas políticas teriam a capacidade de causar o que a autora chama de fascistização das relações sociais, ou seja: a repetição do desejo de punir àqueles que seriam considerados inimigos com mais prisões, vigilância e controle.

Casos como os mandados coletivos e o fichamento de moradores revelam que as políticas de segurança se empenham em controlar as favelas e as periferias, violando direitos humanos fundamentais de todos os tipos e criminalizando a pobreza. E quando essas violações vêm à luz, uma fascistização salta aos olhos: parte da sociedade clama por mais violências e punições para o outro, o estranho, o indigno de vida. Assim como Josef K., na obra de Kafka, os pobres respondem a inquéritos não por serem quem são, mas por aquilo que pensam que eles são: inimigos internos.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MALAGUTI, Vera. Estado de Polícia. In: KUCINSKI, Bernardo [et al.]. Bala perdida: a violência no Brasil e os desafios para a sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015.

A intervenção militar como um drama de Kafka